terça-feira, 6 de outubro de 2009

AGNÈS VARDA EM FORTALEZA

LG e Agnès Varda : encontro em Fortaleza

Neste ano da França no Brasil, comemorativo da influência desse país amigo em nossas manifestações artístico-culturais, tivemos um fenomenal “Circle de Soleil” e uma Mostra do Cinema Francês no qual atuam cinco cineastas estreantes. Segundo informações veiculadas pela Internet, teremos agora, em meados deste setembro, omitidos naturalmente outros registros pertinentes, a presença de Agnès Varda, mestra de clássicos modernos pouco conhecida de muitos cinéfilos, apesar de ser considerada uma das mais destacadas realizadoras francesas.
Sempre atenta aos desafios impostos pelas ondas de renovação, uma das quais — e a mais importante — provocada pela Nouvelle Vague, e a outros desdobramentos técnico-temáticos, a estada em Fortaleza de Agnès Varda é como um presente raro e inesperado. Confiamos em poder ver ou rever na telona, trazidos por sua presença, alguns dos seus filmes mais importantes, e naturalmente ouvi-la do alto de sua experiência e lucidez, saúde e disposição dos seus 80 anos bem vividos, sobre como ela vê a crise do cinema, o futuro do filme digitalizado e a revolução tridimensional do AVATAR de James (“Titanic”) Cameron.
Quem é Agnès Varda
Nascida em Bruxelas, em 30 de maio de 1928, de pais greco-franceses, Agnès cresceu em Paris, estudou na Sorbonne e na Ecôle du Louvre. De início, quis ser curadora de museu, depois se voltou para a 8ª Arte, a fotografia, e foi seu trabalho eficiente como profissional contratada pelo “Theâtre National Populaire” o incentivo capaz de levá-la a interessar-se pelo teatro e logo pelo cinema. Embora aos 20 e poucos anos Agnès só tenha visto alguns filmes e ainda não compreendesse bem o alcance e as possibilidades da arte das imagens em movimento, ela ousou lançar-se na realização do seu primeiro longa, “La Pointe Courte” (1954), editado por Alain Resnais, e seu primeiro curta, “O Saisons, O Chateaux” (1956), seguindo-se-lhes “L’Opéra Mouffe” e “Du Côté de la Côte” (ambos de 1958), “La Cocotte d’Azur” (1959), “Salut les Cubains” (1963), “Elsa la Rose” (1967), “Uncle Janco” e “Black Panthers” (ambos de 1968), e “Daguerréotypes” (1975).
Firmando-se como curta-metragista, Agnès partiu de vez para a realização de longas-metragens. Depois do citado “La Pointe Courte” vieram “Cléo de 5 à 7” (1962) e “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur, 1965), “As Criaturas” (Les Créatures, 1966), e “Loin du Vietnam”, co-direção de Resnais (1967), quando a cineasta caiu numa certa obscuridade diante das produções de Jacques Demy, seu marido. Retornou aos curtas, filmando com várias bitolas (16mm, Super-8, Video Digital), daí seu “Réponse de Femmes” (1975), bem como o fracasso bilhetérico de “Duas Mulheres, Dois Destinos” “L’Une Chant, l’Autre pas” (1976), Logo vieram “Quelques Femmes Bulles” (média-metragem de 1977), os documentários “Mur, Murs” (1980), “Documenteur” (1981) e “Ulysse” (1982). Fez 170 imagens de dois minutos ainda em 1982 e em 1984 realizou “Les Dites Cariatides”.
Revezando-se entre filmes de ficção e documentários, Agnès logrou projetar-se numa carreira plena de coerência e criatividade no trato das imagens, tendo ganho em Veneza o Leão de Ouro por “Os Rejeitados” (Sans Toi Ni Loi) (1985). Em 1986 filmou “T’as de Beaux Escaliers… tu Sais” (mais um curta) e em 1987 os documentários “Kung Fu Master”, com Jane Birkin, e “Jane B. pour Agnès V”, novamente com Jane e o truffautiano Jean-Pierre Léaud. Seus últimos filmes incluem “Jacquot de Nantes” (1991), “Les Demoiseles ont eu 25 ans”, com Catherine Deneuve (1992), “L’Univers de Jacques Demy” (documentário sobre seu marido, de 1993), “As Cento e uma Noites” (Les 100 et 1 Nuits), com Michael Piccoli e Marcello Mastroianni (1995).
O documentário “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000), sobre coletores de lixo e frutas, teve êxito sem precedentes no circuito de arte de Paris, onde alguns críticos o consideraram um belo filme para Agnès encerrar (?) sua carreira como cineasta. Não interessa saber, como dizia Jean-Pierre Melville, se o espectador apreciou ou não o filme. Interessa, sim, para o cinéfilo, verificar se o processo narrativo escolhido pelo seu autor-diretor é convincente, se logrou a completude da forma, se cada fragmento do filme se subordinou ao conjunto.
Duas Pequenas Obras-Primas
O espaço jornalístico não permite maiores considerações sobre uma filmografia rica como a de Agnès Varda. Por isso, destacamos, apenas duas pequenas jóias dessa esteta original, dona de uma consciência instintiva e olho vivo de fotógrafa sempre atenta para o detalhe visual, como escreveram Klein & Nolan. Firmou Agnès sua reputação logo no seu primeiro longa-metragem, “Cléo de 5 à 7” (1962), relato intimista de uma cantora pop, a qual vê o seu mundo com aguda percepção durante as duas horas vividas por ela em suspense, esperando o resultado de exames médicos capazes de sugerir algum problema grave. Temerosa, vagueia por Paris aguardando a hora de ouvir o prognóstico, enquanto a câmera enfoca impressivamente as imagens-rosto das quais falava François Truffaut em seus ensaios e conferências. Para vários analistas, Agnès foi num certo sentido uma precursora da Nouvelle Vague, donde sua admiração pelo cinema de Truffaut e Jean-Luc Godard e sua afinidade com os filmes e as idéias de Resnais, mestre dos grandes, responsável pela edição de “La Pointe Courte”, como lembrado anteriormente. De resto, Resnais também co-dirigiu um dos filmes de Agnès, “Loin du Vietnam”.
Esclareça-se, por oportuno, não ter Agnès Varda nenhuma ligação com a escritora Nathalie Sarraute (1902-99), expoente do “Nouveau Roman”, no qual pontificam nomes como os de Alain Robbe-Grillet, Michel Butor e Claude Simon. A referência nos fez lembrar uma de nossas apresentações de filmes no Centro Cultural Banco do Nordeste, quando nos indagaram sobre isso. Talvez porque Nathalie tenha escrito duas peças de teatro, “Le Silence” e “Le Mensonge”, ambas encenadas em 1967, ou porque alguns diálogos dos seus filmes se situam entre a conversação e a subconversação, onde as palavras de uns e os silêncios de outros traem seus pensamentos mais secretos. O domínio de Nathalie é o dos impulsos bruscos e fugidios, incontrolados, o dos tropismos, quando os personagens passam de um instante de ternura ao ódio, do abatimento à alegria,da euforia à depressão.
Quanto ao termo “tropismo”, pertinente ao “Nouveau Roman”, não há relação com os tropos ou figuras de linguagem, daí ter sido definido pelo lexicógrafo Harry Shaw como uma reação compulsiva a estímulos externos, aquelas idéias e emoções íntimas dos personagens, as quais não se revelam no monólogo interior nem são transmitidas por sensações. Segundo Shaw, os tropismos podem definir-se também como “as coisas que não chegam a ser ditas”, as mudanças verificadas duma forma vaga e passageira na consciência dos personagens, Na literatura de vanguarda, o tropismo é uma forma de subconversação. Há tempos não vemos filmes de Agnès, mas se não nos falha a memória parece não haver tropismos nos diálogos escritos e levados ao ecrã pela cineasta francesa.
Voltando à segunda pequena obra-prima de Agnès, “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur) (1965), da qual participam como intérpretes Jacques Drouot e Marie-France Boyer, diríamos ser um estudo irônico da felicidade, com mais elementos decorativos em relação ao restante dos filmes da diretora. Talvez, dizem, devido à influência de Jacques Demy. “Le Bonheur” traça a rotina de um jovem carpinteiro feliz com sua família, até encontrar uma amante capaz de ajudá-lo a vencer o maior inimigo dos casais: o tédio conjugal, o mesmismo da intimidade da vida a dois sob o mesmo teto. Quando sua mulher morre afogada, o viúvo se casa com a concubina. E tudo volta como dantes ao quartel de Abrantes, frase já repetida “ad nauseam”, mas sempre pronta a suprir algum hiato ou “lapsus memoriae”. “Le Bonheur” é uma fábula ambivalente, leve, boa de se ver, mas “um filme estiloso”, segundo alguns críticos.
Em 1968, recorde-se, Agnès visitou os EUA, onde dirigiu dois curtas e um longa-metragem consistentes com sua orientação esquerdista e revelando sua visão ambivalente, crítico-afeiçoada, do colosso norte-americano. Em 1985, Agnès conquistou aclamação internacional com seu filme “Sans Toi ni Loi/Vagabond”, editado por ela mesma. Trata-se de um pseudo-documentário altamente bem sucedido junto à crítica e às bilheterias. Ressalte-se, por fim, o fato de Agnès ter escrito o roteiro de todos os seus filmes. Estes, em suma, os registros julgados essenciais sobre a cineasta francesa em visita ao Brasil.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

HOMENAGEM PÓSTUMA A F. W. MURNAU, CINEASTA DE ESCOL QUASE ESQUECIDO


Prestamos hoje nosso tributo ao mestre alemão Friedrich Wilhelm Plumpe Murnau (1888-1931), mais conhecido pelos críticos e filmólogos e pela publicidade como F. W. Murnau (pronuncie-se /murnau/ mesmo, não é francês), quando faz exatamente 90 anos do seu primeiro filme, “O Menino Azul” (Der Knabe in Blau, 1919) e 80 da sua versão sonora e revista de “Nosferatu, o Vampiro” (Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens, 1929).

Vítima de desastre automobilístico nos EUA, início dos anos 30, para onde fora contratado a peso de muitos dólares, em razão da elevada qualidade fílmica de seu trabalho como cineasta, Murnau deixou-nos lições imorredouras de cinema em seu legado, alguns dos quais exemplares na sua simplicidade, na economia de efeitos, na sua expressividade e na sua força dramática. Neles se incluem a versão germânica de “O Médico e o Monstro” (Der Januskopf/Schrecken, 1920), baseada na obra de Robert Louis Stevenson; “O Castelo Assombrado” (Schloss Vogelöd, 1921), sugerido por contos de Edgar Allan Poe e Howard Phillips Lovecraft); “A Última Gargalhada” (Der Letze Mann, 1924), escrito por Carl Meyer; “Tartufo” (Tartüff, 1926), da peça homônima de Molière; “Aurora” (Sunrise, nos EUA, 1927), da novela de Herman Sudermann, e “Tabu” (Taboo, 1931), este co-dirigido e co-roteirizado pelo documentarista Robert Flaherty.

Mudo x Sonoro

Este preito a Murnau não decorre de nenhum saudosismo ou “parti pris” em favor do cinema mudo ao qual poucas vezes se referem os críticos e analistas, embora haja bons filmes tanto naquele (apesar das limitações técnicas da época) como no falado. Preferimos, é claro, o sonoro, não apenas pelos recursos decorrentes do seu aperfeiçoamento, como pela valorização do silêncio e dos tempos mortos. Quem estuda cinema ou exerce função crítica jornalística deve naturalmente ver e rever as películas de ambas as fases numa perspectiva dual, pois a era do som, na história do cinema, começou tradicionalmente em 1927, o ano de “O Cantor de Jazz”, com a revolução do “talkie”. No entanto, as tentativas de dar voz ao celulóides datam de muito antes. Em verdade, “The Jazz Singer” foi basicamente um filme silencioso com passagens desajeitadamente sincronizadas e várias frases de palavras pronunciadas, mas quando Al Jolson emitiu um apelo histórico, “Esperem, esperem, vocês ainda não ouviram nada” (Wait a minute, wait a minute, you ain’t heard nothing yet), a platéia levantou-se e aplaudiu. O filme rendeu o máximo nas bilheterias e, encorajada pelo sucesso, a Warners liberou seu primeiro filme falado, “Lights of New York” em 1928.

