quarta-feira, 7 de setembro de 2011

CINEMA PERDE SIDNEY LUMET






Aqui nossa homenagem póstuma a Sidney Lumet, cineasta dos bons, desaparecido aos 87 anos incompletos, pois nasceu na Filadélfia em 25 de junho de 1924 e faleceu em 9 de abril deste 2011, vítima de insidioso linfoma. Cineasta de clássicos modernos, Lumet dirigiu nada menos de 44 filmes de qualidade, alguns poucos nem tanto, devido a dificuldades de adaptação de peças teatrais para o cinema, outros muito bons e até mesmo inesquecíveis, aos quais dedicamos algumas linhas para orientação dos cinéfilos leitores.



Lumet era filho de Baruch Lumet e Eugenia Wermus, intérpretes veteranos do teatro lídiche (do alemão "judisch deutsch" ou judeu alemão, mistura do Hebreu e de antiga forma de uma língua germânica falada principalmente por judeus provenientes da Europa Central e Oriental. Como sabemos, milhares de judeus emigraram para outros países nos anos 30 (ou mesmo antes disso) em razão do implacável anti-semitismo nazista do qual os nomes sinistros de Auschwitz, Sobibor, Sachenhausen, Treblinka, etc. refletem bem o enigma do mal inexplicável e profundamente cruel deste nosso mundo louco.






Os Primeiros Êxitos

Lumet fez seu "debut" profissional no rádio aos 4 anos ( ! ) e aos 5 no palco do teatro de Arte Iídiche. Como criança, atuou em muitas peças na Broadway, revelando-se depois um garoto prodígio em "Dead End" (Beco sem Saída), louvada peça de Sidney Kingsley roteirizada para a tela por Lilian Hellman (1937), com fotografia em p&b a cargo de Gregg Toland (lembremo-nos dele em "Kane", quatro anos depois). Foi um surpreendente triunfo nas bilheterias. A primeira atuação de Lumet como ator no cinema ocorreu aos 15 anos, em "Um Terço de uma Nação" (One Thing of a Nation), em 1939. Convocado para prestar serviço na II Guerra em 1942, Lumet retornou ao serviço ativo em 1946 como operador de radar na Índia e em Burma!



De volta, esse jovem de rara inteligência e muitas habilidades organizou um grupo de trabalho "off-Broadway" e tornou-se diretor, revelando indiscutível talento na direção do elenco, iluminação do ambiente e na encenação teatral como um todo. A fascinação pelo cinema já perseguia Lumet, mas só se consolidou mais adiante, depois de ter dirigido um "Summer Stock", ou seja, a produção de peças musicais durante o verão, especialmente numa estação de veraneio e com freqüência por uma "repertory company". Nesse tipo de apresentação teatral, uma companhia desempenhava várias peças regularmente ou uma seqüência alternada numa quadra do ano. Não admira ter sido Lumet convidado aos 23 anos para lecionar interpretação na prestigiada "High School of Professional Arts"!

Finalmente, o Cinema

A partir dos seus 24 anos, Lumet juntou-se à CBS, onde logo ganhou reconhecimento como um jovem e talentoso diretor. Foi quando decidiu profissionalizar-se com vistas ao seu futuro. Depois de atuar com proficiência em vários dramas veiculados pela TV, com bons índices de audiência, Lumet começou a aprofundar seus conhecimentos sobre a 7ª Arte, vendo e revendo filmes de mestres europeus e americanos e estudando teorias do cinema em voga nos anos 40, enquanto desenvolvia sua própria maneira de compreender o espetáculo cinematográfico. Depois de dirigir dramas veiculados pela TV, dentre os quais "You Are There", "Omnibus", "Best of Broadway", "Alcoa Theater" e "Goodyear Playhouse", Lumet teve sua primeira oportunidade de realizar um filme para a telona: "12 Homens e uma Sentença" (Twelve Angry Men, 1957), graças ao convite feito pelo ator e produtor Henry Fonda, um dos intérpretes desse "courtroom drama". Foi um "abre-te sésamo", pois graças à experiência vivida naquele espaço, onde os atores atuavam como membros de um júri, Lumet pôde concluir a filmagem rigidamente estruturada em 19 dias com um orçamento de apenas US$ 343,000!







Escrito para o cinema por Reginald Rose, baseado em sua própria peça, com atuação impecável dos doze jurados, o filme crítica a fragilidade e a corrupção na Justiça e no organismo policial, elementos, aliás, presentes noutros filmes do cineasta. Com a ajuda do seu "cameraman" Boris Kaufman, Lumet aproveitou vantajosamente as restrições do espaço para gerar uma tensão crescente e incomum dentro do confinamento quase claustrofóbico da sala dos jurados. O filme e seu diretor foram indicados para o Oscar e projetaram o nome de Lumet como um dos melhores realizadores dos ricos anos 50.



Sidney Lumet, Ellen Adler, and James Lipton


Embora a avaliação crítica do valor intrínseco da filmografia de Lumet variasse de filme para filme a partir de sua estréia, pois logo dirigiu "Quando o Espetáculo Termina" (Stage Struck, 1958), "Mulher daquela Espécie" (That Kind of a Woman, 1959), "Vidas em Fuga" (The Fugitive Kind, 1960) e "Panorama Visto da Ponte" (A View from the Bridge, 1961), os críticos de modo geral o viram como um diretor sensível e inteligente, possuidor de considerável bom gosto e coragem para experimentar uma variedade de técnicas e estilos, afora o talento incomum para conduzir atores e trazê-los para trabalharem em seus projetos. Sua direção segura e sensibilidade tornaram-no respeitado e mesmo admirado. Dirigiu promissores astros de Hollywood e consagrou muitos deles em seus filmes, como Andy Garcia, por exemplo, cubano naturalizado americano, em "Sombras da Lei" e Al Pacino em "Um Dia de Cão".

Como trabalhava

Lumet utilizava um método de trabalho muito raro nos dias de hoje: o cineasta sabia como seria cada seqüência, mesmo antes de rodá-la, possibilitando-lhe filmar apenas o necessário e acelerar o processo de produção. Grande parte de seus longas se passa em Nova Iorque, a cidade dos seus amores, como gostava de lembrar. Quanto a "Assassinato no Oriente Express", foi planejado em 1974 com ponto de apoio na obra de Agatha Christie e elenco formado por atrizes como Ingrid Bergman, Lauren Bacall e Vanessa Redgrave.

Senso de cinema e corte

Já "Um Dia de Cão" (Dog Day Afternoon, 1975) foi considerado obra-mestra de Lumet ao narrar com realismo e senso de cinema o drama de dois homossexuais, um dos quais se arma para roubar um banco e conseguir dinheiro para uma operação de mudança de sexo do seu companheiro. A história é incrível mas verdadeira. O pior é quando o assaltante percebe não ter chance de êxito e vê sua ação transformar-se num incidente envolvendo toda a cidade. Frank Pierson ganhou um Oscar pelo roteiro baseado em artigo escrito por P.F.Kluge e Thomas Moore. Lumet fez jus ao prêmio da Associação de Diretores e o filme foi bastante elogiado pelos críticos.

Na esteira de vários esforços diretoriais anteriores, Lumet recebeu outro prêmio pela forma como levou à tela "Um Longo Dia de Viagem dentro da Noite" (Long Day´s Journey into Night, 1962), quando aplicou uma combinação magistral de trabalho de câmara ao mesmo tempo estático e dinâmico, transformando a peça num trabalho distintamente cinemático, apesar de alguns trechos estendidos um pouco além do necessário. Afinal, a metragem original de 174min foi depois reduzida a 136min. Um "remake" para a TV foi feito em 1987, com Jack Lemmon. No elenco de "Long Day´s Journey" atuam Katharine Hepburn (a mulher viciada em drogas), Ralph Richardson, seu marido ineficiente e ator pomposo, enquanto Dean Stockwell interpreta o filho tuberculoso e Jason Robards o jovem alcoólatra. Em verdade, uma família marcada pelo infortúnio, mas o filme é uma adaptação fiel e um tanto teatral da peça de Eugene O´Neill na qual se estuda uma família problemática na primeira década do século XX, quando os recursos clínicos e psicológicos ainda engatinhavam. Lumet aceitou o desafio de dirigir um dos seus trabalhos mais longos e complexos.



A crescente reputação de Lumet se deveu também ao seu manejo inteligente dos recursos técnicos em dois filmes: "Limite de segurança" (Fail Safe, 1964), um "thriller" da Guerra Fria feito dois anos depois de "Long Day´s Journey into Night", e "O Homem do Prego" (The Pawnbroker, 1965), a história profundamente perturbadora da existência angustiada de um sobrevivente do holocausto, dono de modesta casa de penhores no Harlem de Nova Iorque. Lumet deu-lhe tratamento compassível em face do complexo tema psicológico. O personagem central vive entre suas recordações obsedantes dos campos de concentração nazistas. "Flashes" rápidos da memória são revistos subjetivamente por ele, como numa cena de impacto: sua mulher despida de joelhos numa cama, quando o marido é jogado de cabeça contra a vidraça e ele a vê apreciada por seus carcereiros...




BIBLIOGRAFIA
"Fazendo Filmes" (Making Movies), de Sidney Lumet, publicado pela Anjen Entertainment (1995) e traduzido do original pela Ed. Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1998;

"The Film Encyclopedia" (Ephraim Katz), 3rd. ed. rev. por Fred Klein e Ronald Dean Nolan, Harper-Collins Publishers, Inc., 1998;

"A Magia do Cinema" (The Great Movies), copywright 2002 de Roger Ebert e de 2003 pela Ediouro Publicações S.A.

"Halliwell´s Film Guide", 19ª ed. revista e atualizada em 2004;

Dicionário do Cinema Americano", de Olivier-René Veillon, da Publicações D. Quixote Ltda, Lisboa Codex Portugal, 1985;

"O Cinema de Hollywood", de Phippe Paraire, Liv. Martins Fontes, São Paulo, 1994;

"A Direção Cinematográfica", de Terence St. John, Arte & Comunicação, Liv. Martins Fontes Ed. Ltda (SP), 1995;

"Leonard Maltins´ Movie Guide", a Signet Book publicado pela New American Library, New York, NY, 2005-2011;

"Dictionnaire du Cinéma", de Jean Mitry, Librairie Larousse, Paris, 1965;

"Movies of the 70´s, "ed. por Jürgen Müller e Jörn Hettebrugge, www.Taschen.com 1980;

"Teorias do Cinema" (Theories of Film), de Andrew Tudor, Edições 70, Lisboa-Portugal, 2004;

"Les Plaisir des Yeux" (Ècrits sur Le Cinéma), de François Truffaut, Editions Cahiers du Cinéma, Paris, France, 2004.

"A Dictionary of Cinema", de Peter Graham, A. S. Barnes & Co. Inc., New York, NY, 1968, e

"The American Cinema", de Donald E. Staples, NY University, Voice of America Forum Service, 1973.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

STANLEY KRAMER: OUSADIA E COMPETÊNCIA TÉCNICA

Poucos cinéfilos deste nosso tempo se dão conta da importância de Stanley Kramer, produtor-diretor dos melhores de quantos brilharam no cinema hollywoodiano e se projetaram além-mar. Se apreciadores da 7ª Arte forem ler esta biofilmografia de Kramer, antes uma homenagem póstuma deste crítico no Caderno de Cultura ao renomado cineasta, e recorrer às nossas distribuidoras para aquisição ou locação de alguns de seus filmes, poderão aquilatar melhor o valor intrínseco do cinema de Kramer. Assim também a sua permanência em artigos de revistas estrangeiras ou em revisões feitas por cineclubes americanos ou europeus, graças aos quais se preserva para as novas gerações a memória crítica dos filmes de ontem e de seus mestres ou “filmmakers”.

Há tempos vínhamos sentindo a ausência de Kramer neste espaço matutino, pois escolhas diversas não significam esquecimento ou preferências nossas por outros nomes, mas, sim, necessidade de mais pesquisas e referências sobre a importância do cineastra nova-iorquino no mundo do cinema. A exemplo dos nossos textos sobre Welles, Kubrick, Bergman, Resnais, Truffaut, Malle, Riefenstahl, Scorsese, Losey, Godard, Mulligan, Eastwood, Dmytryk, Siegel, Winkler, dentre outros, impunha-se há tempos o nome do nosso homenageado.

Pontos de Partida

Stanley Earl Kramer nasceu em 29 de setembro de 1913 na cidade de Nova Iorque, próximo à vizinhança de classe trabalhadora de Manhattan conhecida como “Cozinha do Inferno” (Hell’s Kitchen). Filho de pais divorciados, Kramer foi criado pela avó materna, fã do filme mudo. Além disso, a família Kramer tinha duas ligações familiares com a crescente indústria do cinema. A primeira porque a mãe do jovem Kramer trabalhava como secretária da Paramount Pictures, fundada em 1912 por Adolph Zukor (1873 - 1976), imigrante húngaro chegado aos EUA em 1888.
Trabalhador incansável, Zukor foi capaz de dar duro como encarregado de toda limpeza de uma loja onde se vendem peles até vir a ser sócio e depois o dono de um próspero e idêntico negócio em Chicargo. Em 1903, aos 30 anos, aventurou-se num negócio novo, espécie de caça-níqueis, para terminar como tesoureiro de vasta cadeia de salas de cinema... Fez fortuna como distribuidor do filme “Rainha Elizabeth”, produção européia em quatro carretéis e investiu os lucros para fundar sua própria companhia, a “Famous Players”.
A segunda ligação familiar era a do tio Earl, funcionário da Universal e depois agente em Hollywood. Enquanto isso, o jovem Kramer ia absorvendo essa ambiência cinematográfica ou psicofísica da família, embora sua intenção a certa altura fosse seguir a Faculdade de Direito. Um artigo, porém, de sua lavra, muito bem escrito sobre cinema, em seu ultimo período na Universidade da Nova Iorque, na qual se martriculara alguns anos antes, propiciou-lhe uma bolsa de estudos no Departamento de Histórias da 20th Century Fox.

