quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

25 ANOS SEM FRANÇOIS TRUFFAUT,

O “LEVIER” DA NOUVELLE VAGUE

Em DVD: “O Quarto Verde”


Em 1984, aos 52 anos, vítima de insidioso tumor cerebral, desapareceu para sempre o cineasta François Truffaut, propulsor da Nouvelle Vague e um dos grandes mestres da moderna cinematografia. Além de representante oficial da França nos grandes festivais, Truffaut foi crítico consciente e dos mais bem fundamentados de quantos se projetaram internacionalmente nos “Cahiers Du Cinéma” e a partir de Paris, a cidade-luz, um dos seus grandes amores. Dele disse Louis Malle, outro mestre: “Sua morte deixou-nos todos órfãos”. Prestamos nesta postagem um segundo preito póstumo a quem muito fez pela arte fílmica.

Truffaut pode não ter sido o poeta do cinema francês, como muitos o chamavam, aliás contra sua vontade, mas foi sem dúvida seu propulsor incansável, renovador, sempre em busca de tornar mais denso e criativo o realismo fílmico, tal como o definiu magistralmente o diretor alemão Egon Monk, realizador de “Os Irmãos Oppermann”, obra-mestra dos anos 80. Muito já se escreveu sobre Truffaut, sua infância atribulada de filho bastardo, o quase delinqüente juvenil, o desertor do serviço militar, o gazeador de aulas para ir ao cinema...

Incrível sabê-lo anos depois o dono de vasta cultura cinematográfica e de excepcional capacidade de narrador. Assim registra a jornalista Anne Gillian em seus textos reunidos sobre quem era “capaz de dar um caráter de magia à sucessão de fotogramas nos curtas de sua lavra, como os inesquecíveis “Les Mistons” (Os Pivetes), “Antoine et Antoinette”, “Une Visite” e “Une Histoire d’Eau”, realizados no binômio 1957-58, precursores de algumas idéias conducentes à Nouvelle Vague e a temas adultos, o primeiro dos quais premiado pela crítica. Em 1959 veio a consagração com “Os Incompreendidos” (Les Quatre Cents Coups), prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes e, no ano seguinte, “Uma Mulher para Dois” (Jules et Jim) e “Atire no Pianista” (Tirez sur Le Pianiste).

Truffaut e Bazin

Não esquecer, porém, o fato de Truffaut ter sido apadrinhado pelo crítico, autor e teórico André Bazin. Este o acolheu, reorientou-o, ensinou-lhe dicas do ofício, fê-lo terminar o ginásio e instruir-se no idioma e na expressão do pensamento, defendeu-o e viu longe suas potencialidades de cinéfilo com apurado senso crítico. Tudo isso ajudou o jovem François a tornar-se um dos principais e mais polêmicos críticos dos “Cahiers du Cinéma” e a participar com Alexandre Astruc e outros da criação da “Politique des Auteurs”, na qual defendeu seus cineastas preferidos de então, Jean Renoir e Alfred Hitchcock, além de alguns mestres americanos dos Filmes-B.


Durante alguns meses Truffaut tornou-se assistente de Roberto Rosselini e depois co-produziu “O Testamento de Orfeu”, de Jean Cocteau. Autor da idéia original e do roteiro de “Acossado” (A Bout de Souffle), de Jean-Luc Godard, Truffaut contribuiu valiosamente para o êxito artístico do filme, embora nem todos os cinéfilos saibam disso, porque Godard se desentendeu com Truffaut (a velha inveja profissional) e retirou-lhe o nome dos créditos... Godard sabia-o melhor em relação a si. Ao longo deste artigo o leitor poderá ler a transcrição da célebre carta de Truffaut a Godard.

