quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

STANLEY KRAMER: OUSADIA E COMPETÊNCIA TÉCNICA

Poucos cinéfilos deste nosso tempo se dão conta da importância de Stanley Kramer, produtor-diretor dos melhores de quantos brilharam no cinema hollywoodiano e se projetaram além-mar. Se apreciadores da 7ª Arte forem ler esta biofilmografia de Kramer, antes uma homenagem póstuma deste crítico no Caderno de Cultura ao renomado cineasta, e recorrer às nossas distribuidoras para aquisição ou locação de alguns de seus filmes, poderão aquilatar melhor o valor intrínseco do cinema de Kramer. Assim também a sua permanência em artigos de revistas estrangeiras ou em revisões feitas por cineclubes americanos ou europeus, graças aos quais se preserva para as novas gerações a memória crítica dos filmes de ontem e de seus mestres ou “filmmakers”.

Há tempos vínhamos sentindo a ausência de Kramer neste espaço matutino, pois escolhas diversas não significam esquecimento ou preferências nossas por outros nomes, mas, sim, necessidade de mais pesquisas e referências sobre a importância do cineastra nova-iorquino no mundo do cinema. A exemplo dos nossos textos sobre Welles, Kubrick, Bergman, Resnais, Truffaut, Malle, Riefenstahl, Scorsese, Losey, Godard, Mulligan, Eastwood, Dmytryk, Siegel, Winkler, dentre outros, impunha-se há tempos o nome do nosso homenageado.

Pontos de Partida

Stanley Earl Kramer nasceu em 29 de setembro de 1913 na cidade de Nova Iorque, próximo à vizinhança de classe trabalhadora de Manhattan conhecida como “Cozinha do Inferno” (Hell’s Kitchen). Filho de pais divorciados, Kramer foi criado pela avó materna, fã do filme mudo. Além disso, a família Kramer tinha duas ligações familiares com a crescente indústria do cinema. A primeira porque a mãe do jovem Kramer trabalhava como secretária da Paramount Pictures, fundada em 1912 por Adolph Zukor (1873 - 1976), imigrante húngaro chegado aos EUA em 1888.
Trabalhador incansável, Zukor foi capaz de dar duro como encarregado de toda limpeza de uma loja onde se vendem peles até vir a ser sócio e depois o dono de um próspero e idêntico negócio em Chicargo. Em 1903, aos 30 anos, aventurou-se num negócio novo, espécie de caça-níqueis, para terminar como tesoureiro de vasta cadeia de salas de cinema... Fez fortuna como distribuidor do filme “Rainha Elizabeth”, produção européia em quatro carretéis e investiu os lucros para fundar sua própria companhia, a “Famous Players”.
A segunda ligação familiar era a do tio Earl, funcionário da Universal e depois agente em Hollywood. Enquanto isso, o jovem Kramer ia absorvendo essa ambiência cinematográfica ou psicofísica da família, embora sua intenção a certa altura fosse seguir a Faculdade de Direito. Um artigo, porém, de sua lavra, muito bem escrito sobre cinema, em seu ultimo período na Universidade da Nova Iorque, na qual se martriculara alguns anos antes, propiciou-lhe uma bolsa de estudos no Departamento de Histórias da 20th Century Fox.

Novo Rumo Profissional

Terminada a bolsa, Kramer decidiu ampliar suas perspectivas e horizontes profissionais, mudando-se para Hollywood, chamada já de Meca do Cinema, com vistas a apreender tudo quanto se relacionava com cinema, desde conhecer os camarim dos atores, os cenários, as salas de projeção e as câmaras profissionais, as fontes de iluminação, os laboratórios e o Departamento de Cortes ou sala de edição, como preferem outros. Depois de certo tempo, Kramer passou a trabalhar no Departamento de Histórias da Columbia Pictures e em 1941 já atuava como assistente de produção para o diretor John Cromwell (1888 - 1979) no filme “Náufragos” (So Ends our Night, 1941) e para o produtor-diretor Albert Lewin (1894 - 1968) em “Um Gosto e Seis Vintens” (A Moon and Six Pence, 1943).