Novo Rumo Profissional

Terminada a bolsa, Kramer decidiu ampliar suas perspectivas e horizontes profissionais, mudando-se para Hollywood, chamada já de Meca do Cinema, com vistas a apreender tudo quanto se relacionava com cinema, desde conhecer os camarim dos atores, os cenários, as salas de projeção e as câmaras profissionais, as fontes de iluminação, os laboratórios e o Departamento de Cortes ou sala de edição, como preferem outros. Depois de certo tempo, Kramer passou a trabalhar no Departamento de Histórias da Columbia Pictures e em 1941 já atuava como assistente de produção para o diretor John Cromwell (1888 - 1979) no filme “Náufragos” (So Ends our Night, 1941) e para o produtor-diretor Albert Lewin (1894 - 1968) em “Um Gosto e Seis Vintens” (A Moon and Six Pence, 1943).

Aprendiz na II Guerra

Kramer foi convocado para o serviço militar aos 30 anos, em 1943, em plena II Guerra, e passou o próximo biênio trabalhando numa unidade de cinema documentário do exército dos EUA em Nova Iorque, onde veio a conhecer o renomado escritor Carl Foreman, cujas ambições profissionais iam além de simplesmente atuar no Departamento de Histórias de algum estúdio. Em 1948, Kramer organizou a “Screen Plays Inc.”, companhia independente em parceria com Foreman, o escritor Herbie Baker e o publicitário George Glass. A novel companhia independente conseguiu levantar dinheiro de investidores privados, ao invés de fazê-lo via Bancos, mas seu “debut”, a comédia “Era uma Vez uma Herança” (So This Is New York, 1948), dirigida por Richard Fleischer (1913 - 78), alcançou pleno êxito devido à orientação e assistência de Kramer, a quem coube também a direção das lutas de pugilismo e uma cena-chave da montagem. Quanto ao produtor Foreman, ficou convencido da competência de Kramer não só na condução dos atores mas na sua noção de fluência narrativa e o colocou no mapa...

Firma-se Kramer

“O Invencível”, recorde-se, enfoca um pugilista auto-destrutivo interpretado por Kirk Douglas, e a repercussão obtida junto ao público e à crítica levou o filme a receber seis indicações para o Oscar, incluindo-se a de Melhor Filme e Melhor Ator, afora a consagração de Douglas. Num relance, Kramer surgiu para a indústria cinematográfica como um produtor digno de ser observado. Seu filme seguinte como produtor e com direção de Mark Robson, “Clamor Humano” (Home of the Brave, 1949), uma drama sobre o odioso preconceito racial na II Guerra e fora dela, foi considerado tão ousado à época a ponto de ter sido rodado em segredo (!). Mas, tão logo foi lançado no circuito exibidor, firmou Kramer como um dos mais ousados e competentes produtores dos filmes dos anos 40 em Hollywood, merecedor de prêmios dos críticos e louvores daqueles cujos olhos estão sempre voltados para os êxitos de bilheteria...

É preciso “ler” o filme...

Já se faziam bons filmes à época e estes já estavam ao alcance de platéias adultas capazes de pensar e ver o cinema também como arte da elipse na qual importa sugerir mais e mostrar menos e onde o filme vale por tudo quanto pretende dizer e pela forma como diz isso. Tal como se Kramer, uma das cabeças pensantes de todos esses êxitos, lhes estivesse transmitindo intuitivamente, no plano das imagens em movimento, algumas das conclusões à qual chegaram os participantes do Congresso Internacional para a Revisão do Método Crítico realizado em Bruxelas, em 1947.
Assim, Kramer seguiu suas diretrizes em 1950 com “Espíritos Indômitos” (The Men, 1950), uma história provocativa acerca de veteranos paraplégicos, a qual também assinalou o “debut” cinematográfico de Marlon Brando. O único infortúnio do lançamento, escreveram alguns analistas, foi o lançamento da película no mesmo dia da entrada dos EUA na Guerra da Coréia, e isso tornou seu tema impossível de “vender” a um público nervoso e incerto quanto ao futuro, apesar de Brando e seus coadjuvantes se terem saído bem sob os olhos atentos de Zinnemann e Kramer.

Cohn Vai a Kramer

Harry Cohn ou Harry the Horror, o irritadiço presidente da Columbia Pictures, era também um déspota (recordem-se seus desentendimentos com Welles quando das filmagens de “A Dama de Shanghai”, de 1946), mas decidiu aproximar-se de Kramer com uma oferta generosa e surpreendente: Kramer produziria filmes para o seu estúdio e ele mesmo teria escolha livre quanto aos temas escolhidos, enquanto a Columbia os financiaria, contanto não se fosse além dos US$ 980,000 dólares: ele poderia exceder o orçamento em casos excepcionais, mas somente com o aprovo de Cohn. Kramer, é claro, aceitou a oferta mas começou a trabalhar nos estúdios um pouco mais tarde nesse ano, pois estava terminando uma última produção independente, o drama “Matar ou Morrer” (High Noon, 1950), um “western” de primeira linha dirigido por Fred Zinnemann com Gary Cooper no papel principal.

Sombras do Macarthysmo

Distribuído em 1952 pela United Artists, “Matar ou Morrer” atraiu o chamado grande público, tornando-se um dos mais populares e consistentemente um dos mais estudados e analisados de todos os “Westerns” feitos até então, quando a venda de ingressos crescia tanto quanto as referências favoráveis ao filme, nestas incluídas as de Melhor Ator para Gary Cooper e as indicações ao cobiçado Oscar. Mas “High Noon” marca também, em outubro de 1951, o fim de uma grande parceria de Kramer com Carl Foreman – o escritor estava sob pressão para testemunhar acerca de seu envolvimento com o Partido Comunista no passado. Kramer defendeu o amigo, mas preferiu dedicar-se mais à sua empresa, a Screen Plays Inc., e evitar chateações com a histeria anticomunista, onde se buscavam subversivos até debaixo das camas e outros “culpados por suspeita”... Basta recordar aqui os filmes críticos de Irwin Winkler, de 1991, pois não teve condições de filmá-lo antes, e de “Boa Noite, e Boa Sorte” (Good Night, and Good Luck, 2005), de George Clooney.
Mesmo com “Matar ou Morrer” faturando milhões de dólares, os demais filmes de Kramer na Columbia não conseguiam saldar as contas. Não quer isso dizer fossem eles medíocres ou incapazes de assegurar a atenção dos críticos – os filmes simplesmente não afinavam com o gosto do público. Alguns poucos, como “A Morte do Caixeiro Viajante” (Death of a Salesman, 1951), com direção de Laszlo Benedek, eram considerados muito frios ou depressivos em seu tema e este foi pixado por grupos de extrema direita porque atacavam a livre empresa e portanto eram comunistas na sua mensagem subliminar (ou no subtexto, como se prefere dizer hoje)... Enquanto outros, tais como “Volúpia de Matar” (The Sniper, 1952) e “O Malabarista” (The Juggler, 1953), este o primeiro longa a ser rodado em Israel, ambos de Edward Dmytryk, “Cruel Desengano” (Member of the Wedding, 1952), de Fred Zinnemann, “O Selvagem (The Wild One, 1953), também de Benedek, e “Os 5.000 Dedos do Dr. T.” (The 5000 Fingers of Dr. T., 1953), de Roy Rowland, eram demasiado modernos e desafiadores para serem absorvidos pela massa de espectadores.

Êxitos do Produtor

Apesar de todas as perdas financeiras da Columbia, o tempo foi favorável para a maioria dos filmes feitos então por Kramer, os quais estiveram entre os melhores e os mais duradouramente interessantes gerados pela Columbia nos primeiros meses dos anos 50. “O Selvagem”, por exemplo, como registra Bruce Eder em sua magnífica biofilmografia, foi um olhar surpreendentemente precoce para algumas das forças de inquietação social e da hipocrisia da classe média, a qual cresceria com plena força uma década depois. “Os 5.000 Dedos do Dr.T.” era uma fantasia em technicolor sobre crianças e suas frustrações e “Cruel Desengano” é visto hoje como um dramático “tour de force” para Julie Harris e um triunfo diretorial de Zinnemann. Harry Cohn era crítico da maioria desses projetos, mas não tinha forças para impedir Kramer de levá-los a cabo, enquanto ele se mantivesse nos limites estreitos do orçamento – os filmes de Kramer representavam um oceano de tinta vermelha nos livros contábeis da Colúmbia. Nesse mesmo ano de 1953, Cohn e Kramer estavam ambos ansiosos para encerrar esse contrato de cinco anos.

Produtor se despede

Para seu último filme, conforme anota Leder, Kramer decidiu adaptar e produzir o “bestseller” de Herman Wouk, “The Caine Mutiny” (1955), com enfoque na vida a bordo de uma belonave durante a II Guerra Mundial. O Departamento da Marinha já havia rejeitado sugestões (ou “overtures”, como se diz discretamente) da MGM e da Fox para participarem ou cooperarem na adaptação e filmagem do livro odiado unifomemente pela Marinha, pois o consideravam injusto e ridículo de si mesma. Isso levou Kramer a negociações simultaneamente ousadas e delicadas para assegurar a promessa de assistência por parte da Marinha, enquanto garantia tornar a história desse motim a bordo tão imparcial para a Marinha dos EUA quanto pudesse ser.
Tão logo obteve a promessa de cooperação do Departamento da Marinha, Kramer assegurou os serviços de um elenco de astros como protagonistas: Humphrey Bogart, Van Johnson, Fred Mac Murray e Jose Ferrer. A bordo com eles, Kramer pôde ir até Cohn numa posição de força e o chefe do estúdio ficou impressionado com os passos dados até então para a realização do filme. Cohn tinha a sua própria agenda para a película, mas estava interessado em usar “The Caine Mutiny” para receber de volta tudo quanto a Columbia havia investido nos primeiros dez filmes de Kramer – a tanto obriga a “auri sacra fames!” ou “a execrável fome do ouro!”, como diziam os latinistas, ou “l’argent, toujours l’argent”, como queria Jean-Pierre Melville, quando discutia algum tema dos seus filmes com cineclubistas parisienses...
O produto Walter Shenson, ex-publicitário dos filmes e um dos empregados de confiança de Cohn, recordou quarenta anos depois como Cohn cuidou pessoalmente de mostrar-lhe como o orçamento de Kramer estava reduzido até os ossos, não mais de dois e meio milhões de dólares e um tempo máximo de duas horas de projeção. Foi quando Kramer negociou também sutilmente um pouco mais para cima, os 125 min... Mas, mesmo assim, nada no livro, fora do absolutamente essencial ao enredo, poderia ser incluído no filme. Kramer, porém, deixou algo nas estrelinhas para quem sabe “ler” e o filme resultante, dirigido por Edward Dmytruk, foi um sucesso, tanto da crítica quanto comercialmente, pois faturou 11 milhões de dólares em lucros, apagando todas as perdas de Kramer nos livros do estúdio.

Kramer como Diretor

Com o fim do seu contrato com a Columbia, Kramer voltou-se à produção independente e decidiu tentar a cadeira de diretor para ver se ainda cabia nela... Como produtor atento, Kramer já assimilara conhecimentos técnicos do fazer cinematográfico, já atuara atrás das câmaras, nos laboratórios, sentia-se íntimo do metiê, já estudara as teorias do cinema, a noção de ritmo, o valor intrínseco das imagens em movimento e da interação dos planos, fora assíduo na sala de cortes e já aprendera a lição segundo a qual ver um filme é antes de tudo compreendê-lo. E quando as imagens são captadas e postas num filme, o diretor não mais responde por elas. Kramer começou como “regisseur” com um drama médico de caráter sentimental e melodramático em torno das vidas de muitos personagens interconectados, na esteira de séries levadas ao rádio e à TV e chamadas de “soap opera”, porque eram patrocinadas pela indústria de sabonetes. O filme se intitula “Não Serás um Estranho” (Not as a Stranger, 1955), com Robert Mitchum, Olivia de Havilland e Frank Sinatra nos papéis-chave e o filme provou o acerto das escolhas de Kramer e o pleno êxito nas bilheterias, reforçando suas credenciais no “box office”. A duração de 135mim também antecipou de certa forma as dimensões das futuras produções de Kramer.

Ainda nos anos 50

Seguiu-se-lhe o comercialmente satisfatório drama de guerra de elevado perfil, “Orgulho e Paixão” (The Pride and the Passion, 1957), com Cary Grant, Sopjia Loren e novamente Sinatra com quem Kramer acabou desentendendo-se pelos problemas criados pelo ator-cantor sugestivos de mau-caratismo, conforme referido na entrevista concedida por Kramer ao jornalista John Stanley republicada mais adiante. Em 1957, Kramer sentiu-se novamente confortável ao espalhar suas asas em áreas controversas de uma filmagem: no despertar do “Alarme Vermelho” e na lista negra da qual resultou uma relação com centenas de nomes de funcionários ligados à indústria cinematográfica, embora os produtores desde fins dos anos 40 tendessem a esquivar-se de material abertamente controverso ou desafiador dos pressupostos do auditório. Apesar de suas convicções abertamente liberais, Kramer jamais tinha sido tocado pela lista negra ou pelo “Alarme Vermelho”. Seus filmes haviam tido piquetes de rua numa ocasião no início dos anos 50, mas nenhuma das acusações de ele ser subversivo tinha qualquer procedência: Kramer nunca fora de interesse dos investigadores em Washington, principalmente porque nunca pertenceu ao Partido Comunista nem tinha ligação com outros investigados pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso dos EUA, mais conhecido pela sigla HUAC, como o escritor Carl Foreman - esse fato tornou Kramer suspeito nos círculos esquerdistas, mas isso não o impediu de fazer filmes.