Com relutância, outros estúdios começaram sua mudança para os novos tempos e dentro de alguns meses o cinema mudo já era coisa do passado. Como relatam Kline & Nolan, o sistema Vitaphone, ao qual se devia o começo de tudo, caminhou rápido para o esquecimento. As imperfeições inerentes ao processo de sincronização via disco tornou esse e outros sistemas inconfiáveis e, para muitos estúdios, inaceitáveis. Dentro de poucos anos, como relatam os historiadores o processo de sincronização foi totalmente substituído pelo sistema do som no próprio celulóide.

Quem foi F. W. Murnau

Nascido em 1888 em Bielefeld, na Westfalia, filho de um comerciante de origem sueca, Murnau manifestou interesse pelo drama teatral desde garoto, quando encenava com seus irmãos minipeças para os amigos e às vezes até contavam com a presença de familiares adultos. Terminado o 2° grau, Murnau foi estudar História da Arte, tendo-se diplomado em Heidelberg e iniciado uma carreira de ator e depois de assistente do célebre Max Reinhardt (1873-1943), pseudônimo de Maximilian Goldman, diretor teatral de grande importância no tocante à direção de atores no palco e à própria concepção do espetáculo na ribalta.

A função de assistente de Reinhardt acabou levando Murnau a interessar-se pelo cinema e pelos processos narrativos da nova arte, aqui e ali se detendo para perscrutar e tentar compreender o significado daquelas imagens em movimento, o sentido dos cortes, o paralelismo de certas seqüências, quando dois lados das ações eram mostrados, etc. Quando começou a firmar-se, Murnau foi convocado para a Grande Guerra (1914-18) aos 26 anos. Como tirara o brevê de piloto, participou da esquadrilha do ousado “barão vermelho”, o ás von Richthofen e escapou da morte em combate, quando se perdeu na neblina e teve de aterrissar em território neutro, na Suíça. Com o apoio do embaixador alemão em Berna, Murnau passou a dirigir peças e a estudar mais detalhadamente as diferenças entre teatro e cinema.

A influência de Reinhardt sobre Murnau, de quem o cineasta foi aluno, ator e depois assistente, restringiu-se à organização do espetáculo teatral como um todo. Isso porque a ligação de Reinhardt com o cinema foi mínima, pois o dramaturgo e diretor alemão só emigrou para os EUA em 1933, quando Murnau já havia morrido, e realizou apenas quatro filmes, um dos quais o elogiado “Sonho de uma Noite de Verão” (A Midsummers Night’s Dream, 1935), com apoio em Shakespeare, do qual foi co-diretor com William Dieterle, outro mestre germânico “emigre”. Como se recordará o cinéfilo, Dieterle foi o realizador de filmes como “Ver-te-ei Outra Vez” (I’ll Be Seeing You, 1944), “O Retrato de Jennie” (The Portrait of Jennie, 1946), “Cidade Negra” (Dark City, 1950) e “Tributo de Sangue” (The Turnning Point, 1952), dentre outros. Em resumo, a influência de Reinhard de quem o cineasta foi aluno,\tor e depois assistente, restringiu-se á organização do espetáculo teatral como um todo. Isso porque a ligação de Reinhardt com o cinema foi mínima,pois o dramaturgo e diretor alemão só emigrou para os EUA em 1933, quando Murnau já havia morrido,e realizou apenas quatro filmes, um dos quais o elogiado ‘Sonho de uma Noite de Verão’ (A Midsummer Night’s Dream,1935 com apoio em Shaskespeare, do qual foi diretor com WIilliam Dieterle, outro mestre germânico ‘’emigré’’. Como se recordará o cinéfilo leitor, Dieterle foi o realizador de filmes como ‘’Ver-te-ei Outra Vez’’(I’ll Be Seeing You’’,1944) e “Tributo de Sangue’ (The Turning Point,1952), dentre outros..Em resumo,a influência de Reinhardt se fez na iluminação dos cenários, na articulação de bastidores e na condução dos atores, e só foi significativa no tocante ao desenvolvimento do teatro americano.

Finda a guerra, Murnau voltou à Alemanha e iniciou sua carreira como “metteur-en-scène” dirigindo o citado “O Menino Azul” no qual já revelava afinidades com a temática do macabro e do fantástico. Em “Satanás” (Satanas) focalizava um anjo rebelde em viagem de retorno ao paraíso celeste (algo no qual Murnau jamais acreditou). Sua projeção como cineasta se deu com o referido “Nosferatu” ou “Lobisomem”, filme de impacto no mundo do cinema, adaptado do célebre romance do autor irlandês Bram Stoker. Houve problemas para transformá-lo em filme, pois os herdeiros de Stoker lhe recusaram os direitos autorais. Murnau então levou à tela a mesma história, com pequenos ajustes e apenas alterando o nome para “Nosferatu” (o não-esférico, segundo o romeno Alexandru Segal). O impacto da adaptação do romance gótico projetou Murnau na Europa, enquanto os ecos da repercussão começavam a chegar aos EUA.

Firma-se o cineasta

A segunda obra-prima, também mencionada anteriormente, firmou a reputação de Murnau como um dos cineastas mais proeminentes e inventivos, tendo feito predominar de tal forma as imagens visuais a ponto de dispensar os letreiros característicos do cinema mudo, sem sacrificar a clareza do processo narrativo ou o significado das ações.

Daí sua orientação percuciente em relação ao uso dinâmico da máquina de filmar, a cargo do excepcional fotógrafo Karl Freund (1890-1969), conhecido pelos seus ousados movimentos de câmara e efeitos de iluminação, não só em “A Última Gargalhada” mas também no “Metrópolis” de Fritz Lang (1927), os quais lhe deram a alcunha de “O Giotto da tela”. Em 1926 Freund co-produziu, co-roteirizou e fotografou a obra-prima de Walter Ruttmann, “Berlim, A Sinfonia de uma Cidade” (Berlin - Die Symphonie einer Grosstadt), e em 1929 emigrou para os EUA, onde continuou criando belas imagens nos filmes hollywoodianos.

Em 1937 ganhou o Oscar pela fotografia de “Terra dos Deuses” (The Good Earth), de Sidney Franklin. No início dos anos 30, Freund demonstrou talento inegável como diretor, segundo registraram os críticos de ontem e de hoje, particularmente em filmes como “A Múmia” (The Mummy, 1932), “Luar e Melodia” (Moonlight and Melody, 1933), “Sob Falsas Bandeiras” (Madame Spy, 1934) e “Dr.Gogol, o Médico Louco” (Mad Love, 1935), dentre outros.

Em suma, a proficiência técnico-criativa de Murnau foi um marco virtual na história do cinema, segundo Klein & Nolan, em rigor o começo de uma tradição de “mise-en-scène” a ser desenvolvida depois por grandes mestres do cinema como Welles, (Max) Ophuls, Kubrick, Resnais, Truffaut, Bergman, Fassbinder, Schlondorff, Kurosawa, Bertolucci, Antonioni e alguns outros. Foi, aliás, com base na força visual de “A Última Gargalhada” o convite irrecusável para Murnau ir atuar em Hollywood, onde estreou com “Aurora” (Sunrise, 1927), “o último pique do cinema mudo alemão”, louvado por críticos franceses dos “Cahiers du Cinéma” como “um dos maiores filmes de todos os tempos”. Tanto “Nosferatu” como “A Última Gargalhada” e “Aurora”, acresça-se, tiveram seu final alterado respectivamente por produtores alemães e americanos, interessados em levar aos espectadores um desfecho otimista... Essa estupidez, segundo Alvin Mendelson e outros analistas, pode ter minimizado o impacto visual dos três filmes, mas não lhes reduziu o valor intrínseco como cinema.

“Aurora” ecoou a preocupação pela integridade espácio-temporal do filme e pela perspectiva inerentemente pessimista e o senso da inevitável destruição do homem característico dos celulóides alemães de Murnau.

Feito com base em “script” do seu compatriota Carl Meyer, colaborador do cineasta desde os primeiros tempos, e com apoio nos recursos financeiros de um grande estúdio americano, “Aurora” fundiu as tradições da “Universum Film Aktien Gesellschaft” (UFA) e de Hollywood numa obra de grande beleza lírica, a qual sobrevive ao final artificial imposto pelo código moral da indústria até então vigente. O crítico Rubens Ewald Filho, autor de valioso dicionário de realizadores, lembrou um fato interessante em relação a “Aurora”. Para ele, além dos ruídos e trilha musical sincronizados, o belíssimo (o superlativo é dele) filme de Murnau trazia diálogos audíveis e barulho de veículos numa cena de rua e estes tornam “Aurora”, de fato, o primeiro filme realmente falado da História do Cinema em vez de “O Cantor de Jazz”. Tem razão o REF, só lhe falta o reconhecimento dos produtores, se ainda vivos, e dos críticos atentos.
Antecedentes de “Drácula”

“Drácula” (Dracula, 1931), de Tod Browning, foi considerado o maior êxito bilhetérico da Universal Pictures, bem à frente de “Nada de Novo no Front” (All Quiet on the Western Front, 1930), de Lewis Milestone, de “Frankenstein” (Frankenstein, 1931) e de “O Homem Invisível” (The Invisible Man, 1933), ambos de James Whale. “Drácula” também se tornou peça de sucesso encenada por Hamilton Deane e John Barlderston. Além disso, o filme firmou uma tendência para as películas de horror a serem exploradas pelos estúdios hollywoodianos durante toda a década.

Embora o diretor Browning tenha buscado primeiro o veterano Lon Chaney para o papel do Conde da Transilvânia, o premiado intérprete de “O Fantasma da Ópera” (The Phantom of the Opera, 1925), de Rupert Julian, vacilou muito na resposta e alguns dias depois faleceu. Tornou-se possível então para o ator húngaro Bela Lugosi, a quem coube abrir a peça na Broadway, em 1927, recriar seu desempenho hipnótico no filme. Há dúvidas dos críticos e produtores sobre se o Drácula levado ao ecrã teria tido o mesmo êxito sem a formidável presença de Lugosi, pois o intérprete magiar dominava tão completamente as ações com sua presença em cena a ponto de deixar vazar no texto o miasma do mal avassalador, enquanto se ouvia com música de fundo o “Lago do Cisne” de Tchaikovsky.

Versão espanhola também foi levada à tela anos antes com direção de George Medford, mas coube a Murnau, como frisamos, filmar em 1922 uma versão impressionante do romance de Bram Stoker sob o título de “Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens” (Nosferatu, uma Sinfonia do Horror), com o ator Max Schreck no papel-chave, vista pela crítica da época como a melhor das adaptações feitas para o cinema. A Hammer Films inglesa também refilmou “Drácula” em 1958 com Christopher Lee como o Conde, aliás também atuante nesse papel em vários outros filmes entre 1958 e 1972, incluindo-se até uma versão teuto-espanhola de 1971 e outra da Universal em 1979, com Frank Langella como Drácula.

De onde veio o Conde Drácula

O Conde Drácula teria nascido para a literatura, o teatro e o cinema de uma noitada orgíaca (vinho, ópio e muitas loucuras mais) organizada pelo poeta Lord Byron em 16 de junho de 1816, conforme demonstrado pelo cineasta Ken Russell no filme “Gothic”, produção inglesa de 1986. Esse acontecimento real ocorreu no castelo de Byron na Suíça, do qual também participaram o vate Percy Shelley, sua futura mulher, Mary Goldwin, sua meio-irmã Claire e o médico John Polidori. Desse período surgiram duas obras-mestras da literatura de horror: “Frankenstein”, de Mary Shelley, de 1818 (levado ao cinema várias vezes), e “O Vampiro”, de Polidori. Este inspirou a criação do personagem Drácula (Drakul, o demônio) do novelista irlandês Bram Stoker, vindo de Vlad Tepes (Vlad, o empalador), príncipe da Wallachia, reconhecido e temido por sua crueldade.