Aprendiz na II Guerra

Kramer foi convocado para o serviço militar aos 30 anos, em 1943, em plena II Guerra, e passou o próximo biênio trabalhando numa unidade de cinema documentário do exército dos EUA em Nova Iorque, onde veio a conhecer o renomado escritor Carl Foreman, cujas ambições profissionais iam além de simplesmente atuar no Departamento de Histórias de algum estúdio. Em 1948, Kramer organizou a “Screen Plays Inc.”, companhia independente em parceria com Foreman, o escritor Herbie Baker e o publicitário George Glass. A novel companhia independente conseguiu levantar dinheiro de investidores privados, ao invés de fazê-lo via Bancos, mas seu “debut”, a comédia “Era uma Vez uma Herança” (So This Is New York, 1948), dirigida por Richard Fleischer (1913 - 78), alcançou pleno êxito devido à orientação e assistência de Kramer, a quem coube também a direção das lutas de pugilismo e uma cena-chave da montagem. Quanto ao produtor Foreman, ficou convencido da competência de Kramer não só na condução dos atores mas na sua noção de fluência narrativa e o colocou no mapa...

Firma-se Kramer

“O Invencível”, recorde-se, enfoca um pugilista auto-destrutivo interpretado por Kirk Douglas, e a repercussão obtida junto ao público e à crítica levou o filme a receber seis indicações para o Oscar, incluindo-se a de Melhor Filme e Melhor Ator, afora a consagração de Douglas. Num relance, Kramer surgiu para a indústria cinematográfica como um produtor digno de ser observado. Seu filme seguinte como produtor e com direção de Mark Robson, “Clamor Humano” (Home of the Brave, 1949), uma drama sobre o odioso preconceito racial na II Guerra e fora dela, foi considerado tão ousado à época a ponto de ter sido rodado em segredo (!). Mas, tão logo foi lançado no circuito exibidor, firmou Kramer como um dos mais ousados e competentes produtores dos filmes dos anos 40 em Hollywood, merecedor de prêmios dos críticos e louvores daqueles cujos olhos estão sempre voltados para os êxitos de bilheteria...

É preciso “ler” o filme...

Já se faziam bons filmes à época e estes já estavam ao alcance de platéias adultas capazes de pensar e ver o cinema também como arte da elipse na qual importa sugerir mais e mostrar menos e onde o filme vale por tudo quanto pretende dizer e pela forma como diz isso. Tal como se Kramer, uma das cabeças pensantes de todos esses êxitos, lhes estivesse transmitindo intuitivamente, no plano das imagens em movimento, algumas das conclusões à qual chegaram os participantes do Congresso Internacional para a Revisão do Método Crítico realizado em Bruxelas, em 1947.
Assim, Kramer seguiu suas diretrizes em 1950 com “Espíritos Indômitos” (The Men, 1950), uma história provocativa acerca de veteranos paraplégicos, a qual também assinalou o “debut” cinematográfico de Marlon Brando. O único infortúnio do lançamento, escreveram alguns analistas, foi o lançamento da película no mesmo dia da entrada dos EUA na Guerra da Coréia, e isso tornou seu tema impossível de “vender” a um público nervoso e incerto quanto ao futuro, apesar de Brando e seus coadjuvantes se terem saído bem sob os olhos atentos de Zinnemann e Kramer.

Cohn Vai a Kramer

Harry Cohn ou Harry the Horror, o irritadiço presidente da Columbia Pictures, era também um déspota (recordem-se seus desentendimentos com Welles quando das filmagens de “A Dama de Shanghai”, de 1946), mas decidiu aproximar-se de Kramer com uma oferta generosa e surpreendente: Kramer produziria filmes para o seu estúdio e ele mesmo teria escolha livre quanto aos temas escolhidos, enquanto a Columbia os financiaria, contanto não se fosse além dos US$ 980,000 dólares: ele poderia exceder o orçamento em casos excepcionais, mas somente com o aprovo de Cohn. Kramer, é claro, aceitou a oferta mas começou a trabalhar nos estúdios um pouco mais tarde nesse ano, pois estava terminando uma última produção independente, o drama “Matar ou Morrer” (High Noon, 1950), um “western” de primeira linha dirigido por Fred Zinnemann com Gary Cooper no papel principal.