A Ruptura com Sinatra

“Tenho sido acusado”, Kramer disse ainda ao jornalista John Stanley, “de supersimplificar alguns dos temas dos meus filmes e de estar do lado errado da cerca... Tenho sido chamado de um liberal descartado de Hollywood. Fui um ‘dogooder’, ou benemérito, ao fazer filmes sobre problemas psicossociais contemporâneos e tive um estigma agregado ao meu trabalho como cineasta. Fui um produtor em busca de valores e isso nem sempre é sadio para as bilheterias”. “Houve certas coisas”, prossegue Kramer, “nas quais acreditei e nunca as questionei, certas ou erradas, Quando cresci durante a Depressão, vi Roosevelt salvar este país. Fui testemunha de uma revolução e ela deixou impressões duradoras em mim – e pontos-de-vista que eu desejava expressar quando me tornei produtor de filmes. Mas hoje não estou tão seguro de mim mesmo.”
“Stanley inclinou-se e mirou-me diretamente nos olhos”. ‘Alguma coisa me confundiu. Estou confuso em relação a valores. Hollywood já não é mais a mesma. Passamos pelo assassinato de Kennedy, Watergate e Nixon, conflitos racionais, vôos para Lua e Marte... Em que inferno realmente estamos? Francamente não sei. Assim estou assumindo agora uma posição investigatória, estou procurando, estou vendo e talvez esteja aprendendo alguma coisa’.”
“Kramer não parava de falar enquanto passava rápido de uma frase para outra”: ‘Tive minha partilha de diferença com as pessoas. Quer com o Almirante Hyman Rickover, com a Legião da Decência, o Departamento de Estado ou com os fundamentalistas, os quais me chamaram de o Anti-Cristo depois do filme ‘O Vento Será Tua Herança’. Mas também tenho orgulho de dizer: oito escritores convocados para depor no Comitê de Atividades Anti-Americanas --- escritores com quem trabalhei nos anos 40 --- adaptaram alguns dos meus pontos-de-vista para sua defesa. Pensei que John Wayme fosse ter um bebê depois de ‘Acorrentados’... Calculo ter sobrevivido a pelo menos 80 ‘grandes’ tendências importantes em Hollywood.”

O Fim dos Tempos?

As auto-incriminações de Kramer, conforme registra Stanley, prosseguiram dessa forma por mais algum tempo, quando ele começou a mencionar títulos de sua filmografia: “O Vento Será Tua Herança”, uma versão ficcional na qual o darwinismo foi lançado contra o criacionismo da Bíblia, no qual muitos ainda acreditam, apesar do ridículo envolvendo um paraíso (sic), Adão e Eva, Caim matador de Abel, a serpente falante, etc. etc. Filme aplaudido pela crítica, mas um desastre financeiro. “A Hora Final” (On the Beach, 1971) resultou num dos meus maiores êxitos como cineasta, ainda que alguns críticos zoilos me tenham acusado de exageros e afirmado ser impossível uma guerra com bombas atômicas capaz de destruir o planeta... “Como são sábios para vislumbrar o futuro deste mundo louco no qual vivemos!...”
“Agora”, descreve o entrevistador Stanley, “chegou minha vez de discutir alguns filmes de Kramer como eu os vi, pois ele concordou comigo que ‘Matar ou Morrer’ (High Noon, 1950) tinha sido uma forma de o roteirista Carl Foreman criticar metaforicamente o fiasco da ‘lista negra’ do Macarthysmo hollywoodiano dos anos 50...” “Carl”, acrescentou Kramer, “havia corrido atrás de todos os seus amigos para ajudar e todos lhe tinham virado as costas (reflexo dessa hora sinistra e do mau caráter ou tibieza de outros, assim como o fizeram em relação a Gary Cooper no filme citado”. “E finalmente houve meu momento para dizer a Kramer quanto ‘Orgulho e Paixão’ tinha significado para mim lá em 1957”.

Mau Caratismo

“Como você finalmente pôde editar o filme se Sinatra o desertou com cenas importantes ainda por filmar?” Pelo menos me senti bastante corajoso para fazer essa pergunta. “Kramer explicou-me que, depois de várias ameaças e discussões entra os advogados, Sinatra concordou em vir meses depois até meu estúdio à prova de som em Hollywood e fazer apenas algumas cenas para permitir que o editor do filme concluísse o trabalho de montagem...” Kramer manteve-se distante de Sinatra e nunca relaxou.
“Kramer e Sinatra mal se falavam e nunca mais se falariam depois da filmagem da pós-produção já referida. Kramer ficou extremamente enraivecido com as atitudes de Sinatra e nunca as esqueceu... e levou para Roslyn, onde então morava, esse ódio crescente acalentado por ele. “The Runner Stumbles, 1979”, concluído por ele depois de nossa entrevista, foi um filme que acabou tropeçando quando chegou aos cinemas americanos. Ninguém estava lá para ver. Ninguém se importaria se Dick Van Dyke estivesse lá, retornando ou não ao cinema. Para Van Dyke isso só ocorreria com a série de TV ‘Diagnosis Murder’. “E quanto a Kramer, não faria ele mais filmes depois de “The Runner Stumbles”? O fato é que Kramer nunca mais encontrou lugar no mundo de Hollywood perdido por ele em fins dos anos 70. O que quer que ele esteve pensando cinematicamente não pôde ser achado; quanto a seu ódio a Sinatra, tenho estado dizendo isso nestes últimos dias, algo que Kramer levou com ele até a sepultura, quando morreu de pneumonia em Woodland Hills, California, no Nursing Home da Motion Pictures aos 88 anos.”
Quanto a “The Runner Stumbles”, trata-se de história real sobre um padre católico acusado de, nos anos 20, assassinar uma freira por quem tinha forte atração romântica. Para a crítica de então, “uma exumação bolorenta de um caso verídico, de pouco interesse e pouca significância. Boa interpretação dos atores e boa fotografia não salvam um filme. Para Paul Taylor (MFB), esse último filme de Kramer é o cadáver reanimado de uma pretensão de pessoas convencionais, o ritmo é funéreo, ângulos baixos portentosos e simbolismo mais do que necessário. Há mais altos que baixos no cinema de Kramer, apesar dos seus 70 anos. Infelizmente, seu último filme se chamou “The Runner Stumbles”...
Um dos seus muitos admiradores, o fotógrafo Ernest Laszlo, de “A Nau dos Insensatos” ( A Ship of Fools, 1965), diria depois alto e bom som: “Desapareceu para sempre um dos melhores ‘filmmakers’ já produzidos pelo cinema hollywoodiano. Poucos se lhe igualam em conhecimentos do metiê, proficiência, organização, seriedade, compromisso com a palavra assumida, compreensão das dificuldades de convivência entre pessoas e sua visão do mundo no qual vivemos, embora não tenhamos pedido para nascer...”

Terra Ingrata

Para concluir valemo-nos mais vez de Bruce Eder: “Kramer foi tratado como um anacronismo estranhamente liberal pela comunidade fílmica e considerado, juntamente com a maioria dos seus filmes, como relíquia de uma época mais estável e mais mansa. Em 1977, Kramer relocalizou sua família em Seattle, fora dos negócios de cinema, escrevendo e ministrando aulas. No começo dos anos 90, retornou a Hollywood com a intenção de novamente produzir e dirigir filmes, mas seus planos não puderam concretizar-se. Em 1997, quatro anos antes de sua morte, Kramer publicou sua autobiografia, ‘It’s a Mad Mad Mad Mad World’, no qual seu fervente liberalismo não diminuíra. Inadvertidamente também revelou ter estado fora daquele toque mágico da urbe e escrevendo (admiravelmente, acresça-se, sobre os grupos de protestos e estudantes ativistas – mas com alguma tristeza, é claro, pois é preciso imaginar precisamente a quais campos de atividades Kramer estava-se referindo no indicativo presente durante os saudosos anos 70, quando ainda nos deixou, nos seus derradeiros filmes, um legado enriquecedor para as novas gerações. Edward Dmytryk, realizador de quase 60 filmes, dirigiu vários deles produzidos por Kramer e em seu valioso livro sobre Direção Cinematográfica registrou um lampejo de Kramer, de quase gênio, quando valorizou sobremaneira o trabalho conjunto do elenco ao indicar Humphrey Bogart para interpretar o psicótico e vulnerável Capitão Queeg em “A Nave da Revolta” (The Caine Mutiny”), do qual já tratamos nestas linhas. Um filme, aliás, indispensável numa coleção de películas fora-de-série em DVD. A filmografia de Kramer, tanto a de sua atuação como produtor e diretor, pode ser lida no fim deste artigo e oferecer outras escolhas para quem não conhece (ou conhece muito pouco) a carreira de Stanley Earl Kramer, nosso emérito homenageado deste Caderno.




Fique por Dentro

FILME NOIR, Literalmente, filme escuro ou negro. O termo foi cunhado para descrever um tipo de filme caracterizado pelo seu tom sombrio e cínico, pelo clima ou atmosfera pessimista. O termo deriva de “roman noir”, de “black novel” denominado pelos críticos franceses dos séculos XVIII e XIX para descrever a novela gótica inglesa. Especificamente, o filme noir foi cunhado para expor aquelas películas hollywoodianas dos anos 40 e começo dos 50, os quais retratavam o submundo escuro e lúgubre da corrupção e do crime, filmes cujos “heróis” e vilões são cínicos, desiludidos e com freqüência pessoas solitárias e inseguras, inextricavelmente presas ao passado sombrio ou apáticas quanto ao futuro. Em termos de estilo e técnica, o filme noir se caracteriza pela abundância de cenas noturnas, tanto nos interiores como nos exteriores, os cenários sugerem um realismo sombrio e a iluminação enfatiza sombras profundas e acentua a atmosfera fatalista. Os tons escuros e a tensão do nervosismo são intensificados pela coreografia oblíqua da ação e pelas composições e ângulos de câmara sugestivamente aflitivos.
Alguns analistas situam o nascimento do filme noir em 1938, com a realização de “Cais das Sombras” “(Quai dês Brumes), com Jean Gabin e Michelle Morgan nos papéis-chave, e de “Hotel do Norte” (Hotel Du Nord), com Annabella e Jean-Pierre Aumont, ambos de Marcel Carné (1909-96) e daquele mesmo ano, e “Trágico Amanhecer” (Le Jour se Lève, 1939), também de Carné, com Gabin e Arletty. Seguiram-se-lhes centenas de clássicos a franceses, ingleses e americanos, dos quais se podem destacar “Relíquia Macabra” (The Maltese Falcon, 1941) e “Paixões em Fúria” (Key Largo, 1948), ambos de John Huston; “A Dama de Shanghai” (The Lady from Shanghai, 1948), de Orson Welles; “A Dama Fantasma” (The Phantom Lady, 1944), de Robert Siodmak; “A Meia Luz” (Gaslight, 1944), de George Cukor; “Até à Vista, Querida” (Murder my Sweet, 1944) e “Acossado” (Cornered, 1945), ambos de Edward Dmytryk; “Águas Tenebrosas” (Dark Waters, 1944), de Andre De Toth; e “Fuga do passado” (Out of the Past, 1947), de Jacques Tourneur, para ficarmos só em alguns deles.

Filmografia de Stanley Kramer

Como Produtor:
(01) “Náufragos” (So Ends our Night, 1941), de John Cromwell;
(02) “Um Gosto e Seis Vintens” (The Moon and Six Pence, 1942), de Albert Lewin;
(03) “Assim é Nova Iorque” (So This Is New York, 1948), de Richard Fleischer;
(04) “O Invencível” (The Champion, 1949), de Mark Robson;
(05) “Espíritos Indômitos” (The Men, 1950), de Fred Zinnemann;
(06) “Cyrano de Bergerac” (Cyrano de Bergerac, 1950), de Michael Gordon;
(07) “A Morte do Caixeiro Viajante” (Death of a Salesman, 1951), de Laszlo Benedek;
(08) “Volúpia de Matar” (The Sniper, 1952), de Edward Dmytryk;
(09) “Matar ou Morrer” (High Noon, 1952), de Fred Zinnemann;
(10) “Meus Seis Criminosos” (My Six Convicts, 1952), de Hugo Fregonese;
(11) “O Amor, Sempre o Amor” (The Happy Time, 1952), de Richard Fleischer;
(12) “Leito Nupcial” (The Four Poster, 1952), de Irving Reis;
(13) “O Selvagem” (The wild One, 1954), de Laszlo Benedek;
(14) “A Nave da Revolta” (The Caine Mutiny, 1954), de Edward Dmytryk;
(15) “O Malabarista” (The Juggler, 1953), de Edward Dmytryk;
(16) “Tormentos d’Alma” (Pressure Point, 1962), de Hubert Cornfield;
(17) “Os 5.000 Dedos do Dr.T.” (The Five Thousand Fingers of Dr.T., 1952), de Roy Rowland; e
(18) “Minha Esperança É Você” (A Child Is Waiting, 1963), de John Cassavetes.

Como Diretor:
(01) “Não Serás um Estranho” (Not as a Stranger, 1955);
(02) “Orgulho e Paixão” (The Pride and the Passion, 1957);
(03) “A Hora Final” (On the Beach, 1959);
(04) “O Vento Será Tua Herança” (Inherit the Wind, 1960);
(05) “Julgamento em Nuremberg” (Judgement at Nuremberg, 1961);
(06) “Deu a Louca no Mundo” (It’s a Mad Mad Mad Mad World, 1963);
(07) “A Nau dos Insensatos” (Ship of Fools, 1965);
(08) “Adivinhe Quem Vem para Jantar” (Guess Who’s Coming to Dinner, 1967);
(09) “O Segredo de Santa Vitória” (The Secret of Santa Vittoria, 1969);
(10) “R.P.M.” (R.P.M. 1970);
(11) “Abençoai as Feras e as Crianças” (Bless the Beasts and the Children, 1973);
(12) “O Poço do Ódio” (Oklahoma Crude, 1973);
(13) “As Pedras do Dominó” (The Domino Principle, 1977); e
(14) “The Runner Stumbles” (Sem título em Português), 1979.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

“A Memory of Stanley Kramer”, de John Stanley in “The Columnists.com”, 2004;
“Stanley Kramer, a Biography/All Movie”, de Bruce Eder 4/3/2010;
“Le Cinéma de Stanley Kramer”, artigo de Yves Bourgoin transcrito em boletim do cineclube de Rouen, 1965;

PARA SABER MAIS
“The Film Encyclopedia”, 3rd. Ed..ed. by F.Kline & R.D.Nolan, Harper’s Perennial, New York, NY, 1998;
“Cinema, Year by Year”, 1894-2004, edited by Robin Karney, Amber Books, Ltd., 1994;
“The World of Films & Filmmakers”, ed. By Don Allen, com prefácio de François Truffaut, 1979;
“The Encyclopedia of Hollywood”, de Scott & Barbara Siegel, Avon Books, New York, 1990, e
“Lire les Images du Cinéma”, de Laurent Julliet et Michel Marie, Editions Larousse, Paris, 2007.