Stoker, recordar-se-á quem leu o livro, situou sua sinistra obra romanesca na Transilvânia, vasta região planaltina na Romênia, com a qual vampiros e lobisomens têm sido tradicionalmente associados. Houve quem visse no vampiro de Drácula uma metáfora da inconformidade ou inaceitação da morte por parte do homem, daí a busca da imortalidade e a criação de uma entidade lendária capaz de sair da sepultura à noite para sugar o sangue dos vivos e sobreviver. Não causam espanto as dezenas de edições do livro de Stoker e as várias versões cinematográficas, todas elas sugestivas de um certo fascínio exercido pela figura de Drácula, a quem o cineasta Murnau deu o nome de Nosferatu por não ter conseguido comprar os direitos autorais junto aos herdeiros, como salientamos anteriormente.

Murnau fez ainda dois filmes para a Fox e em seguida entrou numa associação com o renomado documentarista Robert Flaherty com o qual realizaram juntos o filme “Tabu” (Taboo, 1930), rodado nos mares do Sul. Quando dois diretores de renome e prestígio e marcadamente idealistas não concordam com determinada abordagem e estilo, a solução é um deles sair de cena. Murnau comprou o quinhão de Flaherty no filme e ele mesmo o completou. “Tabu” gira em torno da vida de um jovem pescador de pérolas do Taiti e bem poderia ter deixado de ser um filme apenas interessante. Murnau utilizou o enredo somente para reunir os elementos de um soberbo “travelogue”, mas os desentendimentos entre os objetivos dos dois diretores, facilmente percebíveis, como expressou o Halliwell Guide, impediram maiores aspirações de Murnau. Ainda assim se pode encontrar em “Tabu” aquela constante nostalgia da natureza em ilhas tranqüilas onde o tempo não parece passar.

A realização de “A Última Gargalhada” já avaliara Murnau como um dos maiores cineastas do seu tempo, conceito comprovado com a citada versão de “Nosferatu”. Não admira os seus outros êxitos em “Aurora”, “Tartufo”, “Fausto” e de certa forma até mesmo em “Tabu”. Como registra o crítico Denis Marion, citado por Jean Tulard em seu Dicionário de Cineastas, Murnau foi um dos poucos realizadores capazes de neutralizar as influências do teatro e da literatura no cinema e de comprová-lo ao criar novos meios de valorização da expressão visual. “Nosferatu”, aliás, rompeu com os cenários estilizados de Robert Wiene em “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919) e Murnau preferiu filmar as ações do filme em cenários naturais na sua adaptação do “Drácula” de Stoker.
Filme admirável, sem dúvida, talvez o mais belo do cinema mudo, conforme ainda Tulard, com seu castelo assombrado, o porto onde desembarcam os ratos (imagens premonitórias do advento de Hitler e seus sicários nazistas, como já se disse), a cidadezinha onde atua o próprio monstro interpretado de forma brilhante por Max Schreck, com sua figura esquálida, cabeça raspada, orelhas pontiagudas, olhos cavernosos e unhas afiadas, um Nosferatu, enfim, inesquecível. Além da capacidade de chocar, o conto sobrenatural levado ao cinema constituiu naturalmente um tratado de poesia fílmica e de rara beleza plástica, pois houve um cineasta capaz de levá-lo a isso e de defender o cinema como arte autônoma.

O Último Filme

“Tabu”, por isso ou por aquilo, não é o melhor de Murnau, mas é um filme caracteristicamente seu, apesar dos exóticos enfeites. No mundo interior dos habitantes da ilha, os conflitos psicológicos giram mais em torno de suas circunvizinhanças. Apesar disso, “Tabu” foi um sucesso comercial marcante. Mas na semana anterior ao seu lançamento, 11 de março de 1931, Murnau morreu tragicamente de um desastre automobilístico, aos 42 anos, e pode-se especular sobre se estivesse vivo a direção de sua brilhante carreira não teria levado a qualidade dos filmes americanos a outras alturas, pois estes mal tinham aprendido a falar naquele então. Dúbio consolo para a equipe de Murnau foi saber do Oscar de Melhor Fotografia concedido pela Academia para Floyd Crosby. Nada é para sempre.

Apreciaríamos concluir estas notas com uma observação concernente à versão revista e sonorizada do “Nosferatu” de 1929. Quem teve a chance de assistir a ele no cineclube de uma das universidade da Califórnia, saiu embatucado da exibição. Foi o caso do cinéfilo Paulo de Freitas Marques, autor de texto distribuído por ocasião da Jornada de Cineclubes à qual comparecemos em Belo Horizonte, 1960, como representante do CCF. Marques ficou estupefacto com a visão de cinema demonstrada por Murnau num filme de horror sem maiores pretensões de Oscar ou de sucesso de bilheteria, exceto a de prender a atenção do espectador e fazê-lo meditar um pouco sobre as imensas possibilidades do cinema como expressão artística.

“NOSFERATU”: Horror ou Terror?

Os cinéfilos bem informados não esquecem os gêneros no cinema, aliás são mais fáceis de reconhecer e menos de defini-los com precisão, quando se trata de distinguir entre horror e terror. Como lembra o filmólogo Don Allen em seu valioso livro “Films & Filmakers”, de 1979, prefaciado por François Truffaut, os críticos e historiadores estabeleceram doze gêneros, outros quatorze. São eles: o filme de faroeste, a comédia (mais leve), comédia dramática, a tragédia, a tragicomédia, o romance, o filme de guerra, o musical, o “thriller” (filme de impacto tensional e emocional pontuado pelo suspense), o filme de animação, o documentário (e o semidocumentário), o filme político, o de horror/terror e o de ficção científica.

Quanto à distinção entre filme de horror e terror, nem sempre tem sido fácil um acordo entre analistas. “Nosferatu” já foi incluído como filme de horror e às vezes como terror. Para os dicionaristas Jacques Aumont e Michel Marie, terror é o grau dos “afetos negativos” e se caracteriza por um estado de grande pavor ou apreensão, enquanto o horror ficaria restrito aos Frankensteins, lobisomens e outros monstros de ficção, alienígenas ou não. Os de terror incluiriam “Jogos Mortais”, “Halloween”, “O Massacre da Serra Elétrica”, etc., nos quais a barbárie predomina. Alvin Mendelson acha irrelevante a distinção, pois às vezes um filme de terror entra na área de confluência de um drama de horror e aí ficamos diante de uma interação entre dois sinônimos de difícil separação.

Sobre o Expressionismo Alemão

Quando se escreve sobre Murnau, Lang, Wegener, Paul Leni e outros mestres, logo voltam as atenções dos cinéfilos para o Expressionismo Alemão, definido pelos enciclopedistas Klein & Nolan como um estilo de arte desenvolvido no início do século XX e transformado em movimento influente na pintura germânica, na escultura, na literatura, no teatro e, finalmente, no cinema. O Expressionismo, por sua vez, foi influenciado pelo renomado escritor sueco Auguste Strindberg (1849-1912), mais conhecido pelas suas peças teatrais de impacto como “The Father” (1887) e “Miss Julie” (1888), esta levada ao cinema duas vezes, a primeira em 1950, dirigida pelo mestre sueco Alf Sjoberg (1903-80), em verdade uma adaptação magistral de um drama trágico sobre um caso de amor entre uma jovem aristocrática e um plebeu, enquanto este pratica jogos sexuais com ela. Para Leonard Maltin, o filme foi marco do cinema sueco. A segunda versão de 1999, produção anglo-americana, com o cineasta britânico Mike Figgis na direção, tem transposição coerente, interessante, filmada com vigor mas extremamente lúgubre.

O Expressionismo, como alguns especialistas o vêem, busca apresentar a vida interior do homem e menos sua aparência externa. Outros críticos o entendem como uma realidade intensificada com freqüência pela utilização de signos, de personagens estereotipados e estilização para expressar objetivamente a experiência interior de cada um deles, seus conflitos, angústias e inquietações. Nos anos imediatamente posteriores à Grande Guerra (1914-18), o Expressionismo alemão se caracterizou pela extrema estilização do décor (o equipamento móvel de uma casa, sala, cena, etc.), bem como pela interpretação, iluminação e ângulos de câmara.

Os cenários, grandemente distorcidos e bastante abstratos, eram tão expressivos quanto os atores, quando não mais. Para assegurar completo contraste e livre manipulação da luz e do trabalho de câmara, os filmes expressionistas eram sempre rodados em estúdios, nunca fora deles, nem mesmo quando as cenas exigiam filmagens externas. A iluminação era deliberadamente artificial, enfatizando sombras profundas e nítidos contrastes. As angulações e as imagens-movimento eram escolhidas a dedo para enfatizar o fantástico e o grotesco, e os atores externalizavam suas emoções ao extremo.

Alguns dos melhores e mais intrigantes filmes do cinema mudo vieram do movimento expressionista germânico. O exemplo fundamental é “Das Kabintett des Doktor Caligari” (1919), de Robert Wiene. Outros filmes-chave na mesma veia estranha, fantástica, incluem a 3ª versão de “The Golem” (1920) de Paul Weneger, “Der müde Tod” (Between Worlds, 1921), de Fritz Lang, “Nosferatu” (versão muda, de 1922), “Dr. Mabuse, o Jogador” (Doktor Mabuse, der Spieler), também de 1922, e “Die Nibelungen” (1924), estes dois de Lang, e “Museu de Cera” (Das Wachsfigurenkabinett), de Paul Leni (1924). Como se vê, Murnau, Lang, Leni, Wegener, Wiene foram os principais cineastas do movimento.

Entre os escritores de filmes, Carl Mayer foi o mais influente, com Thea von Harbon como discípula capaz. Os “cinematographers” do topo eram Karl Freund (depois levado para os EUA e promovido a diretor) e Fritz Wagner. Os criadores de cenários incluíam Hermann Warn, Walter Röhrig, Robert Herlth e Otto Hunte. Como se observa, uma plêiade de artistas e técnicos da maior competência e cuja influência nos padrões cinematográficos dos anos 20 e 30 parecem perdurar de forma duradoura em muitos filmes produzidos nas décadas de 40 e 50, no tocante ao ritmo e iluminação.

Como definir o Expressionismo hoje? Alguns críticos, em face do livro de Lotte Eisner (L’Écran Demoniaque), de 1952, chegaram ao exagero de declarar expressionistas até mesmo o filme policial americano dos anos 40 por causa da iluminação “low key”, ou seja, o efeito de manter uma cena ou a extensão tonal de um ou mais personagens predominantemente na extremidade escura da escala cinza. A iluminação em “low key” utiliza sombras profundas para produzir uma atmosfera densa e efeitos mistériosos e dramáticos. Esta a definição de Kline & Nolan. Harry J. Wild, fotógrafo de Edward Dmytryk em “Até à Vista, Querida” (Murder, my Sweet, 1944) e “Rancor” (Crossfire, 1947), define “low key” como técnica de iluminação com luzes escassas e contrastadas, utilizadas amiúde para sugerir contracampo oculto e atmosferas sombrias, como, por exemplo, em filmes de crimes ou terror.