Sombras do Macarthysmo

Distribuído em 1952 pela United Artists, “Matar ou Morrer” atraiu o chamado grande público, tornando-se um dos mais populares e consistentemente um dos mais estudados e analisados de todos os “Westerns” feitos até então, quando a venda de ingressos crescia tanto quanto as referências favoráveis ao filme, nestas incluídas as de Melhor Ator para Gary Cooper e as indicações ao cobiçado Oscar. Mas “High Noon” marca também, em outubro de 1951, o fim de uma grande parceria de Kramer com Carl Foreman – o escritor estava sob pressão para testemunhar acerca de seu envolvimento com o Partido Comunista no passado. Kramer defendeu o amigo, mas preferiu dedicar-se mais à sua empresa, a Screen Plays Inc., e evitar chateações com a histeria anticomunista, onde se buscavam subversivos até debaixo das camas e outros “culpados por suspeita”... Basta recordar aqui os filmes críticos de Irwin Winkler, de 1991, pois não teve condições de filmá-lo antes, e de “Boa Noite, e Boa Sorte” (Good Night, and Good Luck, 2005), de George Clooney.
Mesmo com “Matar ou Morrer” faturando milhões de dólares, os demais filmes de Kramer na Columbia não conseguiam saldar as contas. Não quer isso dizer fossem eles medíocres ou incapazes de assegurar a atenção dos críticos – os filmes simplesmente não afinavam com o gosto do público. Alguns poucos, como “A Morte do Caixeiro Viajante” (Death of a Salesman, 1951), com direção de Laszlo Benedek, eram considerados muito frios ou depressivos em seu tema e este foi pixado por grupos de extrema direita porque atacavam a livre empresa e portanto eram comunistas na sua mensagem subliminar (ou no subtexto, como se prefere dizer hoje)... Enquanto outros, tais como “Volúpia de Matar” (The Sniper, 1952) e “O Malabarista” (The Juggler, 1953), este o primeiro longa a ser rodado em Israel, ambos de Edward Dmytryk, “Cruel Desengano” (Member of the Wedding, 1952), de Fred Zinnemann, “O Selvagem (The Wild One, 1953), também de Benedek, e “Os 5.000 Dedos do Dr. T.” (The 5000 Fingers of Dr. T., 1953), de Roy Rowland, eram demasiado modernos e desafiadores para serem absorvidos pela massa de espectadores.

Êxitos do Produtor

Apesar de todas as perdas financeiras da Columbia, o tempo foi favorável para a maioria dos filmes feitos então por Kramer, os quais estiveram entre os melhores e os mais duradouramente interessantes gerados pela Columbia nos primeiros meses dos anos 50. “O Selvagem”, por exemplo, como registra Bruce Eder em sua magnífica biofilmografia, foi um olhar surpreendentemente precoce para algumas das forças de inquietação social e da hipocrisia da classe média, a qual cresceria com plena força uma década depois. “Os 5.000 Dedos do Dr.T.” era uma fantasia em technicolor sobre crianças e suas frustrações e “Cruel Desengano” é visto hoje como um dramático “tour de force” para Julie Harris e um triunfo diretorial de Zinnemann. Harry Cohn era crítico da maioria desses projetos, mas não tinha forças para impedir Kramer de levá-los a cabo, enquanto ele se mantivesse nos limites estreitos do orçamento – os filmes de Kramer representavam um oceano de tinta vermelha nos livros contábeis da Colúmbia. Nesse mesmo ano de 1953, Cohn e Kramer estavam ambos ansiosos para encerrar esse contrato de cinco anos.