OPINIÕES
“A realização de um filme de qualidade não depende apenas de recursos financeiros em mão, depende antes dos conhecimentos e da sensibilidade que o diretor traz para o veículo. Kramer era um dos raros homens de cinema em quem se podia crer nisto.”

Wálter Hugo Khoury (Palavras pronunciadas quando da apresentação de um filme de Stanley Kramer em Campinas, SP, 1965).

“Assistir a um filme de Stanley Kramer, como o de qualquer bom diretor, é apreender algumas das qualidades intrínsecas ao espetáculo cinematográfico, pois as imagens de um filme falam por si sós e passam a existir e a significar independentemente da vontade do realizador”.

Darcy Xavier da Costa (Palavras do saudoso Presidente do CCF, quando abria o debate sobre um dos filmes de Kramer em exibição, 1965).

“Sempre admirei Kramer, profissional sem jaça, amigo dos amigos, democracia autêntico, inimigo das ditaduras de qualquer matiz, admirador de Roosevelt e defensor intransigente da liberdade de expressão. Em certa época, ele poderia ter sido bem sucedido na política: ganharíamos um novo padrão ético, mas perderíamos o cineasta.”

Edward Dmytryk (Trecho extraído de uma declaração do cineasta nos tempos ominosos do Macarthysmo e encontrado nos arquivos do pranteado Cosme Alves Neto, curador do MAM do Rio de Janeiro, 1970).



Filmes de Solanas

“TANGOS: EXÍLIO DE GARDEL”
A Metáfora do Tempo Redescoberto

Transcrevemos a seguir dois comentários nossos publicados no “O Povo” e neste Diário do Nordeste em fins dos anos 80, acrescidos dos respectivos subtítulos de “A Metáfora do Tempo Redescoberto”, à moda de Proust, e “Sur, a Poética do Reencontro”. As duas críticas complementam a matéria deste Caderno de Cultura, à época enviadas ao cineasta Fernando Solanas, com quem mantivemos proveitoso encontro, quando visitou Fortaleza com sua mulher Ângela Correia, atriz brasileira.




Depois de “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, e “Camila”, de Maria Luísa Bemberg, êxitos junto à crítica e público nos grandes centros, brinda-nos agora o cinema argentino, pelas mãos desse admirável Fernando Solanas, com outro filme de primeira água e de concepção eminentemente cinematográfica, enriquecido pela música e pela dança. Capaz de provocar reflexões em nível adulto e ampliar o universo referencial do espectador atento, abrindo-lhe perspectivas e até novas maneiras de ver, “Tangos, o Exílio de Gardel” (Tangos, L’Exil de Gardel) fez jus a vários prêmios de Melhor Filme em 1985 em Biarritz, Veneza, Cannes, para só ficarmos nos mais importantes.









“Tangos” pode ser visto como a metáfora da intricada e trágica problemática argentina, agudizada pela crise econômico-financeira e psicossocial do nosso tempo, a partir talvez de 1955, na esteira da qual vieram os seus caudilhos, demagogos corruptos e ditadores militares impiedosos, e todas as seqüelas irremovíveis de sua passagem. Gardel, na realidade jamais exilado, simboliza no filme a alma do povo argentino banido dentro de sua própria pátria e também fora dela, lutando para adaptar-se a circunstâncias desfavoráveis. Cantor da liberdade, espírito humanista por excelência, Gardel por certo repundiaria o sistema repressor retratado por Solanas. A presença de Gardel se fortalece com a do libertador San Martin, este, sim, exilado por 25 anos numa cidadezinha francesa. O recurso a essas duas figuras míticas insere no filme um toque de realismo fantástico, no dizer de um crítico, capaz no entanto de fundamentar os subtemas insinuados ao longo de 125 minutos de projeção.

O enredo é simples mas rico de subtexto: em plena repressão dos anos 70, a bailarina Mariana, exilada em Paris, se reúne com outros argentinos para montar uma “tanguedia”, mistura de tango e tragicomédia. O texto da peça vai sendo armado aos poucos vindo de Buenos Aires, escrito em pedaços de papel ou guardanapos de restaurante por um poeta de vanguarda chamado de Juan Uno, para quem “a decisão de ser é sempre um risco”, “a decisão já é quase um êxito”, “resistir é preciso”… A bailarina, provavelmente viúva, mora com a filha adolescente e um garoto, em pequeno apartamento alugado. Seu companheiro é Juan Dos, irmão do poeta, bandoneonista e compositor. Os exilados precisam de apoio financeiro para levar a peça ao teatro e ainda não dispõem do final a cargo de Juan Uno.





Os ensaios são montados de forma invulgar com “flashes” da realidade quotidiana e as dificuldades enfrentadas pelo grupo para sobreviver longe da pátria. Daí a fraude nos telefones públicos e esparsos momentos cômicos, cenas de rua, ensaios na praça, a conversa no trem antes da melancólica visita ao túmulo de San Martin em Boulogne-Sur-Mer, as tentativas da mulher de um exilado para tentar localizar a neta desaparecida, o adeus de Juan Dos aos filhos na estação ferroviária, o encontro da bailarina com a amiga, mulher de membro da embaixada – esta a fazer-lhe insinuações sobre seu comportamento, dizendo-lhe haver muito exagero nos protestos dos exilados: “Já não se tortura tanto como antes em Buenos Aires, a gente acaba se acostumando”…

A narrativa se faz através de 13 quadros com nomes graficamente impressos, alguns deles precedidos por tema melódico introduzido por duas jovens, uma delas filha de Mariana. São eles: “Miséria em Paris”, “Tanguedia del Angel”, “Cartas del Exílio”, “La Poética de Juan Uno”. Pertencem estes ao chamado Ato I. Vêm depois “Uno em Buenos Aires” (trocadilho com o nome do personagem Juan Uno e o tango homônimo de Discépolo), “Tangos de Papel”, “Eran dos Exílios”, “Ausências”, “Milonga Loca”, “La Ultima Tanguedia”, “Solo” e “Volver”. A falta de um final para a peça cria conflitos e ganha valor de signo, aqui entendido o termo como todo objeto representativo de algo distinto de si mesmo, como a suástica significando o nazismo abjeto, a foice e o martelo, a ditadura sanguinária de Stalin, a cor vermelha no sinal de trânsito significando Pare!, etc. O final não chega nunca de Buenos Aires, talvez nem exista ou possa ser escrito. Tampouco existe saída para a própria situação argentina vivida à época. Como pensar então em eleições diretas para a Presidência da República e volta ao poder civil? Vão mais além as imagens do filme, tornadas sugestivas e reveladoras.





O drama político-social argentino, não se sabendo bem como terminará, é o drama do próprio continente latino-americano, dizimado, segundo o professor exilado, doublé de ator, pelos “esquemas neocolonialistas”. Ponto culminante é a passeata pelas ruas de Paris com muitas mulheres reproduzindo as marchas das mães da Plaza de Mayo, na interminável busca de seus entes desaparecidos. A peça, portanto, não termina. Continua o drama. Todos perdemos alguma coisa, diz o mestre.

Pareceu-nos visualmente antológica a abertura do filme com duas figuras dançando o tango na ponte sobre o Sena, rebatidas sobre o fundo cinza de uma Paris fria, outonal, verdadeira poesia das imagens-movimento, valorizada pelo tom nostálgico da musica nascida do “bandoneón” de Astor Piazzolla. Solanas encerra a cena com o abraço erótico dos amantes. Há outros momentos ilustrativos de uma direção zelosa e competente, por vezes inovadora na sua concepção do plano, na composição pictural ou na seqüência dinâmica acionadora de signos reveladores da realidade oculta. Assim, destacamos a morte da mãe de Juan Dos revelada não somente pela expressão do filho na cabina telefônica envidraçada, mas pela sua visão “telepática” da velha em frente à cabina, até desaparecer na neve; os primeiros planos dos filhos do exílio, rostos fixando a objetiva; o seqüestro do pai da adolescente filmado do ponto-de-vista do carro da vitima em plena rua do centro de Buenos Aires, com um dos seqüestradores, já idoso, de arma na mão. Toda a rápida cena é ampliada com o recurso do som, quando então as imagens silenciosas parecem tornar realidade a ficção e a ficção realidade.




Igualmente, a chegada e saída dos personagens pelas escadas rolantes do aeroporto de Paris, tetos revestidos de espelhos, “alçapões lúdicos de vertigem” (na imagem de Walmir Ayalla), os papéis jogados em profusão do topo das escadas em espiral, Gardel emergindo das sombras na noite brumosa (as imagens da chegada do carro antigo sugerem expectativa de seqüestro, mas aí estamos na peça e quem dele salta é o “zorzal criollo”) ou de repente surgindo ao lado de San Martin para reproduzir “Volver”, tango de sucesso do próprio Gardel e palavra de especial significado para os portenhos.

Assinalem-se, ainda, a movimentada minisseqüência com os seqüestradores perseguindo a jovem estudante, congelando-se a imagem antes de a vermos lançada do alto com os vitrais do centro George Pompidou vistos em “contre-plongeé”, e as seqüências coreográficas não só do grupo mas também dos dois casais de dançarinos de tango. As imagens intermitentes dos manequins presentes em várias cenas, um deles com improvisadas asas girando no teto, têm valor ao mesmo tempo intrínseco e simbólico. A fotografia de Felix Monti, um complexo de tonalidades azul-cinza, dá ao conjunto do filme uma qualidade cenográfica das mais inspiradas, notadamente na já mencionada visita a Boulogne-sur-Mer, onde o alinhamento das três figuras – o velho professor, a mãe e a filha – cria composição de rara beleza plástica. A espaços, a cor entra mais viva, mais solar, porém o predomínio do azul-cinza para indicar o tempo-espaço da peça, quase um metateatro, parece fundir os dois planos: representação teatral e vida.

A direção de elenco corresponde plenamente às solicitações do drama vivido pelos personagens, cabendo destacar Marie Laforet, a quem não víamos praticamente desde “La Fille aux Yeux d’Or”, de Jean-Gabriel Albicocco. Basta lembar aqui sua expressão de desânimo na cena reveladora de sua nostalgia de Buenos Aires e de seu desejo intenso de voltar de qualquer maneira ou de altivez na festa de fim-de-ano, quando enfrenta funcionários da embaixada argentina em Paris, obviamente favoráveis ao regime. Miguel Angel Sola deixa-nos sua marca de ator, notadamente na já citada cena da despedida, bem assim na visão da mãe, ao mesmo tempo viva e morta. Georges Wilson, Phillipipe Leotard e a hoje madura e ainda bela Marina Vlady, a “enfant gaté” dos anos 60, de resto todo o elenco de apoio, merece encômios. Quanto à música e os instrumentos de artistas da estatura de Piazzolla, Cadicamo, Pugliese, Discépolo e naturalmente a voz do grande Gardel contribuem significativamente para valorizar a trilha sonora do filme, plena de adequados efeitos acústicos.

Uma palavra final sobre Fernando Solanas, este cineasta instigante, em cuja filmografia estão o documentário “La Hora de Los Hornos”, “Los Hijos de Martin Fierro” e “Perón, la Revolución Justicialista”. Alem de roteirista, produtor e diretor cinematográfico, Solanas também é músico, tendo composto dois dos belos tangos da fita, um deles “Solo”, cantado por Roberto Goyeneche. O trabalho de Solanas por trás das câmaras neste “Tangos Exílios de Gardel” consagra-o de vez como “regisseur” moderno e atento às inquietações do tempo. O cinema argentino não nasceu ontem, evidentemente, como já se disse tantas vezes. De Leopoldo Torre Nilsson de “Piel de Verano” a Solanas de “Tangos” há muita sedimentação e busca de novas formas de expressão para a dinâmica do filme. “Tangos” é prova cabal desse amadurecimento artístico. Um filme imperdível.
LGML (1985)










































UM SOBREVÔO NO CINEMA ARGENTINO

Quando o cinema do país platino conquista o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010 com “El Secreto de SUS Ojos”, de Juan José Campanella, já exibido em Fortaleza, nada tão pertinente quanto o crítico abordar, mesmo a vôo de pássaro, o cinema argentino de ontem e de hoje, e também um pouco da história do nosso vizinho.

Colonizada pelos espanhóis no século XVI e em luta desde então por maior liberdade comercial, a Argentina nasceu, por assim dizer, inspirada nas revoluções americanas (1776-1785) e francesa (1789). A partir daí os chefes crioulos (brancos nascidos na América espanhola) reuniram-se e organizaram um movimento de emancipação sob liderança de José de San Martin, a qual culminou com a deposição do vice-rei espanhol (1810) e, depois de muita luta, com a declaração formal de independência da Argentina (1816).
A Argentina também desempenhou papel-chave na derrubada do domínio europeu no restante da América do Sul. Depois de um período de domínio semiditatorial, o país emergiu como república democrática em meados do século XIX, mas desde então tem tido problemas recorrentes com a estabilidade política, periodicamente caindo sob domínio militar. 194 ou 200 anos de independência, pouco importa: os argentinos podem orgulhar-se da ruptura com o jugo espanhol, mesmo se o país não conseguiu desfrutar de uma unidade interna, como veremos mais adiante.

Neste ponto, cabe lembrar a origem da palavra argentina-argentine, do Francês Intermediário argentin, do Francês Antigo argent (silver, em inglês) + in-ine, donde argênteo (prateado, de prata), porque o distrito do chamado Rio da Prata (silver river) exportava o metal. Em verdade, juntamente com o ouro, o irídio, o paládio e a platina, a prata é um dos chamados metais preciosos, devido principalmente à sua relativa escassez, maleabilidade e resistência à oxidação atmosférica.