Opiniões

“Melodrama lírico soberbamente dirigido, ‘Aurora’ (Sunrise) é considerado uma das melhores produções dos anos 20. A frase de abertura dos créditos adverte o espectador: ‘Esta história de um homem e sua mulher não é de parte alguma, é de toda parte, e você poderá ouvi-la em qualquer lugar e a qualquer tempo’. Pleno de intensa emoção com a qual Murnau corporifica uma sutileza subjacente, exótica de muitas maneiras, pois combina a obscuridade russa com o brilho de Berlim”.
- Mordaunt Hall, do NY Times, in Halliwell Guide, 2004

“O drama do velho porteiro do hotel relegado à posição de lavador de banheiros em ‘A Última Gargalhada’ (Der Letzte Mann) traz uma reviravolta no final, quando ele herda uma fortuna e consegue sua vingança. Irônica anedota tornada importante pelo virtual abandono dos letreiros e adoção irrestrita, por parte de Murnau, da técnica chamada ‘Kammerspiel’ (jogo de câmara), com a qual consegue criar efeitos dramáticos impressionantes”.
- Bob Warren, in “Halliwell Guide”, 2004

“Filme clássico narrado inteiramente pela câmara, ‘A Última Gargalhada’ traz Emil Jannings (de ‘O Anjo Azul’, de Joseph von Sternberg) no papel do orgulhoso porteiro despedido de sua função após muitos anos de dedicação ao seu emprego. A direção de Murnau detalha a dolorosa humilhação do velho servidor fotografada com brilhantismo pela câmara do mestre Karl Freund ao longo dos seus 88min de projeção”.
- Leonard Maltin, in his Movie Guide, 2009

“Profissional de estirpe, atento às mudanças de seu tempo, Murnau deixou-nos rico legado de imagens, tornando-se até mesmo criativo quando soube dotar os signos visuais de significados, sem recorrer aos incômodos letreiros do cinema mudo, os quais interrompem os elos de continuidade de instante a instante”.
- Jean Giraud in “Film als Kunst”, 1948

“Murnau esteve à frente de seu tempo, até mesmo quando, juntamente com sua equipe técnica, conseguiu sonorizar em 1929, ainda nos primórdios do cinema falado, sua versão de 1922 de ‘Nosferatu’, filme irreprochável. Uma pena tenha sido vítima de trágico acidente automobilístico, quando ainda poderia fazer muito pelo engrandecimento do cinema, essa arte tão pouco compreendida”.
- James Whale, in entrevista ao “Sunday Times”, 1937


Fique por Dentro

FOCO - O ponto no qual uma imagem obtém o máximo de definição em relação à lente da câmara. Do ponto-de-vista óptico, é o ponto de convergência ou divergência dos raios de luz sobre a lente. De uma imagem nítida e bem definida, diz-se estar em “foco”, em oposição à imagem pouco clara ou indistinta, mal definida, quando se diz “fora de foco”. Para assegurar uma imagem em foco, a distância da câmara para o objeto deve ser medida e a lente ajustada nessa conformidade.
Distância Focal - A distância entre o centro de uma lente e o ponto sobre a superfície da película onde a imagem fotografada, posta no infinito, é trazida para o FOCO nítido. Essa distância é dada em polegadas ou centímetros e normalmente gravada na lente com o prefixo f (i.e.,f = 90mm) e não deve ser confundida com o f=parada (stop). Uma lente de distância focal curta dispõe de ângulo mais amplo de visão, enquanto uma distância focal longa, ou telefoto, tem o ângulo de visão restrito.

PARA SABER MAIS

1. “Longman’s English Larousse”, editado por O.C. Watson, Longmans, Green and Co. Ltd. Harlow & London, 1968;
2. “Le Cinéma selon François Truffaut”, Flammarion, org. de A. Gillain, Paris, 1988;
3. “Nosfesratu”, de Michel Bouvier, Jean-Louis Leutrat, Ganimard, Paris, 1987;
4. “The Oxford Reference Dictionary” (both dictionary & encyclopedia), Oxford University Press, New York, NY, 1986;
5. “The Universal Story”, de Clive Hirschorn published in USA, Octopus Books Ltd., 1986;
6. “Estética del Cine”, de Nino Ghelli, Ed. Rialp, Madrid, 1959;
7. “Movie Awards”, de Tom Neill, Penguin Group, USA Inc., 2003;
8. “Halliwell’s Film Guide”, de Leslie Halliwell, HarpersCollins Publishers & John Walker, New York, NY, 2004;
9. “Reading the Screen - An Introduction to Film Studies”, de John Izod, Longman York Press, Harlow, Essex, 1984;
10. “Compreensão de Cinema”, de Maurício Rittner, Coleção Buriti, Av. São João 822, São Paulo, Editora S.A. (SP), 1965;
11. “A Linguagem Cinematográfica”, de Marcel Martin, Ed. Brasiliense S.A. São Paulo (SP), 1ª reimpressão, 2003;
12. “El Cine en el Problema del Arte”, Ed. Losango, Buenos Aires, 1956; e
13. “The Film Encyclopedia”, de Fred Klein & Ronald Dean Nolan, HarpersCollins Publishers Inc., New York, NY, 1998.

Curiosidades

“A Sombra do Vampiro” (Shadow of the Vampire, 2000), dirigido pelo cineasta nova-iorquino Elias Merhiger (1964- ), tem John Malkovitch no papel do exigente diretor F. W. Murnau e Willen Dafoe no do inesquecível Nosferatu. O filme, em cores, tentativa interessante para recriar a filmagem da filmagem do “Nosferatu” de 1922, foi elogiado por alguns críticos, não só pela recriação da ambiência psicofísica da época e sua expressividade motovisual, mas também pela interpretação memorável de Willen Dafoe como Max Schreck, indicado aliás para o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (o trabalho de Melhor Maquiagem também ganhou uma indicação), não lhe ficando atrás Malkovitch no papel de Murnau. Um tento para o discreto Merhige, mais conhecido pelo filme “Begotten” (sem título em português, mas significando “Procriado”, “Gerado”, “Criado”, etc.). A publicidade do filme fantasiou os bastidores do “Nosferatu” de Murnau, como se o ator Max Schreck, da primeira versão, fosse de fato a encarnação de um vampiro...

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

“O ÚLTIMO METRÔ”: O TEATRO COMO RESISTÊNCIA



Quase inédito em Fortaleza, “Le Dernier Métro” (1980), de François Truffaut, já pode ser visto (ou revisto) em DVD por cinéfilos e admiradores do homem-cinema precocemente desaparecido. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, bem assim ao Globo de Ouro, a película teve nota máxima do “Halliwell’s Film Guide” (2004) e fez jus a vários prêmios importantes em diversos países, nestes incluídos troféus das associações de críticos e registros elogiosos de ensaístas europeus e até de comentaristas japoneses. Chegou a ser aplaudido de pé na sua estréia de gala num dos melhores cinemas dos Champs Elysées, o Paris, de Marcel Dassault. Raramente Truffaut colheu tantas opiniões favoráveis de origens tão diferentes como neste filme, de Jean-Paul Belmondo a Federico Fellini, de Samuel Fuller a Jean Marais, de Stanley Kubrick a Volker Schlondorff, de Ingmar Bergman a Louis Malle, de Don Allen a Claude Sautet, de Alain Resnais a Martin Scorsese. Em sua pátria, a fita recebeu o recorde de dez César (o Oscar francês), com destaque para Melhor Filme e Melhor Direção. Estes dados são apenas uma síntese dos registros existentes.

Truffaut dispensa apresentações, pois já o homenageamos várias vezes noutros textos. Mesmo antes de sua morte, em 1984, já havíamos publicado artigos comprobatórios de sua competência e inventividade como um dos mestres do cinema, ex-crítico de filmes, redator dos melhores do grupo dos “Cahiers”, líder da Nouvelle Vague e o grande defensor da teoria do “auteur”, propugnando-a já nos seus escritos de 1954 (tinha apenas 22 anos!). Suas reflexões foram reunidas em vários livros, alguns dos quais contendo lições exemplares de como ver ou fazer cinema. A idéia original e o roteiro de “Acossado” (A Bout de Souffle) (1960) esclareça-se, são seus, embora não reconhecidos por Jean-Luc Godard (e até omitidos dos créditos), depois dos desentendimentos e ruptura entre eles.

“O Último Metrô” é a segunda parte de uma trilogia sobre cinema, teatro e o “music hall”, iniciada com “A Noite Americana” (aula de metacinema com a qual conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1973), seguindo-se-lhe este sobre teatro e seus bastidores. A morte, “essa indesejada das gentes”, impediu-lhe a concretização da trilogia. Em 1975, quando redigia o prefácio do livro de André Bazin intitulado “Le Cinéma de l’Occupation et de la Resistance”, Truffaut já revelava, segundo seus biógrafos Antoine de Baecque e Serge Loubiana, o desejo imperioso de fazer um filme sobre o período da Ocupação. No ano seguinte, pediu ao amigo Jean-Loup Abadie para ler um romance no qual havia um personagem do seu interesse. Textualmente: “Numa cidade, provavelmente Paris, durante a Ocupação, uma bela atriz continua a exercer sua profissão, apesar da eventual presença de oficiais alemães entre os espectadores. Seu marido, um judeu supostamente morto, esconde-se na realidade no porão do teatro. Eis o princípio da história, a qual poderia oscilar entre o ‘Ser ou Não ser’, de Ernst Lubitsch (1942), e ‘O Diário de Anne Frank’, de George Stevens (1959).

Ao comentarmos “Le Dernier Métro”, cabe-nos alertar os cinéfilos: não se trata, em rigor, de outro filme do emérito cineasta voltado para o passado. Como ele mesmo afirmou, depois de co-roteirizar e dirigir com sinete autoral nada menos de 19 filmes, os temas abordados, é claro, não podem ser inteiramente novos, pois cada elemento estrutural da narrativa fílmica se apóia sempre no precedente. Além disso, “embora não haja nada de verdadeiramente novo em nosso quotidiano, as pessoas acompanham melhor o meu trabalho quando acrescento elementos novos ao tema do filme, mantendo porém um pé no passado”.

Assim, como lembra Truffaut, “O Último Metrô” remete o aficionado a “A Noite Americana” (La Nuit Américaine), aquele hino de amor ao cinema, mas também ao ousado “Uma Mulher para Dois” (Jules et Jim) (1962) e até à comédia “Beijos Roubados” (Baisers Volés) (1968), na qual os personagens se tornam mais importantes em relação às situações, ao cenário, ao tema e até mesmo em relação à construção e à execução do filme. Desta feita, Truffaut ilumina um tema jamais abordado por ele – o teatro – e sobre um telão de fundo com o qual está pouco acostumado – a II Guerra, a Ocupação alemã e Vichy, sede de 1940 a 44 do governo chefiado pelo Marechal Pétain. Projeto ambioso e caro da Films du Carrosse (de Truffaut), “O Último Metrô só se tornou possível graças ao apoio da Gaumont/Andrea e Societé Française de Production/Sedif AS. TF1.
O drama se passa em Paris, em 1942, e abre com cenas de documentário, voz “off”, explicando a situação da França sob a Ocupação. Daí o corte para o personagem Bernard Granger (Gerard Depardieu), jovem e talentoso ator a caminho do Teatro Montmartre para assinar um contrato com Marion Steiner (Catherine Deneuve) e atuar na peça “La Disparue”, ora em fase dos primeiros ensaios. Antes, em plena rua, Bernard assedia sem sucesso a costureira da peça, a atraente balzaqueana Arlette Guillaume (Andrea Ferreol). Numa primeira versão da abertura, lemos, o roteiro previa simplesmente a chegada de Bernard ao teatro. Trocando idéias com Suzane Schiffman, sua co-roteirista, Truffaut resolveu (“sempre com vistas à eficácia”) fazer o encontro dos dois, de modo a inserir um toque irônico, pois Arlette não se interessa pelo sexo masculino, como Bernard vem a saber depois e a desculpar-se pela sua insistência na véspera. Truffaut chamou isso de “princípio de narrativa indireta”, inspirado aliás em Lubitsch.

Marion, atriz, assumira a direção da Casa em lugar do marido, o diretor judeu Lucas Steiner (Heinz Bennent), supostamente em fuga para a América do Sul. Em verdade, ele está escondido no porão do teatro de onde ouve os ensaios através de abertura ligada ao palco e dá orientações para a encenação, quando sua mulher desce para revê-lo. A Gestapo, polícia secreta nazista de sinistra memória, está à espreita, pois tem dúvida sobre se Steiner saiu realmente de Paris. Essa situação dramática é o próprio conflito alimentador do filme e dele resultará a tensão subjacente estabelecida e mantida ao longo dos seus 130min de projeção, agravada pela secreta inclinação de Marion por Bernard, e aí estamos de volta ao velho triângulo amoroso. Não seria justo revelar aqui a seqüência de incidentes conectados, a qual movimentará a história até o seu fim predeterminado.

A direção cinematográfica de Truffaut é exemplar, como sempre, e a narrativa, linear, pois o cineasta não viu necessidade de interromper a ordem direta para retroagir no tempo ou antecipar eventos futuros mediante inserções ou fragmentos informativos ou esclarecedores de algum ponto obscuro ou deixado em aberto. Tampouco de dividir a tela em duas, três ou quatro partes. Revela, porém, olho vivo para a importância de detalhes em cenas aparentemente banais, como a do presunto de sete quilos adquirido no mercado negro e escondido depois na caixa do violoncelo, a do menino cultivador de tabaco no minijardim próximo ao teatro, a do beijo discreto de Steiner em Marion (ela há tempos ausente do leito conjugal devido às circunstâncias da guerra) e a do conúbio amoroso entre eles, já sem os ardores de quando eram mais novos e de outros tempos menos ominosos. Mencione-se igualmente, nesse aspecto, o recebimento da miniatura do féretro enviado como “presente”: quando a tampa se abre, vê-se o nó de uma microcorda sugestiva da forca próxima.