Filmografia Completa

Truffaut foi o “filmmaker” de 22 longas e ainda deixou escrito um roteiro para seu assistente Claude Miller, do qual resultou o filme “Ladra e Sedutora” (La Petite Voleuse), de 1989. Sua filmografia completa contempla bons filmes e algumas pequenas obras-primas, sem esquecer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para “A Noite Americana” e outros prêmios da crítica e em festivais na Europa. Ei-los, além dos já citados: “Amor aos 20 Anos” (L’Amour à 20 Ans, 1962); “Um Só Pecado” (La Peau Douce, 1964); “Fahrenheit 451”, de 1966; “A Noiva Estava de Preto” (La Mariée Etait en Noir, 1967); “Beijos Proibidos” (Baisers Volés, 1968), “A Sereia do Mississippi” (La Sirène de Mississippi, 1969); “O Garoto Selvagem” (L’Enfant Sauvage) e “Domicílio Conjugal” (Domicile Conjugal, ambos de 1970), no qual deixa no subtexto a idéia do casamento como instituição fracassada; “As Duas Inglesas e o Amor” (Lês Deux Anglaises et le Continent, 1971), “Uma Jovem tão Bela como Eu” (Une Belle Fille comme Moi, 1972); “A Noite Americana” (La Nuit Americaine, 1973); “A História de Adéle H.” (L’Histoire de Adele H., 1975), “Na Idade da Inocência” (L’Argent de Poche, 1976), “O Homem que Amava as Mulheres” (L’Homme qui Aimait Les Femmes, 1977); “O Quarto Verde” (Le Chambre Verte) e “O Amor em Fuga” (L’Amour em Fuite, ambos de 1978); “O Último Metrô” (Le Dernier Métro, 1980); “A Mulher do Lado” (La Femme d’à Cotê, 1981) e “De Repente, num Domingo” (Vivement Dimanche, 1983).


Desses 22 filmes, apenas quatro foram criticados por analistas zoilos ou incompetentes: “Fahrenheit 451”, “A Noiva Estava de Preto”, “A Sereia do Mississippi” e “O Quarto Verde”. O primeiro porque o consideraram sem “plot” (?) e desprovido (?) de emoções; o segundo porque devia ter sido filmado em p&b como o exigia o filme “noir”; o terceiro por causa de uma incoerência do personagem vivido por Jean-Paul Belmondo, o qual teima em ficar com mulher mau caráter, a qual desejou matá-lo; o quarto por causa do culto aos mortos como tema.

Quanto a “Fahrenheit 451”, a crítica é improcedente: Truffaut o quis assim e isso foi explicado em comentário nosso vindo a lume no DN (Caderno 3), em 25 set de 2006, e logo depois num texto do próprio Truffaut intitulado “Revisitando Fahrenheit 451”, quando o cineasta reconhece ser o filme realmente frio, desprovido de emoções.Textualmente: “Foi exatamente isso que tive em mente. Afinal estamos no mundo de Ray Bradbury, na sua visão futurística, distópica, de um estado totalitário, onde as pessoas se escondem.se contêm, as imagens-rosto não exprimem alegria, espontaneidade, amor ou satisfação. Qualquer extravasamento emocional daquela coletividade, caso o diretor optasse por isso, pareceria algo forçado, inconvincente”. Quanto a não ter “plot” (o arranjo dos incidentes conforme planejado pelos autores do “scénario”), ele preexiste e assim se desenvolve quando os personagens criam vida; só não percebeu isso quem está por fora do processo narrativo no cinema e das opções a serem escolhidas pelo cineasta.

Quanto a “A Noiva estava de Preto”, Truffaut também o queria em p&b, mas se convenceu depois de uma troca de idéias com Jean-Louis Richard, seu roteirista, para quem as cores seriam um diferencial importante e de certa forma inédito. Afinal, a filmagem em cores não invalida o valor intrínseco de “A Noiva...”, filme rico em termos de tensão, suspense, imagens-significantes, ritmo, condução dos atores, fotografia de primeira, tudo digno de um dos mestres da elipse no cinema. Para o crítico da revista SET (v. DVD, Blue-Ray, dez. de 2009, pág. 72), “A Noiva... tem soluções temáticas surpreendentes e Truffaut, com elegância, mantém o interesse do espectador”.

Em “O Quarto Verde”, no qual Truffaut faz o papel de Julien Davenne, a crítica se referiu ao fracasso na bilheteria e ao enfoque dado ao tema da morte, esquecendo-se do insólito triângulo amoroso no qual o rival de Davenne já não existe. As reflexões de Truffaut sobre “O Quarto...” transcritas mais adiante, esclarecem quaisquer dúvidas porventura ainda existentes na visão dos críticos responsáveis. Ver e rever o filme é o primeiro passo para entender o todo agora redescoberto por muitos cinéfilos. Quanto ao mais, se todos os realizadores fossem pensar unicamente nos resultados das bilheterias, certos filmes talvez nunca tivessem sido feitos.