Produtor se despede

Para seu último filme, conforme anota Leder, Kramer decidiu adaptar e produzir o “bestseller” de Herman Wouk, “The Caine Mutiny” (1955), com enfoque na vida a bordo de uma belonave durante a II Guerra Mundial. O Departamento da Marinha já havia rejeitado sugestões (ou “overtures”, como se diz discretamente) da MGM e da Fox para participarem ou cooperarem na adaptação e filmagem do livro odiado unifomemente pela Marinha, pois o consideravam injusto e ridículo de si mesma. Isso levou Kramer a negociações simultaneamente ousadas e delicadas para assegurar a promessa de assistência por parte da Marinha, enquanto garantia tornar a história desse motim a bordo tão imparcial para a Marinha dos EUA quanto pudesse ser.
Tão logo obteve a promessa de cooperação do Departamento da Marinha, Kramer assegurou os serviços de um elenco de astros como protagonistas: Humphrey Bogart, Van Johnson, Fred Mac Murray e Jose Ferrer. A bordo com eles, Kramer pôde ir até Cohn numa posição de força e o chefe do estúdio ficou impressionado com os passos dados até então para a realização do filme. Cohn tinha a sua própria agenda para a película, mas estava interessado em usar “The Caine Mutiny” para receber de volta tudo quanto a Columbia havia investido nos primeiros dez filmes de Kramer – a tanto obriga a “auri sacra fames!” ou “a execrável fome do ouro!”, como diziam os latinistas, ou “l’argent, toujours l’argent”, como queria Jean-Pierre Melville, quando discutia algum tema dos seus filmes com cineclubistas parisienses...
O produto Walter Shenson, ex-publicitário dos filmes e um dos empregados de confiança de Cohn, recordou quarenta anos depois como Cohn cuidou pessoalmente de mostrar-lhe como o orçamento de Kramer estava reduzido até os ossos, não mais de dois e meio milhões de dólares e um tempo máximo de duas horas de projeção. Foi quando Kramer negociou também sutilmente um pouco mais para cima, os 125 min... Mas, mesmo assim, nada no livro, fora do absolutamente essencial ao enredo, poderia ser incluído no filme. Kramer, porém, deixou algo nas estrelinhas para quem sabe “ler” e o filme resultante, dirigido por Edward Dmytruk, foi um sucesso, tanto da crítica quanto comercialmente, pois faturou 11 milhões de dólares em lucros, apagando todas as perdas de Kramer nos livros do estúdio.

Kramer como Diretor

Com o fim do seu contrato com a Columbia, Kramer voltou-se à produção independente e decidiu tentar a cadeira de diretor para ver se ainda cabia nela... Como produtor atento, Kramer já assimilara conhecimentos técnicos do fazer cinematográfico, já atuara atrás das câmaras, nos laboratórios, sentia-se íntimo do metiê, já estudara as teorias do cinema, a noção de ritmo, o valor intrínseco das imagens em movimento e da interação dos planos, fora assíduo na sala de cortes e já aprendera a lição segundo a qual ver um filme é antes de tudo compreendê-lo. E quando as imagens são captadas e postas num filme, o diretor não mais responde por elas. Kramer começou como “regisseur” com um drama médico de caráter sentimental e melodramático em torno das vidas de muitos personagens interconectados, na esteira de séries levadas ao rádio e à TV e chamadas de “soap opera”, porque eram patrocinadas pela indústria de sabonetes. O filme se intitula “Não Serás um Estranho” (Not as a Stranger, 1955), com Robert Mitchum, Olivia de Havilland e Frank Sinatra nos papéis-chave e o filme provou o acerto das escolhas de Kramer e o pleno êxito nas bilheterias, reforçando suas credenciais no “box office”. A duração de 135mim também antecipou de certa forma as dimensões das futuras produções de Kramer.

Ainda nos anos 50

Seguiu-se-lhe o comercialmente satisfatório drama de guerra de elevado perfil, “Orgulho e Paixão” (The Pride and the Passion, 1957), com Cary Grant, Sopjia Loren e novamente Sinatra com quem Kramer acabou desentendendo-se pelos problemas criados pelo ator-cantor sugestivos de mau-caratismo, conforme referido na entrevista concedida por Kramer ao jornalista John Stanley republicada mais adiante. Em 1957, Kramer sentiu-se novamente confortável ao espalhar suas asas em áreas controversas de uma filmagem: no despertar do “Alarme Vermelho” e na lista negra da qual resultou uma relação com centenas de nomes de funcionários ligados à indústria cinematográfica, embora os produtores desde fins dos anos 40 tendessem a esquivar-se de material abertamente controverso ou desafiador dos pressupostos do auditório. Apesar de suas convicções abertamente liberais, Kramer jamais tinha sido tocado pela lista negra ou pelo “Alarme Vermelho”. Seus filmes haviam tido piquetes de rua numa ocasião no início dos anos 50, mas nenhuma das acusações de ele ser subversivo tinha qualquer procedência: Kramer nunca fora de interesse dos investigadores em Washington, principalmente porque nunca pertenceu ao Partido Comunista nem tinha ligação com outros investigados pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso dos EUA, mais conhecido pela sigla HUAC, como o escritor Carl Foreman - esse fato tornou Kramer suspeito nos círculos esquerdistas, mas isso não o impediu de fazer filmes.