Faz-se aí uma referência irônica aos “salvadores” de judeus e a pessoas de mau caráter, as quais jogam dos dois lados, recebendo subornos ou propinas tanto dos alemães como de quem está interessado em ajudar os semitas. Recorde-se como Truffaut usa o efeito aparentemente sem causa da explosão responsável pela morte de um general alemão, ato de sabotagem punido com fuzilamento: na verdade, a bomba estava oculta na radiola levada por Bernard. Mais adiante, quando a Gestapo chega para investigar os bastidores do teatro, a rapidez com a qual Marion, Bernard e o próprio Steiner conseguem esconder tudo quanto indicasse a presença de alguém escondido no porão é bem uma amostra da planificação de Truffaut e de como ele sabe manipular o repouso e a aceleração, bem assim o tempo de permanência das imagens na tela.

A porta subitamente aberta e reveladora do lesbianismo de Arlette serve de contraste irônico com a cena inicial entre ela e Bernard, em plena rua, como já mencionamos. E a atitude deste, quando vê na recepção do restaurante os quepes dos oficiais alemães e decide sair de lá, diz muito de como os franceses patriotas viam a convivência com os invasores. Observem-se ainda o toque para o furto de dinheiro no camarim e a dúvida sobre se convinha chamar a polícia, bem como o olhar da câmara para os bastidores com poucas gambiarras iluminadas e o manejo da bambolina e do equipamento de efeitos cênicos. O “blackout” momentâneo, mas intempestivo e apavorante, enseja a fusão de imagens e sons, enquanto se buscam as velas e se ouvem sirenes nas ruas.

As “visitas” de Daxiat, o crítico zoilo do “Je Suis Partout”, são sempre recebidas a contragosto por Marion. Ela não pode recusar-se a fazê-lo, pois dele depende o visto da censura e o destino da peça e do próprio teatro. Ironicamente, ele se diz socialista e homem de esquerda... Sua última visita causou impacto e desânimo, não só dando conta a Marion da prisão do intermediário, mas mostrando-lhe como o “desaparecimento” do marido e a assinatura pré-datada nos documentos de propriedade do teatro perderam a validade, motivo pelo qual a Justiça pode decretar a inexistência de proprietário... A comunicação é um desastre, mas Marion se mostra contida, mesmo quando Daxiat lhe exibe o passaporte de Steiner (“Seu marido não saiu de Paris...”). Além disso, os alemães invadem a Zona Livre, notícia desanimadora para os franceses, ainda no aguardo da abertura de uma Segunda Frente com a invasão da Normandia, mas esta só se dará em junho de 1944...

Nada de câmara treme-treme, “chicotes”, desfocamentos de imagens, videoclipagem (excesso de cortes ultra-rápidos) ou abuso de primeiros planos. O “close-up”, um dos primeiros instrumentos da fotogenia para filmólogos e teóricos, só deve ser usado para chamar a atenção sobre detalhe relevante ou intensificar o impacto dramático de uma cena, ao sugerir o conflito íntimo de um personagem pela expressão do seu rosto captado bem próximo à câmara. Esse recurso técnico não serve para preencher espaços vazios no retângulo da telona, como já se disse tantas vezes. Para Bergman, por exemplo, o “close-up” objetiva enfatizar a introspecção, atentar para pormenores e objetos de modo a transmitir-lhes uma dimensão transcendental. Observe o cinéfilo como Truffaut utiliza com parcimônia, ou com função específica, planos aproximados e não esquece os “raccords” (termo para o qual ainda não se encontrou boa tradução no vernáculo) para ligar os cortes de continuidade e dar ao filme a impressão de uma realidade ininterrupta e homogênea.

Depois da estréia bem sucedida de ‘La Disparue”, os acontecimentos se precipitam: Daxiat critica duramente a peça e Bernard toma as dores de Marion agredindo o crítico intransigente e anti-semita e levando-o para uma briga fora do restaurante e em plena chuva. Antes, ao término do espetáculo, todos aplaudidos de pé, Marion se revela ao beijar Gerard, mas não quer abandonar o companheiro de tantos anos. É quando Bernard lhe comunica a decisão de participar da Resistência. Próximo à libertação de Paris, vemos fragmentos da guerrilha urbana contra os alemães remanescentes, enquanto Daxiat foge para a Espanha de Franco e Steiner sai finalmente de sua toca com os olhos ainda mal acostumados com a luz. O roteiro de Truffaut e Suzanne surpreende pela inteligência com a qual chegam ao epílogo.
A detenção de um membro da Resistência dentro da igreja de Notre-Dame-des-Victoires, enquanto um coro de garotos entoa um hino religioso, foi feito com poucas tomadas e a valorização do silêncio entre Bernard e o outro, enquanto a Gestapo parece fechar o cerco com a sua presença quase onisciente, pairando sobre todos de forma sinistra.tal qual o predador em busca de sua presa. Quando o companheiro de lutas entra no Citröen com os policiais, Bernard já sabe: ele não volta mais.

Quando termina o filme, se tivermos estado bem concentrados nas imagens em movimento e absorvido o clima, é como se houvéssemos vivido aquela época ou presenciado, por meio de algum artifício mágico, os acontecimentos nele mostrados, devido à capacidade de o cinema recriar uma impressão da realidade. Ressalte-se, ainda, embora necessariamente espaçada, a fusão do metacinema com o metateatro.

Pouco a acrescentar a tudo quando já se escreveu sobre a qualidade do trabalho técnico de Nestor Almendros (1930-92), “cinematographer” espanhol da categoria de um Henri Decae ou Henri Alekan, de Vittorio Storaro, Aldo Scavarda, Otello Martelli, Ted Scaife, Tony Gaudio, Marcel Grignon, John Alcott, Lucien Ballard, Wong Howe, Nicholas Musuraka ou Jörg Schmidt-Reitmein, nomes de alguns mestres vindos à memória. Há composições fotográficas expressivas de Almendros com personagens captados através do sobreenquadramento (“surcadrage”) na entrada dos fundos do teatro ou da “plongée” vista do alto de uma janela para a rua. A iluminação do ambiente combinada com a movimentação da câmara, quando Marion desce com o lampião para ver como está o marido, e a apreensão sutil do colóquio íntimo entre Marion e Bernard, quando sob a mesa a mão dele afaga a coxa direita da mulher, bastam para explicar o motivo pelo qual Truffaut trabalhou tantas vezes com Almendros.

Georges Delerue, por demais conhecido como maestro, compositor e arranjador, capaz de criar um tema melódico para cada filme ou de compor vários minitemas para uma só película, desta feita se valeu das canções da época da Ocupação e bem conhecidas de Truffaut, como “Mon Amant de Saint Jean”, um marco da melancolia de outros tempos para os franceses.
Os atores travam fino duelo de interpretação no jogo de aparências, não apenas La Deneuve e Depardieu no duo principal, mas também Henz Bennent, de quem não podemos esquecer, pois é parte do trio. Bennent, excepcional ator alemão, fluente em francês, inglês e outros idiomas, atuou em filmes como “A Honra Perdida de Katherine Blum” (Die Verlorene Ehre der Katherine Blum), de Volker Schlondorff e Margarethe von Trotta (1975), “O Tambor” (Die Blechtrommel), também de Schlondorff, e “O Ovo da Serpente” (Das Schlangerei / The Serpent’s Egg), de Bergman (ambos de 1979). Exemplo de sua hierarquia como ator é a cena na qual entra em desespero quando recebe a notícia de ter de passar mais dois anos naquele porão...

“Vou enlouquecer”, diz angustiado. “Qual a culpa de ser judeu?” Chora e ameaça entregar-se, suicidar-se. Marion resiste e mostra força: “V. não pode sair e não sairá, nem que precise bater em você”. A nostalgia se reflete na sua máscara e palavras, ao recordar-se de sua estada em Londres nos bons tempos, quando pôde assistir à peça “Gaslight” (A Meia Luz), de Patrick Hamilton, aliás levada ao cinema duas vezes, em 1940 dirigida por Thorold Dickinson e em 1944, por George Cukor. Quando carinhosamente beija a mulher, muito mais moça em relação a ele, Bennet age mais como um pai protetor e afetuoso. Estas referências são suficientes para destacar a atuação desse artista.

Catherine mostra bem sua espontaneidade quando prepara comida para Steiner ou quando lhe arruma melhor acomodação para dormir ou age como o repouso do guerreiro... Momento significativo é quando vai procurar um tal Dr. Dietrich no quartel do comandante militar e vê uma amiga descer do outro lado da escada com um oficial alemão. As duas se olham, não dizem nada, mas o silêncio entre elas diz tudo. Quando vem a saber do suicídio do Dr. Dietrich pelo Ten. Bergen (Laszlo Szabo), seu admirador, nada transparece ou reclama quando ele lhe aperta a mão com os dedos, mas dele se desvencilha com dignidade.

Depardieu começou a projetar-se nos anos 70, tornando-se um ídolo do cinema francês a partir talvez de “Stavisky, de Resnais (1974), ou mesmo de “Novecento”, de Bernardo Bertolucci (1975). Propositais são as suas indecisões ao participar de um grupo dramático quase todo desconhecido para ele, ou quando faz a interpretação de uma interpretação ou recolhe os quadros e objetos do seu camarim, depois da decisão de abandonar o teatro.

Bons estão todos os coadjuvantes de maior ou menor participação nos eventos. Jean-Louis Richard como Daxiat tem momentos de incrível naturalidade quando, no auge da intolerância, fala contra os judeus na rádio; Jean-Luis Cottrin interpreta Jean Poiret, o substituto oficial de Steiner na direção do teatro, “homossexual discreto, dândi e mundano e bem ajustado ao papel”, como escreveu Truffaut. Andrea Ferreol faz Arlette, Marcel Berbet é o administrador, Richard Bohringer, o agente da Gestapo, Paulette Dubost a camareira, Maurice Richmond, Raymond, Sabine Haudepin, Nadine Marsac, jovem atriz disposta a tudo para subir na vida, até mesmo tornar-se homoerótica.

Menção especial cabe aos diálogos adicionais de Jean-Claude Grumberg. Revejam-se estes em função da situação mesma na qual foram proferidos: “Às vezes é melhor ser surdo para não ouvir certas coisas”; “Teatro é como banheiro e cemitério, quando temos de ir”; “O amor como ave de rapina fica pairando sobre nós”; “Senti-me atraída por você e agi para que ninguém notasse”; “Será que existem duas mulheres em uma?”.

Um filme para adquirir, ver ou rever, de um dos grandes mestres do cinema. Decididamente.

domingo, 19 de julho de 2009

“UMA MULHER CONTRA HITLER” – Fantasmas do nazismo ainda nos assombram hoje


“Die Letzen Tage” (Os Últimos Dias) ou “Uma Mulher contra Hitler” é outra obra de peso do moderno cinema alemão. Para críticos europeus, há algum tempo já se está produzindo na Alemanha unificada talvez o melhor cinema da atualidade. Pena só cheguem aqui poucos exemplares, muitos deles via TV a cabo. Desde o ressurgimento do Novo Cinema Alemão nos anos 70, quando pontificavam nomes como Rainer Fassbinder, Wim Wenders, Werner Herzog, Folker Schlondorff, Egon Monk, entre outros, o salto de qualidade tem sido evidente, enquanto a consolidação dos anos 90 e dos primeiros deste século nos trouxe Ottokar Runze (“O Vulcão”), Roland S. Richter (“O Túnel”, “Em Busca da Verdade”), Max Faberbock (“Aimée & Jaguar”), Tom Tykwer (“Corra Lola, Corra”), Wolfgang Becker (“Adeus Lenín!”), Robert Schwenke (“Plano de Vôo”), Oliver Hirschbiegel (“A Queda”) e Jo Baier (“Operação Valquíria”), para só ficarmos nestes vindos à lembrança.

Indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2005, “Die Letzen Tage” conquistou o Prêmio de Melhor Atriz (também no júri popular), indicações para Melhor Diretor e Melhor Desenho de Produção, 2 Ursos de Prata no Festival de Berlim nas categorias de Direção e Atriz, afora o Prêmio Ecumênico do Júri. Produção do Broth Film/Goldkind Film, com participação do diretor Marc Rothemund e do roteirista Fred Breinesdorfer, “Die Letzen ...” se baseia em arquivos da Gestapo, nas atas e registros dos interrogatórios e nos procedimentos do Tribunal e até em relatos de testemunhas ainda lúcidas.

As ações se concentram em fevereiro de 1943, nos dezesseis últimos dias de vida dos irmãos Scholl, Sophie e Hans, da Universidade de München (Munique) no sudoeste do país, praticamente em dois únicos cenários: a sala dos interrogatórios e as celas sinistras, claustrofóbicas (tal como eram) da prisão para onde foram levados. Alimentam-se de diálogos significativos, quase um duelo verbal entre acusado e acusador, campo e contracampo, e nem poderia deixar de ser assim, mas estes são recriados com tal inventividade, respaldada pela interpretação impecável, a ponto de quase substituírem as imagens, como se reconstituíssem, via palavras, tudo quanto aconteceu na vida dos líderes da organização “Weiss Rose” (Rosa Branca) e da própria Alemanha nazista.

Marc Rothemund (1968- ), oriundo da TV e depois ex-assistente de Gérard Corbian e dos conterrâneos Helmut Dietl e Dominik Graf, estreou na direção com o filme “Das Merkwürdige” (1998) e logo fez “Harte Jungs” (2000), sucesso de público e crítica. Neste quase-documentário, Rothemund logrou superar todos os outros filmes sobre o tema, até mesmo o bom “Rosa Branca”, de Michael Verhoeven (1982). Sua direção é firme, segura, reveladora não só da sua competência na orientação dos atores em face do crescimento das tensões, como também dos princípios norteadores do mundo das imagens em movimento no cinema – o equilíbrio entre os ritmos interno e externo.

Assim, desde a abertura do filme, quando se vê o local sigiloso da tipografia improvisada, a impressão dos panfletos e a sua distribuição, o caminhar apressado pelas ruas e becos semi-obscurecidos, mala na mão, a entrada dos dois no prédio da universidade, o lançamento das cópias lá do alto, até a “contre-plongée” sugestiva de uma rosa branca na cúpula, são detalhes indicativos de um trabalho diretorial de primeira linha. A necessidade de concisão (pois o foco não é a Resistência Alemã ao nazismo, como em “A Operação Valquíria”, e, sim, Sophie e seu irmão) levou Rothemund a suprimir o detalhe do acaso desfavorável contra os irmãos Scholl. Na verdade, os dois foram vistos pelo porteiro antes da sirene para o reinício das aulas, quando jogaram os panfletos lá da amurada, isso porque Sophie demorou um minuto a mais e o servidor chegou minutos antes...

Destaquem-se também a movimentação de pessoas na prisão, o abrir e fechar de portas e a inserção do ataque aéreo aliado, quebrando uma zona de silêncio, e as bombas incendiárias caindo como flocos de neve a distância. Como muitos da Resistência aguardavam a invasão de tropas anglo-americanas para os próximos meses, e a execução dos condenados só se dava geralmente 99 dias após a pronúncia, percebe-se uma chispa de esperança em Sophie, ao contemplar o bombardeio de uma das janelas da prisão, talvez na realidade tenha até pensado em sobreviver. Esperança vã, pois a invasão da Normandia só se daria em junho de 1944...

Não há como omitir aqui a cena final da morte dos jovens, dada a publicidade em torno do filme e os “trailers” inconvenientes. Rothemund compôs o desenlace com alto senso fílmico: “close-up” da cabeça de Sophie, rosto angustiado à espera do golpe fatal da lâmina triangular precipitada do alto, quando planos negros ocupam a tela, ouvindo-se somente o som sinistro, dilacerante e assustador da máquina da morte inventada pelo malogrado Dr. Joseph Guillotin (1738-1814), ironicamente decapitado por ela mesma... Ocorreu realmente a presença do padre na cela da Sophie, sabendo-se ter sido ela religiosa protestante. A reza pode ter-lhe servido de algum conforto, mas para quem não aceita morrer tão jovem naquelas circunstâncias, ou para quem não crê em eternidade ou noutras vidas, as palavras do sacerdote soam como dúbia consolação.

A fotografia de Martin Langer é de marcante realismo e a música de R. Heil e J. Klimex, incluída no início e no final, recorda “hits” americanos da época, enquanto em momentos conflitivos se ouve o bater persistente do bumbo, como se para marcar o tempo prestes a esgotar-se para os condenados. Os atores se revelam excepcionais, com Julie Dentsch à frente, como poucas vezes se vê em situação dramática no cinema, de início na tentativa de enganar seu algoz, depois enfrentando-o com a verdade e recusando-se a delatar companheiros (lembramo-nos da definição de coragem dada por Hemingway, “A dignidade sob pressão”). Não lhe ficam atrás Gerald Alexander Held (“A Queda”) como Robert Mohr, o inquisidor, seu irmão Fabian Hinrichs e os demais coadjuvantes, mas André Hennicke se supera como o louco e histérico juiz Roland Freisler, carrasco de todos quantos direta ou indiretamente atuaram contra o regime. Sua morte num bombardeio aliado, quando caíram bombas sobre o tribunal, salvou alguns implicados nos atentados ao Führer, um deles o estóico Cel. Fabian Schlanbrendorff (“Oficiais contra Hitler”). Ao ser condenada por Freisler, Sophie disse-lhe com altivez: “Logo vocês estarão no nosso lugar”.

No interrogatório de Sophie, o algoz parece entender as razões dela mas sugere igualmente o seu dever de ofício para com o nazismo, a quem deve seu “status” atual. Bastante significativa, portanto, é a troca de olhares entre os dois próximos ao final. Houve quem visse na expressão dele um toque de arrependimento, outros de sua correção como agente do sistema. Sophie pode tê-lo visto como simples peça de uma engrenagem maldita.

“Uma Mulher contra Hitler” é um filme raro. A ver, rever e refletir.

terça-feira, 2 de junho de 2009

PREITO A EDWARD DMYTRYK, UM CINEASTA SUBESTIMADO


Nascido em 1909 em Grand Forks, na Colúmbia Britânica, falecia em 2000, aos 91 anos e ainda lúcido, o cineasta canadense Edward Dmytryk (pronuncie-se/Dmytrýk/), vítima de insuficiência cardiovascular. O Blog do LG rende nesta edição um tributo a quem comandou 52 filmes em 44 anos de profícua atividade diretorial (1935-1979), mas foi esquecido e/ou subestimado pelas novas gerações. Se vivo fosse, estaria ele comemorando o seu centenário.
Realizador polêmico em face da histeria anticomunista e do abominável macarthismo dos anos 40-50, Dmytryk dirigiu filmes “noir” de categoria e dramas de boa qualidade, alguns nem tanto assim, em face de roteiros medíocres e de interferências externas, mas muitos deles integram as DVDtecas de cinéfilos daqui e dali. Quem tem seus filmes (uma raridade, diga-se de passagem) não gosta de emprestá-los, pois não sabem se ou quando voltam...
Este texto funde duas partes intrinsecamente ligadas: a primeira olha retrospectivamente para o fenômeno Hollywood, suas primícias e tempos áureos com centro de excelência em termos de cinema e como está hoje, bem assim para a crise surgida com o advento da TV, o macarthismo dos anos 50 e suas conseqüências no meio artístico. A segunda enfoca de forma sucinta a carreira do diretor, seu auto-exílio e o de outros cineastas, o retorno aos EUA e seu posicionamento equivocado frente ao Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso, o tal “House of Un-American Activities Committee” (HUAC), para novamente poder atuar como “filmmaker” em Hollywood. Ninguém aprova a delação, mas não é demais lembrar aqui as palavras de Ortega Y Gasset segundo as quais “eu sou eu e as minhas circunstâncias”...

Hollywood: Hoje e Ontem

Atualmente, Hollywood é um subúrbio um tanto desgastado de Los Angeles, desprovido do seu glamour de outrora como a capital do mundo do cinema, tal como a vêem os pesquisadores Barbara e Scott Siegel. Mas, para a maioria dos fãs da 7ª Arte de ontem e de hoje, Hollywood - denominada de início “bosque de azevinho” e depois “a fábrica de sonhos” e “cidade-ouropel” - não foi tanto um lugar como um estado de espírito, até mesmo durante a era de ouro dos anos 30 e 40, quando os estúdios se expandiram amplamente pela bacia de Los Angeles.
Originariamente o nome de um rancho existente no local da futura meca do cinema mundial, “Hollywood” assim foi chamada pelos proprietários, o sr. e sra. Wilcox, vindos de Kansas em 1886... O sr. Wilcox, dizem os historiadores, tinha sido um bem sucedido agente imobiliário capaz de aplicar seu talento para, em 1891, começar a subdividir seu rancho e vender terrenos. Em 1903, a pequena e sonolenta comunidade foi incorporada como vila, assumindo o nome do próprio rancho. Enquanto isso, a indústria
americana de filmes crescia a olhos vistos em Nova Iorque, pois era essencialmente um negócio da Costa Leste.
Em 1907, entretanto, a produção de filmes em pequena escala começou a crescer na área de Los Angeles, quando o Coronel William N. Selig (1864 - 1948), líder e inovador entre os primeiros produtores cinematográficos, entrou no ramo. Sua produção, a Polyscope, estava entre as maiores e mais bem sucedidas empresas dos primeiros tempos do cinema, compartilhando das fileiras da Companhia de Thomas Edison, da Biograph e da Pathé francesa. O lugar de Selig na indústria de filmes ficou assegurado por dezenas de realizações. Numa delas, “O Conde de Monte Cristo” (1908), quando foram necessárias tomadas externas, ele se tornou o primeiro produtor a mandar uma unidade de filmagem para a Califórnia.

A Califórnia

Segundo o casal Siegel, a área situada no Sul da Califórnia seduzia os realizadores por vários motivos: o sol abundante o ano inteiro permitia mais tempo para rodar os filmes, e o terreno ainda não cultivado e de vegetação variada se ajustava bem para a realização de vários gêneros de filmes em exteriores. Em 1908, quando a companhia de Edison começou tentando colocar seus concorrentes fora dos negócios, o Sul da Califórnia tornou-se um refúgio para as recém-surgidas empresas interessadas em ficar tão longe de Nova Iorque quanto possível. Além disso, a fronteira mexicana estava bem perto para uma rápida escapada da lei.
Hollywood tornou-se parte da grande Los Angeles em 1910, embora fosse ainda uma localidade subdesenvolvida. Essa condição mudou drasticamente quando o produtor-diretor Cecil B. de Mille (1881 - 1959) lá chegou em 1913 com a intenção de fazer ali seu primeiro filme. Sabia-se do seu interesse em filmar em Flagstaff, no Arizona, mas DeMille não gostou do local e continuou viajando de trem até chegar ao fim da linha: Hollywood. Lá filmou o longa-metragem bem sucedido, “The Squaw Man” (1914) e subitamente, graças a DeMille, algumas vezes referido com o Pai de Hollywood, outros realizadores chegaram aos montes. Quando a “Motion Pictures Patents Company” de DeMille foi dissolvida em 1917, a maioria dos grandes estúdios tinha vindo do leste para fazer filmes, pois apenas mantinham escritórios em Nova Iorque.