Antecedentes do 18° Filme

Em 1978, impressionado com a perda de vários amigos, Truffaut decidiu levar ao ecrã um filme sombrio, quase uma evocação direta das chamadas obras insólitas. Inspirou-o a leitura, então recente, da novela “The Altar of the Dead” (O Altar dos Mortos) do escritor inglês Henry James (1843-1916), a qual Truffaut denominou de “La Chambre Verte”. Este filme pode ser encontrado em DVD nas distribuidoras locais e atende a indagações de cinéfilos interessados em ver ou rever a realização e o motivo dessa escolha e do título. Truffaut, para quem o cinema é também uma arte da concisão, leu e releu o original e adaptou-o para o século XX depois de algumas semanas de trabalho com Jean Grualt. Fê-lo assim, segundo ele próprio, porque queria associar o filme às lembranças da Grande Guerra (1914-18) com seus milhões de mortos nos campos de batalha, mais uma prova cabal da estupidez do homem em todos os tempos e modos. 21 anos depois inicia-se a II Guerra Mundial, e logo a Guerra Fria, a corrida armamentista, a guerra dos 6 dias, os conflitos judeus x palestinos, o terrorismo, etc. Quanto mais o tempo passa, mais a humanidade permanece a mesma. Não admira a visão pessimista de Truffaut em relação à sociedade humana.

Outros Registros

Em verdade, não fazia sentido para o “metteur-em-scène” francês conservar a atmosfera do século XIX, pois seria de certa forma reproduzir o cenário romântico de “A História de Adele H.” e era preciso estabelecer um contraste bem nítido entre as cenas do dia-a-dia e as do altar improvisado em pleno cemitério dos combatentes. Aliás, como confessou o próprio Truffaut, as cenas da necrópole vêm de suas lembranças de garoto travesso, só percebidas durante as filmagens, enquanto ele trabalhava com Nestor Almendros, um dos seus diretores de fotografia preferidos (recorde-se, por exemplo, a simbiose entre os dois em “O Último Metrô). Isso porque, disse ele, o contraste das cores e de suas gradações iria ocorrer a partir da utilização de luz elétrica para a vida doméstica e da luz de velas para o altar improvisado com vistas a produzir uma claridade de fábula, quase irreal!


Indagado sobre o tema a ser desenvolvido, respondeu Truffaut literalmente: “Antes de começar a trabalhar com Grualt, pensei em dois roteiros, mas depois decidimos pelo menos mórbido dos dois... Em verdade, há mais referências cinematográficas e menos literárias nesse labor conjunto. Além disso, não se trata de um filme sobre o culto da morte, como pensou um crítico por equívoco, mas, sim, de uma extensão do amor pelas pessoas a quem conhecemos e se foram para sempre e da idéia segundo a qual de alguma forma elas permanecem em nossas lembranças!. Como é bom ler e “ouvir” Truffaut em sua oficina de trabalho, quantos ensinamentos traz para cinéfilos, críticos e até para outros diretores!

A propósito, lembremo-nos de outras reflexões suas às jornalistas Catherine Laporte e Daniéle Heyman da revista “L’Express” (n°. 1392, de março de 1978): “Acabo de completar quarenta e seis anos e já começo a ficar cercado de desaparecidos... De um filme como ‘Tirez sur le Pianiste’, metade dos atores participantes já se foi. De tempos em tempos, os desaparecidos me dão saudade, como se acabassem de morrer. Jean Cocteau, por exemplo. Então coloco um de seus discos e ouço-o. Escuto sua voz pela manhã, enquanto tomo banho. Como sinto falta desse artista...”

“O Quarto Verde”: Tema e Direção

O tema tratado pode deprimir espectadores mais sensíveis, pois os diálogos estão voltados para a morte, para a idéia do respeito aos mortos, como se vivos estivessem. Preocupou-se Truffaut com sua atuação como personagem central e com o processo narrativo, o qual se iniciava com imagens da Grande Guerra reproduzidas através de filtros azuis, com o próprio Truffaut no papel de Julien Davenne, visto no centro do enquadre caminhando em pleno front, enquanto os demais combatentes saíam das trincheiras ou se viam os feridos e o fogo da artilharia.