A Ruptura com Sinatra

“Tenho sido acusado”, Kramer disse ainda ao jornalista John Stanley, “de supersimplificar alguns dos temas dos meus filmes e de estar do lado errado da cerca... Tenho sido chamado de um liberal descartado de Hollywood. Fui um ‘dogooder’, ou benemérito, ao fazer filmes sobre problemas psicossociais contemporâneos e tive um estigma agregado ao meu trabalho como cineasta. Fui um produtor em busca de valores e isso nem sempre é sadio para as bilheterias”. “Houve certas coisas”, prossegue Kramer, “nas quais acreditei e nunca as questionei, certas ou erradas, Quando cresci durante a Depressão, vi Roosevelt salvar este país. Fui testemunha de uma revolução e ela deixou impressões duradoras em mim – e pontos-de-vista que eu desejava expressar quando me tornei produtor de filmes. Mas hoje não estou tão seguro de mim mesmo.”
“Stanley inclinou-se e mirou-me diretamente nos olhos”. ‘Alguma coisa me confundiu. Estou confuso em relação a valores. Hollywood já não é mais a mesma. Passamos pelo assassinato de Kennedy, Watergate e Nixon, conflitos racionais, vôos para Lua e Marte... Em que inferno realmente estamos? Francamente não sei. Assim estou assumindo agora uma posição investigatória, estou procurando, estou vendo e talvez esteja aprendendo alguma coisa’.”
“Kramer não parava de falar enquanto passava rápido de uma frase para outra”: ‘Tive minha partilha de diferença com as pessoas. Quer com o Almirante Hyman Rickover, com a Legião da Decência, o Departamento de Estado ou com os fundamentalistas, os quais me chamaram de o Anti-Cristo depois do filme ‘O Vento Será Tua Herança’. Mas também tenho orgulho de dizer: oito escritores convocados para depor no Comitê de Atividades Anti-Americanas --- escritores com quem trabalhei nos anos 40 --- adaptaram alguns dos meus pontos-de-vista para sua defesa. Pensei que John Wayme fosse ter um bebê depois de ‘Acorrentados’... Calculo ter sobrevivido a pelo menos 80 ‘grandes’ tendências importantes em Hollywood.”

O Fim dos Tempos?

As auto-incriminações de Kramer, conforme registra Stanley, prosseguiram dessa forma por mais algum tempo, quando ele começou a mencionar títulos de sua filmografia: “O Vento Será Tua Herança”, uma versão ficcional na qual o darwinismo foi lançado contra o criacionismo da Bíblia, no qual muitos ainda acreditam, apesar do ridículo envolvendo um paraíso (sic), Adão e Eva, Caim matador de Abel, a serpente falante, etc. etc. Filme aplaudido pela crítica, mas um desastre financeiro. “A Hora Final” (On the Beach, 1971) resultou num dos meus maiores êxitos como cineasta, ainda que alguns críticos zoilos me tenham acusado de exageros e afirmado ser impossível uma guerra com bombas atômicas capaz de destruir o planeta... “Como são sábios para vislumbrar o futuro deste mundo louco no qual vivemos!...”
“Agora”, descreve o entrevistador Stanley, “chegou minha vez de discutir alguns filmes de Kramer como eu os vi, pois ele concordou comigo que ‘Matar ou Morrer’ (High Noon, 1950) tinha sido uma forma de o roteirista Carl Foreman criticar metaforicamente o fiasco da ‘lista negra’ do Macarthysmo hollywoodiano dos anos 50...” “Carl”, acrescentou Kramer, “havia corrido atrás de todos os seus amigos para ajudar e todos lhe tinham virado as costas (reflexo dessa hora sinistra e do mau caráter ou tibieza de outros, assim como o fizeram em relação a Gary Cooper no filme citado”. “E finalmente houve meu momento para dizer a Kramer quanto ‘Orgulho e Paixão’ tinha significado para mim lá em 1957”.