Hollywood e a TV

Apesar de os grandes produtores - judeus em sua grande maioria - terem construído imponentes estúdios à prova de som e climatizados em lugares afastados e tão díspares como o San Fernando Valley e Culver City, Hollywood foi o nome com o qual ficou para descrever a sede de tudo quanto se relacionava com o cinema nos EUA. Para as platéias do mundo inteiro (e não vai aqui nenhum saudosismo), as palavras “Made in Hollywood” tornavam disponíveis os filmes mais opulentos feitos com profissionalismo e os mais excitantes. E assim, segundo os pesquisadores, permaneceu até fins dos anos 40 e início dos 50, quando o poder dos estúdios finalmente se esvaiu. Forçados a desfazer-se das suas cadeias de cinemas em face de problemas com a legislação antitruste e sofrendo grandes fracassos bilhetéricos devido à expansão do novo veículo comunicacional, a televisão, os estúdios começaram a desmoronar. Celulóides feitos rotineiramente em Hollywood eram filmados além-mar devido aos impostos. Além disso, atores, diretores e produtores tornaram-se independentes: simplesmente alugavam o espaço dos estúdios e faziam seus filmes. Finalmente, os estúdios se tornaram em grande parte apenas redes de distribuição ao invés de produções cinematográficas genuínas. Quando ocorreu essa erosão, como escreveram as fontes destas notas (v. filmografia), a imagem de Hollywood como capital do cinema sofreu um rude golpe.

Séries e Filmes para a TV

Ironicamente, Hollywood foi salva por quem no início quase a liquidou: a TV. Os estúdios da indústria cinematográfica e os terrenos espaçosos continuam em atividade até hoje graças à produção permanente de séries da TV como “House”, “Lost”, “Arquivo X”, assim como no passado se distinguiram séries como “Além da Imaginação” (The Twilight Zone), de Rod Serling, mestre em criar uma atmosfera instigante, misteriosa e finais inesperados. Destaquem-se, a propósito, os filmes feitos para a televisão, onde já se fizeram clássicos para a telona prateada e onde se formaram cineastas do porte de John Frankenheimer e Sidney Lumet, entre outros. Hoje temos os computadores, os efeitos especiais digitalizados, excesso de cortes, videoclipagem, “chicotes”, fantasias ridículas, bobagens românticas a granel, violência, fantasias, refilmagens narrativas mal estruturadas, abertura para o sexo desenfreado e até o sadismo de filmes recentes como “Jogos Mortais” ou as torturas numa adolescente, até o desespero, como em “Um Crime Americano”, baseado em caso real ocorrido nos EUA em Indiana, 1965.
A geração dos anos 50 pertence, toda ela, como bem expressou o crítico e filmólogo francês René-Veillon, à aventura cinematográfica capaz de fazer de Hollywood uma ilha desligada da realidade norte-americana, isolada quer pelo seu funcionamento autônomo, quer pelas mitologias erguidas entre ela e o seu público. Toda a história do cinema dos EUA, como já se disse tantas vezes, foi reconhecida ali no bulício dos estúdios, quando seguiram seu próprio caminho, obedecendo às suas regras próprias e oferecendo-se às contradições da época para melhor transformá-las em funções de si mesmas, como vimos em filmes como “Assim Estava Escrito” (The Bad and the Beautiful), de Vincent Minelli (1952). Segundo ainda o crítico francês, mesmo assim, nos anos 50, Hollywood foi ainda uma formidável máquina de sofrer e interpretar as dúvidas nascidas da guerra fria, restituindo-lhe o lugar numa continuidade histórica. O paradoxo do cinema dessa época, podemos concluir, consiste em pertencer simultaneamente à história de sua crise, embora não possamos dissociar esses dois termos.

Anos 50: Visão Retroativa

Os críticos e cinéfilos de modo geral não podem dissociar dos anos 50, linha divisória do século XX, o nome de Dmytryk e seus filmes, tampouco esquecer aquela década, pois, como sabemos, provocou uma ruptura profunda no meio cinematográfico hollywoodiano e na ambiência psicossocial dos EUA. Isso porque, no auge do seu poder e alcance, Hollywood estava envolvida nas primeiras audiências do HUAC, sigla sinistra da intolerância persecutória para muitos dos injustiçados, numa crise de confiança coincidente com o surgimento da televisão, enquanto a crise política de um mundo exaurido do pós-guerra prenunciava um estado de dúvidas e incertezas de caráter socioeconômico sugeridas pelo “crash” de 1929.
A retransmissão pela TV, dia e noite, dos depoimentos de atores, cineastas, produtores, roteiristas, dentre outros, convocados a testemunhar a respeito da “influência comunista” nos meios cinematográficos, tornou-se uma angústia permanente. Foi como se o mundo mítico do cinema estivesse condenado a um ritual de constrangimento e pressões de toda ordem, como salientou ainda René-Veillon na sua visão daqueles anos 50, dos quais milhares de pessoas sairiam humilhadas e muitas delas desempregadas e algumas presas. Essa encenação investigativa, lembrando, mutatis mutandis, a Inquisição papal de triste memória ou os “interrogatórios” da Gestapo e da KGB, contribuiu sem dúvida para desacreditar o sistema de funcionamento de Hollywood. Era tudo quanto queriam os políticos sequiosos de interferir na estrutura cinematográfica, todos eles ávidos de publicidade, objetivando deslocar para outros veículos de comunicação o prestígio e o poderio até então nas mãos do cinema, conforme registravam alguns críticos.
O espetáculo da crise política atingia os alicerces da crise político-econômica já referida, enquanto a TV mostrava aos quatro cantos o julgamento de um sistema por ela mesma condenado e cujas dificuldades registrava para depois neutralizá-lo e precipitar a sua transformação, como escreveu René-Veillon. No entanto, apesar desse quadro crítico em termos psicossociopolíticos também analisado por Scott e Barbara Siegel (v. bibliografia consultada), surgiram cineastas dispostos a enfrentá-los. Dentre eles destacamos Otto Preminger, Robert Aldrich e produtores independentes não comprometidos, como Stanley Kramer e James B. Harris (este faria depois dupla com Stanley Kubrick), bem assim roteiristas e autoras como Lillian Hellman, de “Pérfida” (The Little Foxes, 1941), dirigido por William Wyler, e de “Julia”, sua obra homônima adaptada por Alvin Sargent e levada à tela por Fred Zinnemann em 1977, e Ayn Rand, de “Vontade Indômita” (The Fountainhead, 1949), de King Vidor.
Lembremo-nos de escritores como Ring Lardner de “A Mulher do Dia” (Woman of the Year, 1942), de George Stevens; de “Laura” (1944), com “script” de Betty Reinhardt, Jay Dratler e Samuel Hoffenstein baseado no romance de Vera Caspary, e direção de Preminger. Igualmente, de “O Grande Segredo” (Cloak and Dagger, 1946), de Fritz Lang, com mais um “screenplay” de Lardner, e principalmente de Carl Foreman, roteirista de “Espíritos Indômitos” (The Men, 1950), “Matar ou Morrer” (High Noon, 1952), ambos dirigidos por Zinnemann, e de “A Ponte do Rio Kwai” (The Bridge on the River Kwai, 1957), de David Lean, para só ficarmos nestes nomes vindos à memória.

Os Anos Verdes de Dmytryk

Quando ainda garoto Dmytryk perdeu sua mãe, o pai decidiu transferir-se para San Francisco, cidade com maiores possibilidades para uma família de classe média baixa. Em pouco tempo o genitor casou-se em segundas núpcias e o jovem Dmytryk, o mais novo dos filhos, sentiu-se negligenciado, pois tinha de contribuir para a renda familiar vendendo jornais, revistas e assinaturas, mesmo quando ainda estava concluindo o primeiro grau. Terminado o ginasial, o adolescente de 15 anos conseguiu um emprego na Paramount, em Hollywood, como mensageiro. Além dos trabalhos externos, ele atuava também como contínuo. Com o correr do tempo, foi-se mostrando eficiente e cumpridor dos deveres e galgando posições até conseguir empregar-se como auxiliar de projecionista (pois havia começado a gostar do entretenimento das imagens em movimento) e depois como substituto do titular e até um “faz-tudo” em várias fases de produção, a tanto conduzia sua rápida percepção das coisas.
Aos 20 anos, Dmytryk tornou-se assistente de montagem e aos 26 foi promovido a montador e depois a montador-chefe, posição virtualmente mantida nos anos 30. Ao longo do caminho, dirigiu ele um filme experimental de 60 min sobre tribofe em corrida de cavalos e por certo não incluído em sua filmografia dos primeiros tempos, provavelmente porque se perdera no arquivo morto de alguma produtora de cinema amador. Durante esse período rico para o seu aprendizado e amadurecimento técnico, conforme reconheceu em entrevista dada nos anos 50, Dmytryk viu e reviu muitos clássicos na tela dos cinemas ou na sala de edição, filmes de Griffith, Murnau, Stroheim, Molander, Pabst, Sternberg, Riefenstahl, L’Herbier, (Max) Ophuls, Eisenstein e Kuleshov. Leu também textos sobre o específico fílmico e a direção cinematográfica. Não admira ter sido tempos depois professor de cinema nos anos 70 e 80 nas universidades do Texas, em Austin, e da Califórnia do Sul e escrito dois livros em 1984, um dos quais “On Screen Directing” (v. Para Saber Mais), livro de cabeceira de muitos cineastas novos e veteranos, bastante difundido nos EUA. Ainda quanto à sua fase inicial, acresça-se a crédito de Dmytryk o seu trabalho de edição em “Vamos à América” (Ruggles of Red Gap, 1935), de Leo Mc Carey, e em “The Hawk”, sem título em português, bem assim o fato de ter sido chamado para orientar a atuação cênica da inquieta Betty Grable na comédia colegial “Ela Prefere um Atleta” (Million Dollar Legs, estes dois também de 1935), dirigida pelo artesão Nick Grinde.

“Metteur-en-scène”

Embora filmólogos como Marcel Martin prefiram escrever “metteur-en-présence”, optamos por deixar a forma tradicional, pois o cinéfilo leitor estará entendendo logo o significado da expressão. Assim chegou Dmytryk a diretor em 1939. Apesar das cenas de ação bem dirigidas e razoável acolhida da crítica e das bilheterias, seus cinco primeiros filmes são esquecíveis e dispensam comentários: “Espionagem por Televisão” (Television Spy, 1939), ‘’O Corsário Fantasma” (Mystery Sea Raider), “Servidores da Lei” (Emergency Squad), “Luvas de Ouro” (Golden Gloves) e “Seu Primeiro Romance” (Her First Romance), todos de 1940. Nas oito películas de 1941/42, Dmytryk melhorou a qualidade rítmica de seus filmes e a boa interação entre planos fixos e móveis. apesar dos roteiros fracos e dos orçamentos limitados dos filmes-B. São eles: “Os Mortos Falam” (The Devil Commands), “Menor de Idade” (Under Age), “A Namorada do Colégio” (Sweetheart of the Campus), “A Loura de Singapura” (The Blonde From Singapore), “O Segredo da Estátua” (Confessions of Boston Blackie), “As Jóias do Imperador” (Secrets of the Lone Wolf), todos de 1941, e “Dama em Perigo” (Counter-Espionage), “O Farol dos Espias” (Seven Miles from Alcatraz) e “O Falcão Contra-Ataca” (The Falcon Strikes Back), estes de 1942.