Corta-se dez anos depois para o velório no qual um marido viúvo, quase patético, não quer aceitar a morte de sua mulher nem permite tirá-la do caixão, beijando-a desesperado, Enquanto isso, um dos sacerdotes, com palavras de dúbia consolação, fala do pecado e da ressurreição para o reencontro (sic) dos mortos queridos, palavras aliás rechaçadas por Davenne, amigo do viúvo, o qual põe os padres para fora da sala. Ao viúvo, diz-lhe para não ouvir as palavras inúteis de resignação ou de um reencontro dos dois após a morte. Pouco tempo depois, há uma cena irônica: o viúvo já está bem com outra mulher e esquecido da falecida, quando vai visitar a redação do jornal onde trabalha Davenne. Este se esconde para não vê-los e o corte para outra cena é oportuna e refaz ligações anteriores.

A vida é uma competição feroz, desleal, e Davenne crê firmemente ser preciso esquecer. “Você conhecerá mais mortos e menos vivos”, diz ele a Cecília (Nathalie Baye), então jovem atriz das melhores do cine francês. Há um gesto, aliás, de Cecília quando, em dado instante, no terço final, ela pega uma das velas e a repõe acesa para o lugar de Davenne. Para alguns espectadores, Truffaut deixa no subtexto uma certa morbidez do personagem, enquanto outros não vêem mal algum em cultuar os mortos queridos de forma adulta, apenas como lembrança de outros tempos felizes, mas certos de jamais se reencontrarem. O cerimonial com as centenas de velas acesas, concepção magistral de Truffaut como cinema, precede o epílogo de modo inteligente, tal como um verdadeiro criador cuja sabedoria consiste em não dizer tudo.

Muito já discorremos sobre Truffaut e esta realização. Basta lembrar aqui o corte significativo para o cemitério dos combatentes com os capacetes sobre as cruzes, o militar ferido levado no carro, o reencontro de Davenne com Cecília, a recusa em não fazer o obituário de Massigny, a qual ficará bem compreendida no final, a pequena participação do garoto surdo-mudo, um achado de Truffaut no seu “travail ensemble”, quando do pequeno incêndio em sua casa, a “féerie” das velas. A música permeia então o silêncio e Davenne sai do cemitério tarde da noite; como não há ninguém à vista, ele decide escalar o muro, todos estes detalhes pertinentes para o filme não deixar pontas soltas. Daí em diante, nascida do conflito básico entre Cecília e Davenne, cresce a tensão e as imagens-movimento nos levam a um “dénoument” irreversível.




Reflexões de Truffaut

Neste ponto, pareceu-nos mais consentâneo complementar as nossas observações críticas sumárias com as reflexões do realizador para melhor entendimento de quantos desejarem ver ou rever “O Quarto Verde”, filme aqui e ali exibido em cineclubes da Europa e até dos EUA como fonte preciosa de informações sobre como certos filmes não envelhecem. Este de Truffaut, e muitos outros de sua filmografia, continuam novos pelos tempos afora. Eis suas reflexões:
“Desenvolvo visualmente em ‘La Chambre Verte’ o conceito segundo o qual a força das lembranças, da fidelidade e das idéias fixas é mais forte em relação à atualidade. Essas coisas não devem submeter-se aos caprichos. Não devemos desligar-nos das coisas e pessoas sobre as quais não se fala mais, mas continuar a viver com elas, se as amamos. Recuso-me a esquecer. Sou contra o esquecimento, rejeito-o como uma grande futilidade. (...)


“Decidi-me atuar como personagem central para tomar o filme mais íntimo. Pareceu-me que se eu fizesse o papel de Davenne conseguiria a mesma diferença que obtenho quando, colocando em dia minha correspondência no escritório, deixo algumas cartas datilografadas e escrevo outras à mão. ‘La Chambre Verte’ é como uma carta escrita à mão. Ela não sai perfeita, a letra talvez fique um tanto tremida, mas ela é sua, é sua escrita. (...)