Breve histórico cultural

A República Argentina, só para aguçar a memória dos leitores, ocupa a maior parte meridional da América do Sul entre os Andes a oeste e o Oceano Atlântico a leste. Está limitada pelo Chile (ao sul e a oeste) pela Bolívia e Paraguai (ao norte) e pelo Brasil e Uruguai (a nordeste). Naturalmente muito se poderia escrever neste Caderno sobre a paisagem argentina, suas principais regiões, grupos populacionais, demografia, economia nacional, governo, educação, saúde e bem-estar, instituições culturais e aspectos psicossociais e políticos, notadamente no tocante à fragilidade das instituições democráticas em vários períodos de sua existência, às vezes conturbada, sabendo-se do esforço de alguns poucos líderes democratas para continuar a sustentar instituições governamentais viáveis. Pois uma característica da história argentina tem sido uma tensão crescente, com freqüência irrompendo em violência entre Buenos Aires e o restante do país.
Originariamente vinculada ao vice-reinado do Peru, a Argentina tornou-se em 1776 parte do então recém-criado vice-reinado do Rio da Prata com sua Capital em Buenos Aires. Em suma, o país caracteriza-se por cidades europeizadas e um grande interior amiúde atrasado em seu desenvolvimento. A economia argentina tem como fulcro a exportação de carne bovina de primeira, uma de suas principais indústrias, mas tinha havido crescimento recente de têxteis, plásticos e a indústria de engenharia e desenvolvimento de recursos minerais naturais, particularmente cobre. Substanciais depósitos de petróleo e gás ocorrem em várias partes do país e são de suma importância para as indústrias em plena capacidade operacional.
Aspectos político-sociais

República democrática em meados do século XIX, desenvolveu-se na Argentina, de 1825 a 1850, uma confederação de províncias sob a liderança de Juan Manuel Rosas, adotando-se três depois uma nova Constituição com a qual Buenos Aires se tornou um distrito federal. A partir de 1880 prosperou uma economia razoavelmente estável baseada na exportação de grãos e carne bovina. Já nos primeiros anos do século XX a Argentina passou a ser governada por uma coalisão de grupos conservadores, os quais elegiam os presidentes, como Julio Argentino Roca, figura dominante daquele tempo. Uma crise econômica em 1890 resultou no surgimento do Partido Radical, o qual assumiu o poder em 1916 e nele permaneceu até 1930, quando o Presidente Hipólito Irigoyen foi deposto pelo exército. De novo, sob governança conservadora até 1943, em plena II Guerra, a Argentina permaneceu politicamente instável e um processo ditatorial elegeu o General Juan Domingo Perón (1895-1974), oficial de carreira do exército.

Perón e Evita

Perón assumiu o poder em 1946 e foi reeleito para novo mandato em 1951, não só pelas medidas adotadas para melhor distribuição da renda nacional como porque fortaleceu o movimento operário. A inegável popularidade de Perón se devia mais ao apelo carismático de Eva Perón, sua mulher. Depois da morte dela em 1952, a popularidade de Perón declinou rápida, particularmente após entrar em conflito com as hierarquias militares, o clero católico e as classes economicamente privilegiadas. Em 1955 Perón foi forçado a exilar-se na Espanha. Mas com a ressurreição” da poderosa força política do Partido Peronista, o caudilho retornou ao poder em 1973, somente para morrer menos de um ano depois. Com seu desparecimento, sucedeu-o sua viúva, a vice-presidente Maria Estela Martinez de Perón, deposta aliás pelo exército em março de 1976.
De então a esta parte o painel histórico da Argentina já se tornou mais conhecido dos leitores. Assim, o general Leopoldo Galtieri (22 dez 1981/18 jun 1982) presidiu a Argentina e tentou retomar as ilhas Malvinas (ou Falklands, para os ingleses) e enfrentou uma guerra desastrada. Seguiram-se-lhes Fernando de La Rúa (dez 1999 a dez 2001), depois Raul Ricardo Alfonsin (1983-1989), Carlos Saul Menem (1989-1995 e 1995-1999), Nestor Kirchner (2003-2007) e sua mulher Cristina (2007-).

Sobre Raul Alfonsin

De todos os presidentes argentinos cumpre destacar Raul Alfonsin, democrata, humanista, inimigo das torturas e dos torturadores, reconhecido aliás por sua contribuição institucional e por haver restabelecido a plena regência das instituições republicanas e dos direitos e garantias individuais. Não admira ter dito alto e bom som esta frase lapidar: “A democracia argentina foi sempre interrompida pelos golpes militares. É preciso pôr um fim nisso”.
Os maiores responsáveis pelas violações dos direitos humanos durante o regime militar (a tal “guerra suja” da qual resultaram milhares de desaparecidos políticos) foram julgados e condenados pela justiça. Mas Alfonsin teve de ceder às pressões de setores militares (temia ele um atentado?) e às contradições do seu partido e impediu o julgamento de outros responsáveis por graves violações dos direitos humanos ao promulgar as leis do “Ponto Final” (mecanismo de prescrição antecipada) e “Obediência Devida” (a culpa dos responsáveis por atrocidades cometidas). Mas o Congresso Nacional considerou nulas essas leis em 2003, finalmente declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema em 14 de julho de 2005.
Advogado e político argentino respeitado, e uma das figuras mais importantes da história do seu partido, a União Cívica Radical, Alfonsin opôs-se à guerra das Malvinas e ao oficialismo partidário representado por Fernando de La Rúa, a quem derrotou para presidente da República. Também denunciou o pacto militar-sindical vinculado à Junta Militar. Na convenção do Partido Radical, Alfonsin derrotou o jornalista Ítalo Luder e logo assinou o Tratado de Paz e Amizade com o Chile, pondo fim a uma disputa de limites. Mas Alfonsin não conseguiu resolver os graves problemas econômicos enfrentados pelo país, neles incluída uma taxa anual de 343% em 1988 e superior a 3000% para 1989, apesar de haver adotado a Plano Austral com a substituição da moeda. Alfonsin renunciou à presidência cinco meses antes do término do seu mandato em 1989, sucedendo-lhe Carlos Menem (1989-95), reeleito (1995-99). Nestor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007- ) são os derradeiros presidentes da Argentina, há pouco acusados de enriquecimento ilícito. Ficamos por aqui.

Nasce o cinema argentino

Os primeiros passos do cinema argentino, como bem registram os historiadores, foram dados em fins de 1886/1900 com a importação de câmaras de fabricação francesa, tendo-se filmado experimentalmente curtas e médias-metragens sobre o funcionamento de um Hospital de Clínicas e uma operação cirúrgica, uma abertura de avenida, a vida noturna da cidade (“Buenos Aires, a cidade que nunca dorme”, já dizia uma publicidade da época), a inauguração de um teatro, uma noitada de tangos e a maestria de um artista do bandônion (ou bandoneón, na escrita hispano-americana, espécie de acordeão quadrado com mecanismo e teclado semelhante ao da concertina). Segundo dizem, a criação desse instrumento nasceu de um turista alemão, também músico encantado com Buenos Aires e com as possibilidades do acordeão, por isso mesmo decidiu reduzir-lhe o tamanho e modificar alguns recursos. O bandoneón tornou-se em pouco tempo o instrumento mais típico das inesquecíveis noitadas de tangos argentinos.
Em 1901-10, filmou-se o primeiro noticiário intitulado “Viaje Del Doctor Campos Salles a Buenos Aires” e abriu-se o caminho para a produção de filmes de longa-metragem, ou seja, películas de ficção e personagem com a estréia, em 1908, de “El Fuzilamento de Dorrego”, de Mario Gallo, imigrante italiano e artista versátil. À época, o filme foi considerado um épico histórico, segundo registram os enciclopedistas Kline & Nolan. Quanto ao mais, os festejos do centenário da Revolução de Maio à qual já nos referimos, suscitaram noticiários e documentários diversos. Já se reconhecia então e se louvava o trabalho dos “cameramen” e dos iluminadores.
Mas somente em 1915 com a produção de “Amalia”, de Enrique Garcia, e “Nobleza Gaucha”, de Martinez, Guche y Cairo, os filmes argentinos se tornaram comercialmente bem sucedidos. Entre 1915 e 1927, a indústria cinematográfica do país viu nascer o estabelecimento de vários estúdios e também um melhoramento indiscutível em termos de proficiência técnica e da importância da edição. O cineasta dominante nesses tempos recuados, 1921-30, era José A. Ferreyra, cujos filmes, muitos aliás, como El Tango de La Muerte”, “Flor de Durazno”, com apresentação de Carlos Gardel, “El Gaucho” e “Viejita” eram extremamente populares do ponto-de-vista local. A produção de filmes durante a era do cinema mudo alcançou uma produção de doze longas-metragens, enquanto Federico Valle produz “El Apostol”, de Cristiani, Taborda e Decaud, desenho animado de longa-metragem em pleno cinema mudo. “El Último Malón”, de Alcides Greca, reconstruiu minuciosamente o documentário sobre o norte de Santa Fé.

Chega o Sonoro

Mas a verdadeira indústria de filmes argentinos chegou mesmo à sua plenitude em 1933 com a afirmação do cinema sonoro. O som infundiu nova vida ao cinema platino porque o mundo de fala espanhola estava ansioso para entretenimentos visuais falado em sua língua. Na esteira do grande sucesso de Ferreyra, “Muñequitas Porteñas” (1931), a indústria gozou de contínua prosperidade através dos anos 30, produzindo muitas comédias e melodramas para um mercado em processo de abertura cada vez maior. O sucesso comercial de então encorajou os produtores a tentarem películas mais ambiciosas e disso resultou o surgimento de diretores mais sofisticados, tais como Mario Soffici, Luis Salawsky, de origem européia, e Manuel Romero.
Apesar disso, durante a II Guerra o México ganhou predominância na produção de filmes para o mundo de fala espanhola. Sob a ditadura de Perón, o regime tentou expandir a indústria argentina de filmes, mas sem muito sucesso. Mesmo quando a produção chegava a 50 celulóides por ano, as políticas governamentais de visão curta não favoreciam a individualidade artística nem o entretenimento livre com base em propaganda. Com algumas poucas exceções, como o “Las Aguas Bajan Turbias” (195- ), de Hugo Del Carril (renomado cantor de tangos, mas também cineasta e produtor), a produção argentina deixava a desejar. A reputação dos filmes argentinos dos anos 60 se apoiava principalmente nos talentos de Leopoldo Torre Nilsson (1924-78), cineasta de grande proficiência técnica e inspiração temática. Coube-lhe conquistar o reconhecimento internacional com filmes da categoria de “The House of the Angel” (título em inglês, de 1957), “La Caída” (1959), “Fin de Fiesta” (The Blood Feast/The Party Is Over) (1960), “Summerskin” (1961) e “The Eavesdroppers” (pessoas incumbidas de fazer escutas sigilosas) (1964). Desde os anos 70, apesar da intensificada repressão política e da censura permanente e uma das piores espirais inflacionárias do planeta, os jovens cineastas conseguiram surpreender a comunidade internacional de cinema cada vez mais com um número significativo de produções ousadas, criativas e de alta qualidade fílmica. Daí um dos triunfos com “El Secreto de sus Ojos”, de Juan José Campanella já referido no início deste artigo, vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 2010.