Mau Caratismo

“Como você finalmente pôde editar o filme se Sinatra o desertou com cenas importantes ainda por filmar?” Pelo menos me senti bastante corajoso para fazer essa pergunta. “Kramer explicou-me que, depois de várias ameaças e discussões entra os advogados, Sinatra concordou em vir meses depois até meu estúdio à prova de som em Hollywood e fazer apenas algumas cenas para permitir que o editor do filme concluísse o trabalho de montagem...” Kramer manteve-se distante de Sinatra e nunca relaxou.
“Kramer e Sinatra mal se falavam e nunca mais se falariam depois da filmagem da pós-produção já referida. Kramer ficou extremamente enraivecido com as atitudes de Sinatra e nunca as esqueceu... e levou para Roslyn, onde então morava, esse ódio crescente acalentado por ele. “The Runner Stumbles, 1979”, concluído por ele depois de nossa entrevista, foi um filme que acabou tropeçando quando chegou aos cinemas americanos. Ninguém estava lá para ver. Ninguém se importaria se Dick Van Dyke estivesse lá, retornando ou não ao cinema. Para Van Dyke isso só ocorreria com a série de TV ‘Diagnosis Murder’. “E quanto a Kramer, não faria ele mais filmes depois de “The Runner Stumbles”? O fato é que Kramer nunca mais encontrou lugar no mundo de Hollywood perdido por ele em fins dos anos 70. O que quer que ele esteve pensando cinematicamente não pôde ser achado; quanto a seu ódio a Sinatra, tenho estado dizendo isso nestes últimos dias, algo que Kramer levou com ele até a sepultura, quando morreu de pneumonia em Woodland Hills, California, no Nursing Home da Motion Pictures aos 88 anos.”
Quanto a “The Runner Stumbles”, trata-se de história real sobre um padre católico acusado de, nos anos 20, assassinar uma freira por quem tinha forte atração romântica. Para a crítica de então, “uma exumação bolorenta de um caso verídico, de pouco interesse e pouca significância. Boa interpretação dos atores e boa fotografia não salvam um filme. Para Paul Taylor (MFB), esse último filme de Kramer é o cadáver reanimado de uma pretensão de pessoas convencionais, o ritmo é funéreo, ângulos baixos portentosos e simbolismo mais do que necessário. Há mais altos que baixos no cinema de Kramer, apesar dos seus 70 anos. Infelizmente, seu último filme se chamou “The Runner Stumbles”...
Um dos seus muitos admiradores, o fotógrafo Ernest Laszlo, de “A Nau dos Insensatos” ( A Ship of Fools, 1965), diria depois alto e bom som: “Desapareceu para sempre um dos melhores ‘filmmakers’ já produzidos pelo cinema hollywoodiano. Poucos se lhe igualam em conhecimentos do metiê, proficiência, organização, seriedade, compromisso com a palavra assumida, compreensão das dificuldades de convivência entre pessoas e sua visão do mundo no qual vivemos, embora não tenhamos pedido para nascer...”

Terra Ingrata

Para concluir valemo-nos mais vez de Bruce Eder: “Kramer foi tratado como um anacronismo estranhamente liberal pela comunidade fílmica e considerado, juntamente com a maioria dos seus filmes, como relíquia de uma época mais estável e mais mansa. Em 1977, Kramer relocalizou sua família em Seattle, fora dos negócios de cinema, escrevendo e ministrando aulas. No começo dos anos 90, retornou a Hollywood com a intenção de novamente produzir e dirigir filmes, mas seus planos não puderam concretizar-se. Em 1997, quatro anos antes de sua morte, Kramer publicou sua autobiografia, ‘It’s a Mad Mad Mad Mad World’, no qual seu fervente liberalismo não diminuíra. Inadvertidamente também revelou ter estado fora daquele toque mágico da urbe e escrevendo (admiravelmente, acresça-se, sobre os grupos de protestos e estudantes ativistas – mas com alguma tristeza, é claro, pois é preciso imaginar precisamente a quais campos de atividades Kramer estava-se referindo no indicativo presente durante os saudosos anos 70, quando ainda nos deixou, nos seus derradeiros filmes, um legado enriquecedor para as novas gerações. Edward Dmytryk, realizador de quase 60 filmes, dirigiu vários deles produzidos por Kramer e em seu valioso livro sobre Direção Cinematográfica registrou um lampejo de Kramer, de quase gênio, quando valorizou sobremaneira o trabalho conjunto do elenco ao indicar Humphrey Bogart para interpretar o psicótico e vulnerável Capitão Queeg em “A Nave da Revolta” (The Caine Mutiny”), do qual já tratamos nestas linhas. Um filme, aliás, indispensável numa coleção de películas fora-de-série em DVD. A filmografia de Kramer, tanto a de sua atuação como produtor e diretor, pode ser lida no fim deste artigo e oferecer outras escolhas para quem não conhece (ou conhece muito pouco) a carreira de Stanley Earl Kramer, nosso emérito homenageado deste Caderno.