“O garoto surdo-mudo é uma invenção, não existia no original de Herny James, uma história que funciona à base de repetições, acumulações, com poucos incidentes, daí o motivo pelo qual a casa foi mobiliada e inserimos personagens secundários. A idéia do garoto provavelmente me ocorreu durante os oito dias de gravação feita num instituto de surdos-mudos para’L’Enfant Sauvage’. Mas acabei não contratando nenhuma criança surdo-muda, pois temia que essa condição causasse, durante as filmagens, uma tensão nervosa muito forte numa criança deficiente. Em ‘La Chambre Verte’ o talentoso Patrick Macheón é um pouco uma réplica de Julien Davenne, mas em determinados aspectos bem mais adaptado em relação ao personagem central. (...)
“Imagino que alguns espectadores não se animem a ver um filme sobre a morte. Mas quando um tema me assusta, empenho-me mais do que se ele não tivesse problema algum. Se não há problema, eu me proponho algum. Agora se tenho medo, esforço-me ainda mais em ser cativante, em permanecer instigando os espectadores, em criar uma progressão. Um dos personagens mais importantes do filme é um morto, ou sua lembrança pertinaz, persistente, indefectível – Massigny, pois separa os dois vivos: Cecília e Davenne. Sem Massigny não teria havido filme, pois este careceria de movimento. ‘La Chambre Verte’ assemelha-se a uma fábula da qual Massigny é o vilão. Ele simboliza tudo quanto nos impede de dormir e sobre o qual se concentra toda nossa agressividade. Como Davenne gosta dos mortos (isso chega a ser sua única devoção, embora não haja qualquer noção de Deus) e com eles mantém as mesmas relações que manteria se estivessem vivos, não aceita a convenção segundo a qual a morte iguala tudo. Ele é capaz de odiar um morto.


“Aqui Massigny é o equivalente de Victor Hugo em ‘A História de Adele H’, invisível mas sempre presente. O triângulo Cecília, Davenne, Massigny é semelhante ao triângulo Adèle, Pinson, Hugo. ‘La Chambre Verte’ é a história de um encontro ao qual se faltou, de um amor negligenciado. Se Massigny não existisse? Cecília é mais serena em relação a Davenne, mas sente-se tentada a embarcar na sua loucura. Se ele não se tivesse separado por causa de Massigny, ela certamente se teria tornado a guardiã do santuário. No entanto, nem assim teria conseguido trazê-lo à vida: entre ambos há um outro obstáculo – a mulher morta de Davenne. O final é feliz na medida que satisfaz o espírito (aqui entendido como a parte sensível ou inteligente do ser humano). Se uma idéia vai até o fim, até seu ápice, forçosamente satisfaz o espírito.

“Quanto a se a recusa da morte por parte de Davenne não seria a conseqüência última do culto absoluto visto em muitos dos meus personagens, diria que sim. Sim, continua sendo a luta entre o absoluto e o relativo, o provisório e o definitivo. O esquecimento progressivo corresponde à lei da vida. Alguém que, dez anos após a morte de outra pessoa, experimenta sentimentos tão violentos, quanto os que geralmente experimentamos um mês depois, torna-se inconveniente. ‘Alguns amigos desaparecem, outros os substituem, é a lei’. “diz Cecília.

“Mas tudo o que é do domínio afetivo reclama o absoluto. O filho quer a mãe por toda a vida, os amantes querem amar-se por toda a vida, tudo em nós pede o definitivo enquanto a vida nos ensina o provisório. Pergunto-me se o que há de mais importante no mundo não é esse momento no qual invertemos isso, no qual achamos, por exemplo, que nossos filhos são mais importantes para nós do que nossos pais...”

“Na medida em que o tempo passa, torna-se conveniente esquecermos nossos mortos, pois, esquecendo-os, é a nossa própria morte que esquecemos. Proust disse: ‘Não é pelo fato de os outros estarem mortos que a nossa afeição por eles diminui, mas porque nós mesmos morremos...’ “Sim, o verdadeiro dilaceramento reside na necessidade de aceitarmos o provisório para sobrevivermos.”