Sobre cineastas modernos

O espaço deste Caderno não permite maiores considerações biofilmográficas dos melhores cineastas argentinos, muitos dos quais já desaparecidos para sempre do nosso convívio. Por isso, mesmo correndo o risco de alguma omissão, selecionamos de forma concisa os nomes daqueles considerados indispensáveis por alguns analistas e de suas realizações, alguns deles ilustrados com fotos de filmes e de seus respectivos DVDs. Ei-los:
Fabian Bielinsky (1959-2000), talentoso realizador portenho pleno de muitas afinidades com o veículo cinematográfico, tendo feito seu primeiro curta-metragem aos 13 anos e vencido o concurso de novos talentos patrocinado pela Kodak. Seu filme mais importante, “Nove Rainhas” (Nueve Reinas), de 200, fez jus a vários prêmios em festivais sul-americanos e encômios da crítica tanto daqui como de países da Europa, onde foi exibido nos circuitos e em cineclubes parisienses. Bielinsky formou-se em cinema no Centro experimental de Realização Cinematográfica, tendo participado de cerca de 400 filmes publicitários, antes de iniciar-se como assistente de direção de Eliseu Subiela (1944- ) em “No Te Muevas sin Decirme Adonde Vás” (1995).
Fernando Birri (1925- ) foi assistente de De Sica em “O Teto” (1956) e o fundador e principal motor do Instituto de Cinematografia da Universidade Nacional del Litoral em Santa Fé. Birri formou vários documentaristas e dirigiu vários filmes bastante apreciados. “Los Inundados” (1961) e “El Siglo del Viento” (1999) são considerados seus melhores longas. Birri esteve em Fortaleza por ocasião do XVI Cine Ceará (2006), quando deixou subsídios cinéfilos interessados em conhecer um pouco de sua visão de documentarista sempre atento às situações do quotidiano e à interpretação dos seus desdobramentos, apesar de sua provecta idade.
Fernando Ezequiel Solanas (1936- ) é um dos grandes realizadores da arte cinematográfica, diretor de documentários e filmes de ficção baseados na realidade político-social de seu país e de sua cidade natal, Buenos Aires. Basta ler e reler as referências críticas daqui e dali sobre seus filmes exponenciais, máxime dois dos mais apreciados mundo afora: “Tangos, Exílio de Gardel” e “Sur, Amor e Liberdade”, ambos aliás comentados pelo crítico deste Caderno e publicados nesta edição pela riqueza de suas imagens-movimento, imagens-significantes, imagens-rosto, imagens-tempo e pela utilização criativa do realismo fantástico, quando mortos “ressuscitam” em “Sur” e suas metáforas chegam ao máximo da criatividade motovisual e a música de Piazzolla e do próprio Solanas são marcos importantes no conjunto. excelentes também “A Nuvem” (La Nube) e “Los Hijos de Fierro” (1972/78), o documentário “Le Regard des Autres” (1980), feito na França, e “El Viaje”, com a participação da atriz Ângela Correia. Estudante de piano e composição musical, Solanas exilou-se na França depois do golpe militar de 1976 e diplomou-se pela Escola Nacional de Artes Dramáticas em interpretação e direção. Também dirigiu pouco mais de 400 filmes publicitários de categoria e criou sua própria produtora. Daqui nosso tributo ao grande mestre argentino.
Hugo Del Carril (1912-89), cantor de tango, ator e produtor radiofônico e diretor do Instituto Nacional de Cinematografia e também cineasta de categoria. Com “Las Aguas Bajan Túrbias” (1951, Del Carril revelou ao público ocidental as potencialidades do cinema argentino, projetadas também em filmes como “Historia del 1900” (1949), “Surcos de Sangre” (1950), “La Quintralla” (1955), “mas Allá del Olvido” (1956), “Uma Cita com la Vida” (1957), “Las Tierras Blancas” (1959), “Culpable” (1960), “Esta Tierra Es Mia” (1961), e “Buenas Noches, Buenos Aires” (1964). Como registra o crítico Octavio Getino in “Les Cinémas de l’Amerique Latine”, Del Carril nunca foi indiferente em relação aos problemas sociais. “Trata-se de um cinema intuitivo, porém rico e profundo na sua temática.” Para o cinéfilo e analista Paulo de Freitas Marques, a competência de Del Carril foi algumas vezes preterida pelo seu prestígio como cantor, como se não fosse possível combinar o artista de tangos com suas qualidades intrínsecas de cineasta.
Hector Olivera (1931- ), produtor e diretor argentino e fundador, com Fernando Ayala, da empresa Artes Cinematográficas Argentinas s/a para a qual realizou todos os seus filmes a partir de 1967. Conquistou o Urso de Prata no Festival Internacional de Berlim com “La Patagônia Rebelde”, em 1975, e novamente na Capital alemã outro troféu com “No Habrá más Penas ni Olvido” (1984). Na década de 80 produziu filmes de ação em seu país para o mercado internacional de vídeos e dirigiu obras importantes como “O Império do Medo” (1984), “Guerra da Cocaína” (1985), “La Noche de los Lapices” (1986) (um dos filmes mais aterrorizantes sobre as torturas sofridas por jovens adolescentes presos pelas forças de repressão simplesmente porque reivindicavam redução das tarifas estudantis nos ônibus! Dos 14 presos só um conseguiu escapar para descrever o horror vivido por eles). Seguiram-se-lhes “Tango Religioso” (1988), “El Caso Maria Soledad” (1993), “Uma Sombra já Pronto Serás” (1994) e “Antiga Vida Mia” (2001), alguns dos quais vistos por este crítico na Capital portenha.
Juan José Campanella (1959- ), nascido em Buenos Aires, começou estudando engenharia mas desistiu da carreira após quatro anos na universidade. O fator decisivo para essa resolução, conforme explicou depois, foi ter visto o filme “All That Jazz”, de Bob Fosse, no mesmo dia no qual ia decidir-se pelo quinto ano. Daí seu interesse pelo cinema e seu “debut”como diretor, 20 anos depois, de um curta-metragem intitulado “Prioridade Nacional”. Campanella viajou em seguida para os EUA e entrou na Tisch School de Artes. Quatro anos depois, em 1984, fez “Victoria 392”, seu segundo filme. Foi a primeira das cinco colaborações com o ator e amigo Eduardo Blanco e a primeira com o roteirista Fernando Castets, com quem co-dirigiu e co-roteirizou o filme. Em 1999 Campanella reuniu-se uma vez mais com Castets para escrever “El Mismo Amor, La Misma Lluvia”, com o festejado ator Ricardo Darín, com quem se encontrara quinze anos antes no estrangeiro, e Eduardo Blanco. Seus dois outros filmes foram “El Hijo de La Novia” (2001), indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2002, e “Luna de Avellaneda” (2004). Novamente Campanella e Castets atuaram como “scripters” e Darín e Blanco como ator principal e coadjuvante, respectivamente. Darín foi mais vez o protagonista do filme “El Secreto de Sus Ojos” (2009), drama de mistério, o quarto longa-metragem do cineasta, desta feita conquistando o Oscar de MFLE e o Prêmio Goya, da Espanha, ambos de 2009. Campanella parece ter-se radicado nos EUA, onde dirigiu séries de TV como “House”, “30 Rock” e “Law & Order”. Outro louvado filme de Campanella foi “Clube da Lua”, de 2004.
Miguel Kohan (1957- ). Proficiente documentarista, Kohan dirigiu “Café de los Maestros” (1997), filme com o qual resgata a era de ouro do tango na Argentina. “Salinas Grandes” (2004) foi exibido e louvado em diversos festivais internacionais. Psicanalista freudiano de vocação, estudou cinema e TV na UCLA (EUA) e tornou-se assistente de direção do documentarista Ross McElwee em “Six O’Clock News” (1996). Vale ver e rever a dinâmica e a seleção musical feita por Lohan, um dos mais belos comentários motovisuais sobre a música argentina, lembrando de alguma forma os tempos de Gardel, Del Carril e outros cobras, bem assim a “performance” dos bandeonistas.
Marcos Bechis (1955- ). Cineasta de talento e experiência no metiê, Bechis dirigiu “Garage Olimpo” (1999), denúncia contundente da perversa ditadura argentina, ao focalizar um dos abomináveis locais de tortura e morte de dezenas de “subversivos”. Um filme só para quem tem nervos para agüentar a visão de algumas cenas, feitas aliás de forma tão realista a ponto de o espectador ingênuo ou distraído ver as imagens da barbárie como uma representação exagerada das matanças do homem de Neanderthal... Para Bechis, vivemos realmente num mundo à deriva, onde a existência do mal parece predominar impune e fazer-nos descrentes de qualquer sentido para a vida e onde o massacre dos inocentes é incompreensível e inexplicável. Bechis também recebeu críticas favoráveis pela sua direção em “Birdwatchers” (2008).
Daniel Burman (1973- ), um dos mais talentosos da nova geração de cineastas argentinos. Conquistou o grande prêmio do Júri do festival de Berlim (Urso de Prata) e Daniel Hendler um troféu especial pela sua colaboração autoral em “Ninho Vazio”. Este filme, o 7° longa escrito e dirigido por Burman, também ganhou o prêmio de Melhor Ator (Oscar Martinez) e Melhor Fotografia (Hugo Colage). Para o crítico do “O Estado de São Paulo”, “o cinema de Daniel Burman... flui. Corre como água. Seus filmes são extremamente agradáveis de se ver e rever”. Dele é também “Leis de Família”, mas “Ninho Vazio” foi o filme mais visto em 2008! Os analistas das películas de Burman mandam prestar atenção na atuação da atriz Cecilia Roth, ao dar consistência a uma personagem feminina capaz de redescobrir sua sensualidade e capacidade de reinventar-se, até mesmo intelectualmente, depois de décadas de rotina no casamento. Também no trabalho da atriz revelação do cinema argentino, Inés Efron, no filme XXY, igualmente partícipe deste “Ninho Vazio”.
Israel Adrian Caetano (1969- ), cineasta uruguaio radicado na Argentina, dirigiu “Pizza, Beer, Cigarettes” (1997), seu primeiro longa, e depois “Bolívia” (2001), quando demonstrou competência para solucionar problemas do ritmo cinematográfico. “Crônica de uma Fuga” (2007) recebeu vários prêmios, tendo sido exibido nos Festivais de Cannes e Toronto. Cineasta com senso de organização e entrosamento com a equipe, Caetano contribuiu bastante para o surgimento do chamado Novo Cinema Argentino. História da vida real recontada por um cineasta singular, “Crônica de uma Fuga” é um “thriller” político passado em 1977, em Buenos Aires, durante a ditadura militar argentina: “Um grupo a serviço do governo repressor e infame seqüestra Claudio Tamburrini, goleiro de um time de futebol, e o leva para um centro de detenção clandestino conhecido como Mansão Seré. Nessa espécie de manicômio, sem regras, onde vários jovens convivem à espera de como serão divididos os seus destinos, Cláudio conhece Guilherme. Após quatro meses de cativeiro, Cláudio, Guilherme e outros dois companheiros de quarto, Huguito e Gallego, armam uma fuga pulando no vazio em meio a um temporal. Ai começa o futuro deles...” O filme foi escolhido para participar da Seleção Oficial do Festival de Cannes de 2006.
Raul de La Torre (1938-2010). Natural de Buenos Aires, produtor e diretor, De La Torre fez parte da geração de realizadores de filmes publicitários de qualidade. Estudou pintura e desenho antes de dedicar-se às teorias do filme e escrever o romance “Graciela y Buenos Aires” (1962). De 1969 em diante, De La Torre dirigiu longas e seu “Pobre Mariposa” representou bem a Argentina no Concurso Oficial do Festival de Cannes (1986). Fâ da atriz Graciela Borges, utilizou-se dela para lançá-la como protagonista em vários filmes como “Crônica de uma Senhora” (1971), “Heroína” (1972), “La Revolución” (1973), “Sola” (1976), “El Infierno (1980), “Pubis Angelical” (1982) e o já citado “Pobre Mariposa” (1985). Em “El Color Escondido” (1988), De La Torre valeu-se de Carola Reyna para o papel principal e em “Funes, um Gran Amor” (1993), trouxe de novo Graciela ao lado de Gian Maria Volonté e, em “Peperina” (1996) recorreu a Andrea Del Boca e Camila Bertone. De La Torre tinha vários bons projetos em andamento, mas veio a falecer na primeira década do novo século.
Leopoldo Torre Nilsson (1924-78) escritor, produtor e diretor, filho de Leopoldo Torres Rios (1899-1960), um dos mestres mais importantes do cinema argentino, com rica filmografia, às vezes polêmica. Torre Nilsson começou co-dirigindo com o pai seus dois primeiros filmes, “El Crimen de Oribe” (1949) e “El Hijo Del Crack” (1952), seguindo-se-lhes “Dias de Odio” e “La Tigra” (ambos de 1953), “La Casa Del Angel” (1956), “La Mano en La Trampa” (1960), “Piel de Verano” (1961), “Homenaje a La Hora de La Siesta” (1962), “El Ojo que Espia” (1964), “Los Traidores de San Angel” (1966), “Martin Fierro” (1968), “Güemes – La Tierra em Armas” e “La Maffia” (ambos de 1971), “Los Siete Locos” (1972), “Boquitas Pintadas” e “El Pibe Cabeza” (os dois de 1974), “Diário de La Guerra del cerdo e “Piedra Libre” (ambos de 1975). No início de carreira, recorde-se, Torre Nilsson fez curtas-metragens interessantes como “El Muro” (1947), “Precursores de La Pintura Argentina” e “Los Arboles de Buenos Aires” (ambos de 1957).
Como bem assinala o crítico e escritor Rubens Ewald Filho, Torre Nilsson foi um renovador da linguagem do cinema em seus país, mormente quando chamou atenção no Festival de Cannes de 1957 para a abertura de novos caminhos. Colaborou ele proveitosamente, por muito tempo, com Beatriz Guido (1924-88), escritora de renome e sua mulher até a morte. Como Torre Nilsson se tornou o cineasta argentino mais conhecido internacionalmente, sua obra fílmica foi alvo de estudos por parte de historiadores como Georges Sadoul e George Fenin, os quais vêem nela elementos barrocos fundidos a numa forte crítica social. Em 1968, TN iniciou “Martin Fierro” (Gaivotas de Ouro” no II FIF do Rio de Janeiro), um período de filmes épicos. No terço final de sua filmografia, dedicou-se a adaptar romances de renomados autores argentinos como Robert Arlt, Manuel Puig, Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges. Durante toda sua existência TN lutou contra a censura e os ditadores de plantão, civis ou militares, particularmente em seu último filme, “Piedra Livre”. Um trabalho publicitário para os cigarros Marlboro, estrelado por Mel Ferrer, foi sua última atuação por trás das câmaras. TN também dirigiu filmes com atores americanos como Geraldine Page, Alan Bates, Melvyn Douglas e Arthur Kennedy. Um dos filhos de TN, Javier Torre (1946-), estava prestes a dirigir “Fiebre Amarilla” (1981), com argumento original de seus pais, quando adoeceu.
Já o dicionarista francês Jean Tulard, admirador do cineasta argentino, lembra como ficou impressionado com um filme estranho de Torre Nilsson, “próximo do universo de Jorge Luis Borges, seu compatriota, no qual estátuas impudicas eram cobertas e as jovens se banhavam vestidas com longas camisas...” “La Casa del Angel” (1956) logo se tornou conhecido no Festival de Cannes, filme admiravelmente fotogradado e editado, escreve Tulard, prova cabal de um domínio completo dos meios técnicos à disposição de um cineasta inventivo. “A Mão na Armadilha” (1960) confirmava a afinidade de TN com atmosferas mágicas e insólitas nas quais a inocência acabava se corrompendo. TN também sabia olhar com espírito crítico a sociedade argentina e denunciou suas taras (“Fin de Fiesta”, 1959). Escritor brilhante, TN teve colaboração da romancista Beatriz Guido, sua mulher, como já referido. Fernando Solanas, outro grande cineasta argentino, filmou “Los Hijos de Fierro” (1972) como reação contra o “Martin Fierro de TN (1968).
Maria Luiza Bemberg (1923-95), ex-curta-metragista nascida em Buenos Aires, produtora e diretora de prestígio, foi também roteirista de Raul de La Torre em “Cronica de uma Señora” (1970) e de Fernando Ayala em “Triângulo de Quatro” (1974). Sua obra destaca o papel da mulher na sociedade machista e preconceituosa. Consagrou-se internacionalmente com “Camila” (1983), símbolo da mulher apaixonada e um libelo contra a intolerância e a estupidez humana. A fita foi indicada para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Para seu 4° filme Maria Luiza conseguiu trazer Julie Christie para vir atuar na Argentina. Seu derradeiro filme, e também o melhor para muitos críticos, é “De Eso no se Habla” (1993), inusitada história de amor de Marcelo Mastroianni com uma anã.
Luis Puenzo (1946- ). Outro importante produtor, diretor e escritor argentino vindo da publicidade, Puenzo ousou levar às telas as manifestações das “loucas da Praça de Maio” na Buenos Aires dos anos 80, com seu irretocável “A História Oficial” (1984), com o qual se consagrou internacionalmente e pelo qual recebeu uma chuva de recompensas, começando com indicações para o Oscar de MFLE e roteiro original e Melhor Interpretação Feminina em Cannes. Restava-lhe dirigir, desta vez com capitais americanos e dentro da tradição hollywoodiana, um filme para Jane Fonda. Isso ocorreu com “Gringo Velho” (Old Gringo), com base em roteiro de Carlos Fuentes, com Gregory Peck firme no papel do escritor Ambrose Bierce (1842-1914), jornalista, misantropo, satirista e autor de contos sardônicos com base em temas da morte e horror e de um “Dicionário do Diabo” (1906). Homem perturbado, separou-se da mulher, perdeu dois filhos e rompeu com muitas amizades. Para Leornard Maltin o filme tem falhas em seu conjunto, compensadas pela rica atmosgera criada por Puenzo e o desempenho superlativo dos atores sob a batuta do cineasta argentino, aliás louvado por muitos críticos devido a “A Peste de Camus” (The Plague, 1991), com William Hurt e Robert Duvall, todo filmeado em Buenos Aires.
Edgardo Cozarinsky (1939- ), escritor e realizador de filmes, é mais conhecido por seu “Vudu Urbano”. Seus autores favoritos foram Robert Stevenson, Joseph Conrad e Henry James. Diplomou-se em Literatura pela Universidade Buenos Aires e escreveu críticas para revistas de cinéfilos, tendo publicado “El Labirinto de La Aparencia”, ensaio sobre James desenvolvido durante seus trabalhos de graduação. Mal chegado aos vinte anos já se tornara conhecedor da obra magistral de Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Julio Cortazar e Silvira Ocampo, todos escritores de prestígio com quem conviveu durante anos em Buenos Aires. Em 1974 publicou “Borges y El Cine”. Nesse mesmo ano, em face da agitação política e repressão iminente, Cozarinsky foi para Paris, sempre aberta para quem quiser abrigar-se na cidade Luz, e se envolveu com a realização de filmes de ficção com material documental e reflexões íntimas. Mostrou-se bem entendido em cinema e se distringuiu com a realização de “La Guerre d’un Seul Homme” (1981) e “Auto-Portrait d’un Unconnu” (1983), o primeiro deles uma confrontação entre os diários de guerra de Ernst Junger e os documentários franceses do período da ocupação alemã. Quando terminou a ditadura militar na Argentina, Cozarinsky voltou a Buenos Aires em 1985 e fez o filme “Guerreros y Cautivas” (Warriors and Captive Women). Recebeu elogios por dois filmes seus de aventuras, “Rothschild’s Violin” (1995) e “Ghosts of Tangier” (1996). Republicou com êxito seus contos, ensaios, memórias e crônicas e trouxe de volta o filme “Les Apprentis-Sorciers”, produzido e dirigido por ele.
Fernando Ayala (1920-91), cinéfilo argentino, iniciou-se nos curtas-metragens, para ele um dos caminhos mais recomendáveis para quem quiser chegar a produtor e diretor de filmes. Passada a fase de aprendizado e muito labor, Ayala se tornou conhecido por dois livros causadores de grande impacto no país: “El Jefe” (1958) e “El Candidato” (1959), ambos com apoio nos roteiros do escritor David Viana. No primeiro deles, Ayala pôs em questão o princípio do caudilho. Seu tratamento do tema primou pela prudência, mas dava um novo tom às produções da época encalhadas num mesmo e aproveitou o ensejo para desenvolver um cinema “independente”, voltando-se para o folclore e a história nacional, antes de decidir-se por comédias e melodramas de olho nas bilheterias. Afora os dois citados acima, seus principais filmes incluem “Los Tallos Amargos” (1957), “La Industria Del Matrimonio” (1964), “Em Mi Casa Mando Yo” (1967), “Argentina Hasta La Muerte” (1968), “Los Medicos” (1978), “Plata Dulce” (1982), “El Arreglo” (1983), “Pasaageros” de uma Pesadilla” (1984) e “Dios los Cria” (1991), seu último trabalho.
Julia Solomonof (1968- ), nascida em Buenos Aires, jovem e proficiente realizadora de filmes, com muitas afinidades com o veículo e muita sensibilidade no trato dos temas da vida moderna. Distringiu-se com “Ahora”, “Hermanas” e Scratch” (sem títulos em português e principalmente com “El Último Verano de La Boyita” (2009), visto por alguns analistas como pequena obra-prima de uma realizadora plena de possibilidades de crescer no mundo do cinema. Cineasta em evolução, Julia tem dirigido episódios na TV com destaque para “Version Española” e “Miradas 2” (ambos de 2009) e “Dias de Cine” (2010).
Estas as reflexões sobre o cinema argentino julgadas relevantes para os cinéfilos interessados.