Fique por Dentro

FILME NOIR, Literalmente, filme escuro ou negro. O termo foi cunhado para descrever um tipo de filme caracterizado pelo seu tom sombrio e cínico, pelo clima ou atmosfera pessimista. O termo deriva de “roman noir”, de “black novel” denominado pelos críticos franceses dos séculos XVIII e XIX para descrever a novela gótica inglesa. Especificamente, o filme noir foi cunhado para expor aquelas películas hollywoodianas dos anos 40 e começo dos 50, os quais retratavam o submundo escuro e lúgubre da corrupção e do crime, filmes cujos “heróis” e vilões são cínicos, desiludidos e com freqüência pessoas solitárias e inseguras, inextricavelmente presas ao passado sombrio ou apáticas quanto ao futuro. Em termos de estilo e técnica, o filme noir se caracteriza pela abundância de cenas noturnas, tanto nos interiores como nos exteriores, os cenários sugerem um realismo sombrio e a iluminação enfatiza sombras profundas e acentua a atmosfera fatalista. Os tons escuros e a tensão do nervosismo são intensificados pela coreografia oblíqua da ação e pelas composições e ângulos de câmara sugestivamente aflitivos.
Alguns analistas situam o nascimento do filme noir em 1938, com a realização de “Cais das Sombras” “(Quai dês Brumes), com Jean Gabin e Michelle Morgan nos papéis-chave, e de “Hotel do Norte” (Hotel Du Nord), com Annabella e Jean-Pierre Aumont, ambos de Marcel Carné (1909-96) e daquele mesmo ano, e “Trágico Amanhecer” (Le Jour se Lève, 1939), também de Carné, com Gabin e Arletty. Seguiram-se-lhes centenas de clássicos a franceses, ingleses e americanos, dos quais se podem destacar “Relíquia Macabra” (The Maltese Falcon, 1941) e “Paixões em Fúria” (Key Largo, 1948), ambos de John Huston; “A Dama de Shanghai” (The Lady from Shanghai, 1948), de Orson Welles; “A Dama Fantasma” (The Phantom Lady, 1944), de Robert Siodmak; “A Meia Luz” (Gaslight, 1944), de George Cukor; “Até à Vista, Querida” (Murder my Sweet, 1944) e “Acossado” (Cornered, 1945), ambos de Edward Dmytryk; “Águas Tenebrosas” (Dark Waters, 1944), de Andre De Toth; e “Fuga do passado” (Out of the Past, 1947), de Jacques Tourneur, para ficarmos só em alguns deles.

Filmografia de Stanley Kramer

Como Produtor:
(01) “Náufragos” (So Ends our Night, 1941), de John Cromwell;
(02) “Um Gosto e Seis Vintens” (The Moon and Six Pence, 1942), de Albert Lewin;
(03) “Assim é Nova Iorque” (So This Is New York, 1948), de Richard Fleischer;
(04) “O Invencível” (The Champion, 1949), de Mark Robson;
(05) “Espíritos Indômitos” (The Men, 1950), de Fred Zinnemann;
(06) “Cyrano de Bergerac” (Cyrano de Bergerac, 1950), de Michael Gordon;
(07) “A Morte do Caixeiro Viajante” (Death of a Salesman, 1951), de Laszlo Benedek;
(08) “Volúpia de Matar” (The Sniper, 1952), de Edward Dmytryk;
(09) “Matar ou Morrer” (High Noon, 1952), de Fred Zinnemann;
(10) “Meus Seis Criminosos” (My Six Convicts, 1952), de Hugo Fregonese;
(11) “O Amor, Sempre o Amor” (The Happy Time, 1952), de Richard Fleischer;
(12) “Leito Nupcial” (The Four Poster, 1952), de Irving Reis;
(13) “O Selvagem” (The wild One, 1954), de Laszlo Benedek;
(14) “A Nave da Revolta” (The Caine Mutiny, 1954), de Edward Dmytryk;
(15) “O Malabarista” (The Juggler, 1953), de Edward Dmytryk;
(16) “Tormentos d’Alma” (Pressure Point, 1962), de Hubert Cornfield;
(17) “Os 5.000 Dedos do Dr.T.” (The Five Thousand Fingers of Dr.T., 1952), de Roy Rowland; e
(18) “Minha Esperança É Você” (A Child Is Waiting, 1963), de John Cassavetes.