“Enfim, acredito na emoção retida, na emoção não por paroxismo mas por acumulação. Eu queria que o público assistisse a ‘La Chambre Verte’ com a boca aberta, cada vez mais surpreso, e que a emoção só o envolvesse no final. Graças unicamente ao lirismo da música de Jaubert. tentei desenrolar um fio sem rompê-lo, e obter uma linha, a mais pura possível. ‘La Chambre Verte’ é um filme anti-hollywoodiano na medida em que em Hollywood se trabalha com grande generosidade narrativa. Ele é deliberadamente mais europeu porque repousa sobre uma idéia clássica de se fazer qualquer coisa a partir de quase nada, com pequenas coisas que devemos amplificar de modo a se tornarem um acontecimento...”

“Para mim, ‘La Chambre...’ pertence a uma família de filmes nos quais encontramos ‘Fahrenheit 451’, ‘O Garoto Selvagem’ e ‘A História de Adèle H.’. Neles, os mortos são como os livros de ‘Fahrenheit’: as pessoas insistem em reanimar coisas inertes, os vivos lhes insuflam seu próprio sopro, suas próprias paixões.”
(F. Truffaut in “L ‘Express”, mar 1978, entrevista a C. Laport e D. Heymann)

UMA CARTA DE TRUFFAUT

Em entrevista à Telérama, em julho de 1978, Jean-Luc Godard agrediu injusta e desnecessariamente François Truffaut em face de pequenas divergências entre eles, as quais poderiam ter sido sanadas em razão da antiga amizade entre os dois cineastas. Em fins dos anos 70, disse Godard, entre outras coisas: “Acho que Truffaut não sabe em absoluto fazer um filme. Fez um que era a sua cara, ‘Os Incompreendidos’, e ficou por aí; depois só conseguiu contar histórias”. Alertado para a injustiça de suas palavras, Godard convidou Truffaut a um encontro de um ou dois dias em Genebra com amigos comuns. “Numa reunião a quatro, seria mais fácil diminuir as divergências entre nós e o clima seria melhor. Um abraço, apesar de tudo”.


Truffaut, em silêncio há bastante tempo, decidiu rompê-lo com esta resposta irrespondível: “O seu convite para ir à Suíça é extraordinariamente lisonjeiro, sabendo-se como o seu tempo é precioso. Quer dizer então que você conseguiu botar os checos, os vietnamitas, os cubanos, os palestinos e os moçambicanos nos trilhos e vai agora dedicar-se solicitamente à reeducação do que resta da Nouvelle Vague... Espero que esse, projeto apressado do livro na Gallimard não signifique que daqui pra frente você pouco estará ligando para o terceiro mundo ou para o quarto... Sua carta é espantosa, e seu pastiche de estilo politiqueiro, extremamente convincente. O fim da carta é um dos seus melhores achados. ‘Um abraço, apesar de tudo.’ Quer dizer que você não nos censura por nos ter chamado de malfeitores, crápulas e pestilentos. (...) De minha parte, estou disposto a ver a sua localização – que graciosa expressão... – quando penso em todos os hipócritas que poderiam receber a sua palavra e disseminá-la em seguida por toda parte.”

“Peço-lhe também que convide Jean-Paul Belmondo. Você disse que ele tem medo de você, seria então o momento para tranqüilizá-lo. Gostaria também da participação de Vera Chytilova, cineasta checa que despontou nos anos 60 e que você denunciou como ‘revisionista’ no próprio país dela, em plena ocupação soviética... A presença de Vera nesse encontro parece-me necessária, pois tenho certeza de que você a ajudaria a conseguir um visto para deixar o país... Por qual motivo Lolch Bellon, que você chamava em ‘Telérama’ de vigarista? E não esqueçamos também Boumboum, nosso velho amigo Braunberger, que me escrevia no dia seguinte ao seu telefonema: ‘Judeu sujo é o único insulto que não posso suportar’. Aguardo sua resposta sem excessiva impaciência, pois se você se tornar um tiete de Coppola provavelmente não terá tempo, e não se pode nem imaginar que você prepare sem o devido cuidado seu primeiro filme autobiográfico, cujo título já posso antecipar: Um merda é um merda.” (Extraído de “A Imagem Incompleta”, págs. 477/478/479 do livro FRANÇOIS TRUFFAUT, Uma Biografia, de Antoine de Baecque e Serge Toubiana.