domingo, 16 de maio de 2010

(Sir) Carol Reed, Mestre Esquecido

Diretor cinematográfico de primeira linha nascido em Londres, Carol Reed (1906-76) recebeu do governo inglês, em 1952, o título honorífico de Sir do Império pelos serviços relevantes prestados ao seu país, ao projetá-lo para o mundo contemporâneo via imagens expressivas do cinema, antes, durante e depois da II Guerra Mundial. 60 anos nos separam do lançamento na capital inglesa de uma de suas obras-primas, “O 3° Homem” (The Third Man), para uns um filme wellesiano, para outros o fruto opimo de um aprendiz do mestre de Wisconsin, para outros ainda uma simbiose entre um cineasta de gênio e seu pupilo e admirador. Ao dirigir Welles como ator, Reed selou definitivamente sua carreira. Por tudo isso, entendemos justa e esclarecedora esta homenagem do Blog do LG a Reed, mormente quando alguns dos seus filmes se encontram em DVD à disposição dos cinéfilos nas distribuidoras.

Ainda adolescente, segundo vimos em nossos arquivos, Reed pretendeu tornar-se um fazendeiro ou agricultor, decorrência provável de suas vivências de garoto e adolescente no rico ambiente rural de sua família. Por isso mesmo, depois de graduar-se pela King’s School em Canterbury, seus pais o enviaram para os EUA para cumprir um treinamento em serviço numa grande propriedade rural. Mas alguma coisa não se encaixava bem com a visão do jovem Reed, pois havia nele, segundo registram os amigos de ginásio, um certo fascínio pelo teatro e isso o fez retornar a Londres, seis meses depois, para iniciar sua carreira como ator. Sua família deve ter-se surpreendido com a decisão, difícil saber como agiram seus pais em face desse desvio de caráter profissional.

Do Campo para o Palco

A estréia de Reed como ator se deu em Londres com a trupe de Sybil Thorndike (1882-1976), proeminente atriz do palco londrino e de alguns filmes memoráveis. O ano era 1924 e depois de uma sucessão de papéis menores, ricos em aprendizagem, Reed começou a trabalhar com Edgar Wallace, escritor de novelas de mistério, como orientador da adaptação de suas histórias para o palco. Em 1927, Reed tornou-se diretor de cena e chamou atenção pela sua habilidade em reduzir o supérfluo das falas e aproveitar melhor o jogo de luzes, quando o desfecho da peça estava próximo. Essa compreensão maior da importância da iluminação para sugerir certos estados d’alma, Reed levou-a para as telas, uma mudança prevista tanto por Sybil como por Wallace, considerando-se muito maiores as possibilidades do cinema como a arte do século.

Os Primeiros Tempos

Reed já parecia ter traçado seu futuro. Nada de setor agrário ou de diretor teatral, mas algo mais se desenhava no seu horizonte profissional: o cinema. Impressionou-o o mundo das imagens em movimento, o registro de cenas, a decupagem, o jogo de luzes e sombras, notadamente na penumbra de um quarto, na obscuridade das ruas ou na noite espectral. Os primeiros trabalhos de Reed como diretor cinematográfico, mesmo os longa-metragens, eram filmes de orçamento modesto para consumo local. Mas o tempo passa e sua reputação como “metteur-en-scène” cresce a olhos vistos graças a filmes como “Aconteceu em Paris” (It Happened in Paris) (1935), “Laburnum Grove” e “MIdshipman” (ambos de 1936), “Fale do Diabo” (Talk of the Devil) e “Who’s your Lady Friend” (ambos de 1937), “Bank Holiday” e “Penny Paradise” (ambos de 1938, “Climbing High” e “Garotas Apimentadas” (A Girl Must Live) (os dois de 1939). Alguns destes filmes não têm títulos disponíveis em Português.
Como a expansão territorial e militar dos nazistas e os sinais de uma II Guerra estavam no ar, Reed dirigiu “Sob a Luz das Estrelas” (The Stars Look Down) (1939), um dos bons filmes de sua carreira, e “Gestapo” (Night Train to Munich) (1940), um tanto irregular em sua “performance” devido a algumas imposições dos produtores e pequenos equívocos em relação ao uso dos idiomas inglês e alemão. Vieram em seguida “The Girls in the News” (1941), “O Jovem Mr. Pitt” (The Young Mr. Pitt) (1941), interessante evocação da luta dos ingleses contra Napoleão, “Caminho das Estrelas” (The Way Ahead) (1944), “A Verdadeira Glória” (The True Glory), co-direção de Garson Kanin, um documentário dos melhores da época (1945), “O Condenado” (Odd Man Out) (1947), “O Ídolo Caído) “(The Fallen Idol) (1948), “O Terceiro Homem” (The Third Man) (1949), “O Pária das Ilhas” (The Outcast of the Islands) (1952), “O Outro Homem” (The Man Between) (1953), “A Rua da Esperança” (A Kid for Two Farthings) (1955), “Trapézio” (Trapeze) (1956), “A Chave” (The Key) (1958), “Nosso Homem em Havana” (Our Man in Havana) (1959), “A Sombra da Fraude” (The Running Man) (1963), “Agonia e Êxtase” (The Agony and the Ecstasy) (1965), “Oliver!” (1968), “Fúria Audaciosa” (The Last Warrior) (1970) e “De Olho na Esposa” (Follow Me) (1971). Alguns dos filmes extraídos da filmografia de Reed merecem os comentários sucintos transcritos a seguir.

Cinco Filmes Essenciais

A reputação de Reed como cineasta chegou ao seu ápice em fins dos anos 40 e começo dos 50, quando dirigiu seus melhores filmes, uma unanimidade entre os críticos daquém e dalém mar: (1) “O Condenado”, com James Mason no papel-chave. Como analisaram Kline & Nolan, foi um melodrama de caça a um fugitivo meticulosamente concebido e ricamente executado acerca das últimas horas na vida de um revolucionário irlandês; (2) “O Ídolo Caído”, um drama do mundo adulto observado de forma penetrante e inteligente pelos olhos de uma criança; (3) “O Terceiro Homem”, seu melhor filme mais conhecido e divulgado, visto e revisto como “thriller” fascinante ambientado no cenário ou telão de fundo desolador da Viena de após-guerra, no qual a perseguição movida pela polícia nos esgotos da urbe é um prodígio de montagem rítmica na qual se combinam expressivamente signos visuais e a trilha sonora, complementada depois na cena final, quando a câmara montada na traseira do “jeep” em movimento enseja e o significante (o elemento ausente) de quem caminha só na estrada marginada por árvores de folhas secas; (4) “O Pária das Ilhas”, bela adaptação da história de Joseph Conrad sobre a corrupção moral nos Mares do Sul: para o “London Evening News”, “a sordidez deste filme não é venerada como se faz no usual lirismo hollywoodiano. “O filme mais pujante jamais feito neste país”, escreveu o crítico do “Observer”; “Tentativa interessante para dramatizar o estudo de um complexo personagem, aliás, com boa interpretação”, registrou o “Hallingwell Film Guide” dos EUA; e (5) “O Outro Homem”, um drama de roteiro imperfeito mas intrigante, ambientado na Berlim arrasada dos anos 40/50, dominada por agentes soviéticos infiltrados e delatores. A reconstituição da atmosfera é ponto alto, valorizada pela mobilidade da câmara dentro de prédios parcialmente destruídos.

Dois dos Cinco

O segundo e o terceiro destes cinco filmes se basearam em material escrito por Graham Greene e foram particularmente bem sucedidos na sua adaptação para o ecrã, recebendo elogios de críticos responsáveis do Velho e Novo Mundo. James Mason novamente sobressaiu como um dos grandes atores do cinema, desta feita ao lado de atrizes insinuantes como a alemã Hildegarde Neff (recorde-se dela com sua voz meio roufenha em “As Neves do Kilimankaro”, de Henry King, quando Gregory Peck lhe faz um galanteio ao vê-la mergulhar na piscina) e a inglesa Claire Bloom. O ritmo é ágil, não há tempo a perder com imagens supérfluas, enquanto a câmara penetra nos edifícios de poucos hóspedes, quando não abandonados, e até para um momento erótico bem conduzido entre Mason e Claire, o casal de fugitivos daquele pequeno inferno. Este filme de Reed, para uns seu melhor trabalho atrás das câmaras e de olho vivo na condução dos atores, caracterizou-se por um senso agudo de local e atmosfera, como já frisamos, com atenção para as imagens-rosto, o tratamento simpático dos personagens e a progressão dos eventos até o final surpreendente com a tentativa de burlar a cancela, enquanto o garoto da bicicleta faz volteios nas duas rodas e aguarda...
De meados dos anos 50 em diante, esclarecem os citados Kline & Nolan, Reed dava mostras de estafa e sua reputação começava a declinar. Achaques da velhice? Não, Reed tinha apenas 55 anos. Estava atuando nos estúdios de Hollywood, onde os filmes crescem bastante em escopo e orçamento, obliterando os talentos do cineasta para detalhes e hiperbolizando imperfeições dramáticas ou técnicas, quando não impondo determinados nomes para certos papéis. Há trabalho em excesso, as bilheterias contam, o famigerado Código Hays ainda tem força. Em 1962, Reed foi convidado para dirigir uma nova versão de “O Grande Motim” (Mutiny on the Bounty), mas foi logo substituído por Lewis Milestone, com poucos dias de filmagem...

Oscar em 1968

Apesar das dificuldades, Reed mereceu em 1968 o Oscar de Melhor Diretor conseguido com o musical “Oliver!”, filme baseado na novela de Charles Dickens e excepcionalmente dirigido, interpretado, editado e fotografado, e todos os técnicos orientados por Reed foram também indicados para o cobiçado troféu anual. Vale a pena lembrá-los depois do grande “tour de force”: Vernon Harris (roteirista), Lionel Bart (música), Oswald Morris (fotografia), John Green (diretor musical), Onna White (coreógrafa), John Box (desenhista de produção) e Ralph Morgan (edição).
O crítico Joseph Morgenstein sintetizou sua visão do filme: “Só o tempo poderá dizer se se trata de um grande filme, mas é certamente uma grande e inusitada experiência musical via imagens da melhor qualidade”. Palmas para Carol Reed, bateram os jornalistas e o público presentes à cerimônia. Já o crítico Jan Dawson viu uma exagerada discrepância na turbulenta alegria com a qual no filme todos cuidam dos seus negócios, mas na realidade eles estão de fato desprezados... Assim, escreve ele, elementos narrativos como a exploração do trabalho infantil, alcovitagem, abdução, prostituição e crime se combinam para fazer “Oliver!”. Textualmente: “Que o assunto não-característico das classes altas jamais venha a receber um certificado emitido por elas...” Afinal, quem é Dawson? Reed ainda dirigiu “Flap” nos EUA em 1970 e depois “Follow Me”, quando retornou de vez a sua querida Inglaterra em 1972. Foram estes seus últimos filmes. Reed foi casado (1943-47) com a atriz Diana Wynyard, mas dela se divorcou um 1948 para ficar com a também atriz Penelope Dudley Ward. Reed se retiraria de cena para falecer 4 anos depois de um ataque cardíaco.