Como Diretor:
(01) “Não Serás um Estranho” (Not as a Stranger, 1955);
(02) “Orgulho e Paixão” (The Pride and the Passion, 1957);
(03) “A Hora Final” (On the Beach, 1959);
(04) “O Vento Será Tua Herança” (Inherit the Wind, 1960);
(05) “Julgamento em Nuremberg” (Judgement at Nuremberg, 1961);
(06) “Deu a Louca no Mundo” (It’s a Mad Mad Mad Mad World, 1963);
(07) “A Nau dos Insensatos” (Ship of Fools, 1965);
(08) “Adivinhe Quem Vem para Jantar” (Guess Who’s Coming to Dinner, 1967);
(09) “O Segredo de Santa Vitória” (The Secret of Santa Vittoria, 1969);
(10) “R.P.M.” (R.P.M. 1970);
(11) “Abençoai as Feras e as Crianças” (Bless the Beasts and the Children, 1973);
(12) “O Poço do Ódio” (Oklahoma Crude, 1973);
(13) “As Pedras do Dominó” (The Domino Principle, 1977); e
(14) “The Runner Stumbles” (Sem título em Português), 1979.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

“A Memory of Stanley Kramer”, de John Stanley in “The Columnists.com”, 2004;
“Stanley Kramer, a Biography/All Movie”, de Bruce Eder 4/3/2010;
“Le Cinéma de Stanley Kramer”, artigo de Yves Bourgoin transcrito em boletim do cineclube de Rouen, 1965;

PARA SABER MAIS
“The Film Encyclopedia”, 3rd. Ed..ed. by F.Kline & R.D.Nolan, Harper’s Perennial, New York, NY, 1998;
“Cinema, Year by Year”, 1894-2004, edited by Robin Karney, Amber Books, Ltd., 1994;
“The World of Films & Filmmakers”, ed. By Don Allen, com prefácio de François Truffaut, 1979;
“The Encyclopedia of Hollywood”, de Scott & Barbara Siegel, Avon Books, New York, 1990, e
“Lire les Images du Cinéma”, de Laurent Julliet et Michel Marie, Editions Larousse, Paris, 2007.

OPINIÕES
“A realização de um filme de qualidade não depende apenas de recursos financeiros em mão, depende antes dos conhecimentos e da sensibilidade que o diretor traz para o veículo. Kramer era um dos raros homens de cinema em quem se podia crer nisto.”

Wálter Hugo Khoury (Palavras pronunciadas quando da apresentação de um filme de Stanley Kramer em Campinas, SP, 1965).

“Assistir a um filme de Stanley Kramer, como o de qualquer bom diretor, é apreender algumas das qualidades intrínsecas ao espetáculo cinematográfico, pois as imagens de um filme falam por si sós e passam a existir e a significar independentemente da vontade do realizador”.

Darcy Xavier da Costa (Palavras do saudoso Presidente do CCF, quando abria o debate sobre um dos filmes de Kramer em exibição, 1965).

“Sempre admirei Kramer, profissional sem jaça, amigo dos amigos, democracia autêntico, inimigo das ditaduras de qualquer matiz, admirador de Roosevelt e defensor intransigente da liberdade de expressão. Em certa época, ele poderia ter sido bem sucedido na política: ganharíamos um novo padrão ético, mas perderíamos o cineasta.”

Edward Dmytryk (Trecho extraído de uma declaração do cineasta nos tempos ominosos do Macarthysmo e encontrado nos arquivos do pranteado Cosme Alves Neto, curador do MAM do Rio de Janeiro, 1970).



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