OS ÚLTIMOS DIAS

Este artigo sobre Truffaut e “La Chambre Verte” não estaria completo sem o final, pois os últimos dias do cineasta são dramáticos, como contam seus biógrafos: “Sua visão está consideravelmente afetada. Quando os amigos vinham visitá-lo, Truffaut ainda se mostrava brilhante, risonho, esperto, divertido, pois as visitas agiam como estimulantes. Durante todo o verão de 1984 os amigos e admiradores se sucediam, mas Truffaut já quase não tem forças. O Pe. Mambrino, cinéfilo e fã de Truffaut, veio visitá-lo. Madeleine, sua ex-mulher, lembra-se de ter ouvido os dois rirem. Mas Truffaut não tem fé religiosa. Mambrino pensa que o cineasta deseja confessar-se. Mas o que quer mesmo é questioná-lo sobre o além... Depois da partida, Truffaut diz a Madeleine: ‘Ele não sabe mais que nós. E não creio que haja uma continuidade’.”
“Ainda assim os amigos querem celebrar na Igreja uma cerimônia fúnebre, tão logo Truffaut exale um último suspiro. Era o dia 21 de outubro de 1984, 14h30min de uma tarde bem amena. Apesar de descrente, Truffaut não seria contra essa cerimônia. A seu pedido, seu corpo foi incinerado no cemitério Père Lachaise e em 24 do mesmo mês as cinzas foram enterradas no Cemitério de Montmartre. Milhares de pessoas da família, as mulheres que ele amava, amigos, atores, cinéfilos, cineastas, assistem ao enterro ‘sob um esplêndido sol de outono’. Como era esperado, Claude de Givrai e Serge Rousseau disseram palavras em seu túmulo. Tal como em “O Quarto Verde”, no qual Truffaut celebrava, como o personagem de Julien Davenne, o culto dos mortos, centenas de velas iluminaram nesse dia a nave da igreja de Saint-Roch. Assim desaparecia para sempre essa imensa figura humana ainda sem igual no ‘milieu’ cinematográfico.”


OPINIÕES

“Poucas vezes a câmara cinematográfica se tornou tão dinâmica e perscrutadora como nos filmes desse mago francês a que tenho assistido, desde ‘Os Incompreendidos’ (do qual aquela imagem congelada do rosto do garoto no final me persegue) a ‘Uma Mulher para Dois’, de ‘A Noite Americana’ (preito memorável ao cinema) a ‘O Quarto Verde’ e deste a ‘O Último Metrô’, para mencionar apenas aqueles cujas imagens ainda me impressionam, como as do futuro sombrio de ‘Fahrenheit 451’”.

Walter Hugo Khoury (1929 - 2003) Ex-crítico e cineasta de “Amor, Estranho Amor”, in texto transcrito em Boletim do MAM, RJ, 1980.

“François Truffaut deixou com os críticos e os profissionais imagens-significantes imperecíveis, seja pela surpresa ou pelo impacto de cenas que me causaram impressão duradoura, como a da mulher que morre queimada por não querer abandonar seus livros, ou as da necrópole noturna e do festival de velas acesas, quase um toque do fantástico, em ‘O Quarto Verde’”.

Paulo de Freitas Marques (1932- ) in artigo transcrito no boletim do CEC de Belo Horizonte, 1979.

“Trabalhar como diretor de fotografia de Truffaut e partilhar de todas suas idéias, escolhas e decisões inteligentes, com as quais enriquece e valoriza as imagens-movimento dos seus filmes, seja em relação à luz ou à questão técnica de aceleração e repouso, - equivale a quase um ano acadêmico em matéria de arte fílmica. Há sempre muito a aprender com ele”.
Nestor Almendros (1930-92), fotógrafo de “O Quarto Verde” in entrevista ao “The Guardian”, 1979.