Welles x Reed

O crítico e autor francês Jean Tulard parece não ter entendido a referência feita por vários analistas sobre quem realmente foi a cabeça pensante de “O 3° Homem” (The Third Man). Em livro recente, do qual vários autores participaram, o cineasta brasileiro Ugo Giorgetti responde às indagações de cinéfilos e admiradores: afinal, depois de ter realizado algumas obras primas Welles se colocou docilmente nas mãos de Carol Reed? O filme talvez traga algumas respostas, escreve Giorgetti, e prossegue, textualmente: “Primeiro a fotografia. Preto & branco, com muito contraste e grandes planos em contraluz, quase expressionista, bem ao gosto de Welles. Segundo, os enquadramentos. Sempre planos feitos com a câmara às vezes ligeiramente desnivelada, colocada muito baixa ou muito alta, bem ao gosto de Welles. Terceiro, as lentes. Sempre lentes grande-angulares, com larga tolerância de foco e leve deformação da imagem, bem ao gosto de Welles. Quarto, a trilha sonora. Uma trilha surpreendente, executada apenas pela chamada cítara vienense, com quase o mesmo som da guitarra havaiana, alegre, dançante, contrastando com o clima sombrio do filme, principalmente quando em dado momento é executada num enterro. (É verdade que depois se constata que esse enterro era uma farsa)”.
“De qualquer maneira, em nenhum dos filmes posteriores de Carol Reed vamos encontrar essas características da narração. Em compensação, elas podem ser encontradas amplamente em “Cidadão Kane”, “Soberba” e, principalmente, “A Marca da Maldade” e “O Processo” (e em “Grilhões do Passado”, acrescentaria Peter Bogdanovich...). Quem diabos então dirigiu esse magnífico filme chamado de “O Terceiro Homem” ( The Third Man, 1949)? Teria Orson Welles, sabe-se lá como, tomado o comando do filme: Teria sido uma homenagem sutil e saborosamente britânica de Carol Reed ao gênio de Welles? É possível. Reed era um diretor muito inteligente e sensível. Importa é que a obra belíssima, desde o roteiro de Graham Greene até as atuações de Joseph Cotten e da italiana Alida Valli, cuja presença no elenco é mais uma coisa estranha nesse filme já tão bizarro (...)”. Ficamos por aqui. Quem ainda não viu, reviu ou não conhece o filme, poderá encontrá-lo nas distribuidoras para começar a aprender cinema.

Duas Achegas de Reed

“A música, sabemos, pode servir também para ligar os planos entre si e criar uma continuidade sonora, podendo desempenhar um papel obsessivo por sua repetição. Basta a cítara de Anton Karas para marcar a presença de Welles e ajudar a evocar o espírito (principalmente a intriga e as incertezas) da Viena de após-guerra”. Palavras de Reed quando das filmagens de ‘O 3º Homem’ e ele conversou com críticos e jornalistas ingleses explicando-lhes aspectos pouco conhecidos da linguagem do cinema e dos bastidores de uma filmagem.
“Os planos com a câmara desnivelada transmitem um sentido de inquietação. Em verdade, o ângulo de visão pode sugerir que alguma coisa falsa está ocorrendo. Assim como Welles e Bergman, tenho dado particular atenção à arte das imagens em movimento e aos signos visuais, bem como ao efeito do foco profundo, da iluminação e do desenho do próprio cenário sobre toda a atmosfera do filme”.

Para saber mais

ORSON WELLS, de André Bazin, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005;
ORSON WELLES, de André Bazin, Livros Horizonte Ltda. 1200 Lisboa, 1991;
FILMES, de Ugo Giorgetti e outros, Publifolha, divisão de Publicações do Grupo Folha, São Paulo, SP., 2003;
WELLES, Uma biografia, de Barbara Leaming, L&PM Editores S.A., São Paulo, SP., 1985;
WELLES, Orson Welles no Ceará, de Firmino Holanda, Ed. Demócrito Rocha, Fortaleza, CE., 2001;
HOLLYWOOD, de David Thomson, DK Publishing Inc., New York, NY., 2001;
MOVIES, A Language in Light, de Richard L. Stromgren & Martin F. Norden, Prentice Hall. Inc. Englewood Cliffs, New Jersey, USA, 1984;
DICIONÁRIO TEÓRICO E CRÍTICO DE CINEMA, de Jacques Aumont e Michel Marie, Papirus Editora,Ed. Nathan/VUef, Paris, 2001;
MARTIN, MARCEL, “A Linguagem Cinematográfica”, Ed. Brasiliense, São Paulo, SP., 1990; e CAROL REED ON CINEMA, sumário de entrevistas à imprensa londrina, Sup. do “Observer”, 1973.

Fique por Dentro

“STEADICAM” - Nome comercial de um artifício técnico para ajudar a estabilizar as câmaras de mão. Nada tão desagradável e superado quanto ver o tremor da câmara, pois a “steadicam” dispõe de um estabilizador digital de imagem (DIS). A câmara parkinsoniana ou treme-treme já foi alvo de várias críticas; às vezes se aceita esse tremor, ligeiro embora, quando se quer transmitir a idéia segundo a qual a câmara está sendo operada por um bêbado ou sofredor de labirintite ou mesmo em condições do terreno ou local de difícil movimentação. Os inventores da “steadicam”, Garret Brown à frente, ganharam um Oscar especial em 1977 por essa realização técnico-científica. Stanley Kubrick, o grande cineasta desaparecido, foi quem mais buscou essa estabilização da câmara, utilizando-a finalmente em seu “O Iluminado”, quando, por exemplo, vemos e acompanhamos o garoto guiar seu velocípede pelos corredores vazios do hotel mal assombrado sem nenhuma trepidação. O próprio SK operou muitas vezes a “steadicam” em seus filmes.

Opiniões

“Reafirma-se Carol Reed como o mais avançado ‘filmmaker’ do nosso tempo e um dos três ou quatro existentes mundo afora”.

- Fred Magdalany in “Films in Reviex”.
Aug., 1952;

“Sensível, humano e dedicado, Reed parece ter-se fechado à vida, especialmente sem sentimentos fortes em relação às histórias que cruzaram seu caminho, a não ser fossem coisas que ele poderia aperfeiçoar e polir com amor maternal”.

- Richard Winnington in Halliwell’s
Film Guide, 19th ed. pág. 86,2004;

“O 3º Homem” é um ‘thriller’ romântico memorável. Estiloso do começo ao fim, com inimitável telão de fundo e solo de cítara composto e executado por Anton Karas, pontuando momentos-chave, sugestivos da história do mercado negro de após-guerra, pleno de personagens cínicos e desprovidos de humor. Hitchcock com sentimentos, se lhes aprouver.”

- Hallingwell’s Film Guide, 19 ht ed.
pág. 861, 2004.

“(…) O fim do milênio provocou novas mudanças no mundo do cinema, numa mutação mais dramática em relação a qualquer outra mencionada por mim. Em pouco tempo, a matéria-prima dos filmes desaparecerá para ser substituída por algo revolucionário (‘Avatar’?), talvez em formato digital ou talvez o filme, como outrora o chamávamos, vá estar contido num ‘microchip’ tão pequeno quanto uma cabeça de alfinete. E o cinema, levado por nós cineastas ao pedestal, como se ele significasse tudo, se tornará de novo simplesmente um sistema muito maior de coisas. Em face de tal perspectiva, posso confessar agora que enquanto nos anos recentes parte de mim veio a experimentar uma sensação de esperança”.

- Palavras de Bernardo Bertolucci extraídas do seu prefácio sobre o futuro do cinema no livro de Geoff Andrew publicado em 2000.

Quem Dirigiu “O 3° Homem”?
Uma Visão Histórico-Crítica

Geoff Andrew, crítico de cinema e editor de “Film, The Critics’ Choice”, no qual analisa nada menos de 150 obras-primas do cinema mundial, da era muda até 2001, com prefácio de Bernardo Bertolucci, discorre sobre “O 3° Homem” (The Third Man), de Carol Reed, filme protagonizado por Orson Welles, esse gigante do cinema, e traz à tona em seu livro elementos de interesse para todos quantos amaram essa realização inglesa de 1949-50, cujo personagem principal é uma cidade, Viena.
A idéia original para levar à tela “O 3° Homem”, segundo registra Andrew, nasceu do produtor Alexander Korda (1891-1956), produtor e diretor húngaro (irmão de Zoltan Korda), um dos fundadores do cinema em seu país e mais tarde importante figura da cinematografia inglesa, tendo produzido e dirigido filmes na Inglaterra, onde se radicou nos anos 30. Em 1947, Korda entregou o projeto de “O 3° Homem” ao novelista e teatrólogo Graham Greene, em cujas mãos o texto se transformou numa narração de eventos conflitantes, tendo como fundo de cena o mercado negro na Viena exaurida do pós-guerra. Apesar disso, “O 3° Homem” parece apontar inevitavelmente para o mundo da espionagem. O próprio Greene, escreve Korda, foi espião durante a II Guerra Mundial, quando trabalhou sob as ordens de Kim Philby, o lendário agente duplo.
Assim, o roteiro de Greene se concentra na ambiência psicofísica da Viena daqueles anos amargos, num mundo onde não se poderia confiar em ninguém e no qual o próprio Philby adquiriu seu primeiro gosto pela atividade política clandestina. Até mesmo o “herói” desse cenário, Holly Martins, (Joseph Cotten, no papel de um literato de segunda linha), pode não ser confiável: ele trai Harry Lime (Orson Welles), seu amigo mais estimado, agora um operador do mercado negro fora da zona de influência da Rússia Soviética. Holly quer rever Lime, mas toma um choque ao saber da morte(?) do companheiro de outros tempos. O filme começa mesmo a partir daí.
Depois da II Guerra, lembra Andrew, Viena deixou de ser um centro cultural, a Capital alegre das valsas e operetas, e tornou-se uma cidade de fronteira, ou seja, uma fronteira “invisível” entre o Leste e Oeste, como Korda previra, mas uma fronteira tornada mais visível a cada dia, enquanto o entulho da guerra começava a desaparecer, fazendo a cidade mais limpa, enquanto as linhas geopolíticas começavam a consolidar-se. Tanto o escritor Greene como o diretor Reed estavam fascinados pelo poder metafórico dos esgotos uma rede de túneis subterrâneos, a qual oferecia um meio de evitar-se a fronteira e cruzá-la, sem ser observado, de uma zona para outra. A morte de Harry Lime sinaliza o fim dessa fantasia de uma fronteira permeável. A fronteira se fecha.
Numa economia vítima de escassez interminável na qual o dinheiro virtualmente nada valia, os homens do mercado negro propiciavam os serviços necessários. Até mesmo a penicilina era comercializada, como o filme mostra, e ficamos, na qualidade de espectadores, com o coração partido, escreve Andrew. A penicilina adulterada era o negócio de Lime, as crianças suas vítimas. Contudo, conforme interpretado por Welles, o mercadeiro negro ganha nossa simpatia, até mesmo quando sabemos ser ele um cínico e um monstro. Em “O 3° Homem”, o monstro está em fuga, enquanto seu amigo leal o trai e o mata. Simpatizamos com o monstro perseguido como um rato nos esgotos, enquanto o seu perseguidor Holly Martins fica para lamentar suas ações, sozinho e indesejado, abandonado pela mulher a quem ama, incapaz de aceitar sua traição - traição não ao seu país, mas a seu amigo de longa data. A Áustria não é realmente o país de alguém e tampouco o de seu amigo.
Como sabemos, Reed tomou uma decisão certa - não haveria Strauss, nem valsas neste filme. A velha Viena, considerada por muitos o Centro da Europa, tinha desaparecido para sempre com a II Guerra. A Viena de Reed é uma cidade deformada, filmada com ângulos de câmara desnivelados, onde as ruas escuras e tortuosas contrastam com as ruas, húmidas e brilhantes. Uma cidade na qual uns poucos feixes de luz penetram na escuridão profunda. Reed, um diretor respeitador do roteiro, visualizou Viena como Greene o fez - “uma terra de ninguém numa cidade inquieta onde os valores antigos estão em ruínas, uma cidade sem muito futuro, onde a morte nos convida com acenos...”
Estas considerações sucintas ajudam o leitor cinéfilo a compreender melhor o alcance deste filme memorável, um dos melhores e mais importantes já realizados em um século de cinema, até mesmo quando para sua realização contribuíram um roteirista de peso, Graham Greene, um produtor como Alexander Korda, um diretor de primeira linha, Carol Reed, e um cineasta de gênio atuando como ator e também, como já referido, orientador de Reed no uso da fotografia em preto & branco contrastada, nos grandes planos em contraluz, quase expressionistas, nos enquadramentos sempre com planos feitos com a câmara um tanto desniveladas, muito baixa ou muito alta, sempre com grande-angulares com larga tolerância de foco e leve deformação das imagens, bem ao gosto de Welles. Nada disso se viu nos filmes dirigidos por Reed nem antes nem depois de “O 3° Homem”, como salientou Ugo Giorgett em sua visão percuciente.
Quanto às discordâncias sobre quem realmente dirigiu o filme, só nos resta recordar as palavras de François Truffaut sobre “la politique des auteurs”. Segundo aquele mestre de cinema precocemente falecido, a criação no cinema depende fortemente de uma “única consciência controladora” - no caso Welles, opinião compartilhada pelo seu mentor André Bazin. Este único ponto-de-vista dominante, argúem os analistas da Nouvelle Vague, é geralmente mantido pelo diretor e não pelo roteirista ou escritor/roteirista. Através dos suportes filosóficos desse método, o diretor cinematográfico é elevado ao “status” de escritor e romancista, daí o termo “auteur”. Ficamos por aqui.