“Os Incompreendidos” de Truffaut é um marco indelével da moderna cinematografia. O garoto-ator descoberto pelo cineasta jamais enfrentou uma câmara, mas vive seu papel sem cometer erros e de forma pura, espontânea, sem afetações e na maior parte das vezes suas próprias palavras e gestos não-ensaiados parecem dele mesmo. Como um aliado secreto, a câmara de Truffaut acompanha o menor e seu colega nas aventuras em Paris e consegue quase invariavelmente captar o sabor específico do que é sentir-se ou saber-se jovem. As imagens em p&b transmitem a intensidade luminosa da experiência do adolescente numa espontaneidade vital e numa curiosidade inocente que a maioria dos adultos já perdeu.”

Jürgen Müller (1961- ), crítico de arte e autor alemão, Catedrático de História da Arte na Universidade de Dresden, onde mora., in “Movies of the 50’s”, da Barnes & Noble Books, NY, 2006.




PARA SABER MAIS

1. “O QUE É CINEMA?”, de André Bazin, Brasiliense e Livros Horizonte, 1992;
2. “O PRAZER DOS OLHOS” (Escritos sobre cinema), de François Truffaut; Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2000;
3. “O CINEMA SEGUNDO FRANÇOIS TRUFFAUT”, textos reunidos por Anne Gillain, Ed. Nova Fronteira, 1988;
4. “THE NEW WAVE”, de Peter Graham, London, British Film Institute, 1970;
5. “RETROSPECTIVA 1975-1984”, Entrevistas de Don Allen, “Sight and Sound” 48 nº 4,1979;
6. “HITCHCOCK/TRUFFAUT”, Editora Schwarcz Ltda, São Paulo, SP, 1970;
7. “FRANÇOIS TRUFFAUT” (Filmografia Completa), Taschen GmBH 2004;
8. “MOVIES OF THE 50s”, de Jürgen Müller, publicada pela Barnes & Noble, Inc, Taschen GmbH, 2006;
9. “501 MUST-SEE MOVIES” , Bounty Books, in Great Britain in 2004;
10. “SCREEN DIRECTING” , de Edward Dmytryk, Focal Press, USA, 1984; e
11. “THE WORLD OF FILM AND FILMMAKERS”, de Don Allen, com prefácio de François Truffaut, publicado pela Crown Publishers, Inc, New York, NY, 1980.

FIQUE POR DENTRO

O pranteado cineasta Edward Dmytryk, diretor de filmes como “A Nave da Revolta”, “Miragem”, ”Os Deuses Vencidos”, “Minha Vontade É Lei”, “A Lança Partida”, demonstrou em seu “Screen Directing”, de 1984, livro de cabeceira de muitos realizadores e técnicos, a necessidade de pleno entrosamento do “metteur-en-soène” com o diretor de fotografia, o editor (ou “cutter”, “schnitt” ou “monteur” nos três idiomas) e o roteirista. Sem isso, nenhum filme terá êxito. Dmytryk, porém, não esqueceu a importância do produtor, ou seja, o valor de quem exerce controle total sobre a produção de um filme e tem a responsabilidade final pelo sucesso ou fracasso da produção. Em termos ideais, escreveram F.Kline & R.D.Nolan, um produtor de filmes deve combinar a argúcia de um homem de negócios com a de um rigoroso mestre de obras, ser senhor da contabilidade de custos e ao mesmo tempo um diplomata flexível e um visionário criativo.
Os produtores, contudo, variam amplamente em termos de personalidade, na extensão de sua autoridade e no grau do seu envolvimento na várias fases da produção. Além disso, o trabalho do produtor começa muito antes do início da produção e não termina enquanto o produto acabado não tiver sido posto “na lata”... Seu envolvimento começa onde todos os filmes começam, com uma idéia-diretriz e a oficialização dos investimentos feitos e da divisão dos lucros das bilheterias, pois ninguém quer perder dinheiro numa produção. Houve tempo, disse Don Siegel, no qual só havia um produtor e era mais fácil o diálogo. Hoje, há vários (produtor associado, produtor de linha. produtor executivo, etc.) e a tarefa de produzir um filme nem sempre corre sobre trilhos. Enfim, sem o produtor-chefe, digamos assim, um filme simplesmente não levanta vôo. Se houver vários, é necessário um envolvimento de todos no processo e um acerto de vontades. Se houver empresas como produtoras, os desentendimentos no trato de problemas podem dificultar o êxito da produção. Ficamos por aqui.