A Segunda Fase

A carreira de Dmytryk tornou-se promissora e ascendente a partir do filme antinazista “Os Filhos de Hitler” (Hitler’s Children, 1943), apreciado pelas platéias e bem sucedido à época em termos de bilheteria. Afinal, o mundo estava em guerra. Alguns críticos viram a película como um melodrama artificial situado numa Alemanha improvável (?), embora outros o elogiassem pela recriação cinematográfica de uma ambiência sinistra e verdadeira e pelo roteiro de Emmet Lavery baseado no livro “Educando para a Morte”, de Gregor Ziemer, no qual os nazistas da ditadura de Hitler são mostrados como realmente eram e não como um bando de idiotas na linha tradicional de algumas produções hollywoodianas..
Seguiu-se a esses filmes de 1940-43, a trilogia “noir” com “thillers” de suspense com os quais Dmytrýk ganhou o respeito de analistas exigentes: “Até à Vista, Querida” (Murder My Sweet, 1945), roteiro a cargo do mestre John Paxton apoiado no romance “Farewell My Lovely”, de Raymond Chandler; “Acossado” (Cornered, também do mesmo ano), novamente com Paxton baseado em história de John Wexler e Dick Powell atuando nos dois filmes como protagonista, e “Rancor” (Crossfire, 1947), da obra de Richard Brooks também adaptada por Paxton, alterando-se apenas o objetivo do ódio psicopático ao homossexual, como no texto original, para o ódio ao judeu, tudo por exigência homofóbica de produtores e censores! “Rancor” foi indicado para o Oscar de Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Ator. O “Halliwell Guide” lhe deu a nota máxima, 4 estrelas! Dmytryk só não ganhou o Oscar de Melhor Diretor devido à acusação de diretor comunista (sic) por parte do HUAC!
Quando Dmytryk estava no acme de sua carreira e prestígio (visto até como galã bem apessoado e “enfant-gaté” de muitas jovens), o segundo semestre de 1947 se tornou um período aziago na vida do cineasta canadense. Convocado para depor no Comitê de Atividades Anti-Americanas, sobre a qual já discorremos na primeira parte deste artigo, recusou-se, com base na 1ª emenda da Constituição, a responder às perguntas do Comitê incumbido de investigar a influência comunista em Hollywood. Por isso, juntamente com outros nove, tornou-se um dos infames “Dez de Hollywood”, já referidos. Ei-los: Adrian Scott, Ring Lardner, Samuel Ornitz, Alvah Bessic, Herbert Biberman, Lester Cole, John Howard Lawson, Albert Matz, Dalton Trumbo e Edward Dmytryk. Todos foram condenados a um ano de prisão e multa de US$1000. Dmytryk saiu com seis meses e exilou-se na Inglaterra. Quando retornou, relacionou os nomes dos colegas participantes das reuniões do partidão. Apesar dos adversários de sua atitude, alguns amigos compreenderam o alcance das pressões por ele recebidas. Nenhum, porém, foi tão estigmatizado quanto Elia Kazan, pois este chegou a pagar um anúncio em página de jornal para denunciar os colegas!

Reações contra o HUAC

Atores como Burt Lancaster, Henry Fonda, Kirk Douglas, John Wayne, Humphrey Bogart e dezenas de outros se manifestaram contra o HUAC, bem assim teatrólogos como Arthur Miller e William Inge e roteiristas e autores como Budd Schulberg. A paranóia concernente às “intenções soviéticas” para minar e destruir a sociedade americana conduziu Hollywood a um expurgo considerável de diretores, atores, produtores e particularmente escritores, os quais viam suas carreiras e com freqüência suas vidas destruídas, como as de Larry Parks e John Garfield, para citar apenas estes dois, pois o caso de Charlie Chaplin comportaria muitas páginas. Em suma, mais de mil pessoas marcadas com o labéu de comunistas ou simpatizantes descobriram ser impossível defender-se naquelas circunstâncias. Muitos nem mesmo sabiam estar na tal lista negra, só viriam a sabê-lo quando descobriram a impossibilidade de conseguir emprego... Muitos vendiam seus “scripts” para sobreviverem usando pseudônimos. Tristes tempos...

Fuga para a Europa

Lardner, Foreman e os cineastas John Berry, Joseph Losey, Robert Rossen, Jules Dassin e alguns outros emigraram para a Europa. Tiveram de dirigir filmes com nomes falsos, de tal modo pudessem exportar suas fitas para o mercado americano... Caso mais notável é o de Dalton Trumbo (1905-76), outra vítima do macarthismo. Escreveu 18 “screenplays” sob vários pseudônimos. Sua história para “Arenas Sangrentas”, (The Brave One, 1956) fez jus a um Oscar para o desconhecido Robert Rich, mas este, no fim de contas, não era outro senão o próprio Trumbo, para estupefação da indústria na cerimônia de entrega do Oscar. Para F. Kline e R.D. Nolan, Trumbo foi o primeiro dos escritores da “lista negra” a emergir do subterrâneo do anonimato, graças à insistência de Kirk Douglas, Preminger e Kubrick, homens de visão humanista e prestígio no meio cinematográfico. Daí o motivo pelo qual o nome de Trumbo apareceu nos créditos de suas respectivas produções, “Spartacus” e “Exodus”. A Legião Americana tentou boicotar os dois filmes, colocando piquetes na porta dos cinemas (decisão de um ridículo atroz), mas sem nenhum resultado.
Trumbo acabou realizando seu antigo sonho de levar à tela a sua sombria novela antimilitarista “Johnny Vai à Guerra” (Johnny Got his Gun, 1971), primeiro e único filme dirigido por ele. A realização ganhou um prêmio no Festival Internacional de Cannes, mas o retorno de Trumbo aos EUA foi marcado por problemas de saúde. Bem sucedido após cirurgia de câncer de pulmão, morreria de ataque cardíaco aos 70 anos. Deixou-nos “screenplays” exemplares, como “Kitty Foyle” (1940), “Arenas Sangrentas” (1956), “Spartacus”, “Exodus” (1960), “O Último Pôr-de-Sol” (1961), “Sua Última Façanha” (1962), “O Assassinato de um Presidente” e “Papillon”, ambos de 1973. O mundo dos “screenplays” ficou órfão depois do desaparecimento de Trumbo, disse Kubrick, um dos defensores do seu pensamento político e da plena liberdade de criação para o artista.

Na Inglaterra

Tão logo foi solto
[1](*), Dmytryk se impôs um exílio forçado na velha Albión, assim como o fizeram alguns do já citados cineastas e roteiristas. Lá dirigiu três filmes: o primeiro, “Aquele Dia Inesquecível” (So Well Remembered, 1948), escrito por Paxton, calcado no romance de James Hilton. Para Dilys Powell do “Sunday Times”, “a ocasional tibieza do texto original é compensada por um sentido fortemente comunicativo de clima e locação: as ruas tortuosas brilhando na chuva, as casas soturnas e sufocantes”. Bob Warren viu no filme “uma câmara perscrutadora atenta a cada detalhe relevante e às máscaras dos actantes”. O segundo, o socialmente consciente e bastante elucidativo “O Preço de uma Vida” (Give Us This Day, 1949), teve roteiro de Ben Barzman e a colaboração do próprio Dmytryk. Houve quem visse no subtexto do filme uma tentativa do cineasta para explicar seu testemunho frente ao HUAC e ser perdoado pelos amigos... O terceiro foi “Mórbido Despeito” (Obsession, 1949) sobre tentativa de vingança criminosa de um marido e um final surpreendente, precedido de uma tensão exasperante e bem construída.
Para fechar esta visão retrospectiva, permitindo-nos sugerir aos cinéfilos porventura interessados no macarthismo a revisão de filmes como “Culpado por Suspeita” (Guilty by Suspicion, 2004/2005), de Irwin Winkler, e “Boa Noite, e Boa Sorte” (Good Night, and Good Luck, 2005), de George Clooney, ambos analisados por este escriba, respectivamente no Caderno de Cultura do DN (05 e 12 de dezembro de 2004) e no “Zoeira” (12 de fevereiro de 2006), para terem idéia mais abrangente do clima angustiante vivido por artistas, técnicos, escritores e atores naqueles tempos ominosos.

Filmografia Essencial

Vimos e revimos quase todos os celulóides dirigidos por Dmytryk. Chegamos a comentar alguns deles no antigo CCF e a debatê-los nos anos 50/60 após a exibição dos filmes do cineasta nas telas da cidade, por iniciativa do pranteado Darcy Costa, seu fundador e presidente por vários anos. Da extensa bagagem do realizador canadense, ressaltamos “Até à Vista, Querida”, “Acossado”, “Rancor” (a trilogia “noir”), “Volúpia de Matar”, “O Preço de uma Vida”, “A Nave da Revolta”, “Minha Vontade É Lei”, “Lança Partida”, “Os Deuses Vencidos” e “Miragem”. Não assistimos aos seus dois últimos filmes, “He Is my Brother” (1976) e “Not Only Strangers” (1979), nem conseguimos obter seus títulos em português, tampouco os temos em DVD.
Segundo um crítico do “Variety”, Dmytryk ainda revelava o brilho de sua concepção de cinema em seus derradeiros trabalhos profissionais, mesmo quando os roteiros eram medíocres ou limitados em escopo, ou quando havia interferências, geralmente descabidas de produtores e das próprias distribuidoras. Assim não dá para trabalhar, dizia ele para Kirk Douglas, a quem dirigiu em “O Malabarista” (The Juggler, 1953). Mas, mesmo em obras menores como “O Quarto Oculto” (Obsession, 1946) e “Volúpia de Matar” (The Sniper, 1952), Dmytryk pôde deixar o sinete de sua força para exprimir-se e comunicar-se via imagens em movimento e subtexto, sem perder de vista a coerência do seu processo narrativo. Sumarizamos aqui as qualidades intrínsecas de oito títulos citados acima, os quais dão idéia de como Dmytryk via a realidade psicossocial e econômica do nosso cambiante dia-a-dia e de como a levava ao cinema com proficiência técnica. Ei-los:
“Até à Vista Querida” (Murder, My Sweet, 1945), primeiro filme “noir” de Dmytryk, válido não só pelo jogo de sombras do p&b de Harry J. Wild como pelo roteiro de John Paxton, a quem devemos a abertura com o detetive Philip Martowe (Dick Powell) de olhos vendados, pois ficara temporariamente cego num tiroteio. Vemo-lo recontando para a polícia os eventos conducentes a esse estado e ao seu envolvimento com pessoas assassinadas. Esse desvio da novela original de Raymond Chandler introduziu dois artifícios recorrentes do “noir”: o processo narrativo em retrospecto e o narrador interno (a voz “over”) e estes conduzem o espectador a lugares tortuosos e habitados por marginais e criminosos. Contratado por um ex-presidiário, o protagonista deve descobrir o paradeiro de Velma, ex-cantora de clube noturno. Toques eficazes da direção se impõem, como nos “flashes” intermitentes de luzes da rua refletidas na janela do escritório de Marlowe, ou na presença de Otto Kruger como diretor do sanatório onde o detetive esteve drogado e prisioneiro. Do conflito inicial às ações dele decorrentes chega-se à casa de praia na qual ocorre o clímax, quando o suspense e a expectativa desfecham na definição dos fatos dramáticos antecedentes e Claire Trevor aparece como “femme fatale”.
“Acossado” (Cornered, 1945). De novo Dick Powell no papel-chave, dessa feita como um oficial franco-canadense à procura de encontrar o responsável pelo assassinato de sua mulher. Suas andanças o levam a Buenos Aires para onde fugiram nazistas e antigos colaboradores do regime. O filme é apenas perifericamente “noir” e não tem a complexidade de “Até à Vista, Querida”, pois o jogo do tempo não transforma a duração da história. Dmytryk utiliza a confusão dos tempos para encorpar o entrecho e o conflito da solidão intensificado pelos acessos de amnésia do protagonista. A direção faz uso de elementos típicos de “noir”, não só na iluminação mas na forma pela qual cria o suspense e o ritmo para o final surpreendente, no qual Luther Adler, mesmo por pouco tempo, faz de Marcel Jarnac, pela sua máscara , um criminoso inesquecível. Destaquem-se os diálogos frios, significativos, como aquele no qual alguém pergunta ao protagonista: “Por que tanto interesse em vingar uma mulher morta há tanto tempo? Ela era bonita?”, “Não, era magra e tinha dentes tortos. Mas me lembro de certas coisas e me prendo a essas memórias”. Walter Slezak é outra presença marcante no elenco. “Screenplay” de John Paxton.
“Rancor” (Crossfire, 1947), “script” de Paxton, roteirista de primeira linha, baseado no livro de Richard Brooks, “The Brick Foxhole”. Apesar de a abominável censura do Código Hays exigir uma mudança no tema do homossexualismo para o do anti-semitismo, “Rancor” ganha o “status” de um dos melhores do ano e o máximo de quatro “estrelas” do Halliwell Guide, filme obrigatório nos cinemas e cineclubes dos EUA e da Europa. Um judeu é assassinado num hotel nova-iorquino e três soldados são suspeitos. “Thriller” tenso, com diálogos marcantes, todo filmado à noite com uso eficaz das técnicas de câmara, notável pelo estilo, interpretação, experimentação e o primeiro celulóide americano a condenar o racismo intolerante. Fotografia admirável de J. Roy Hunt, música de Roy Webb, três Roberts no elenco (Ryan, Young e Mitchum), com Ryab em desempenho excepcional, Gloria Grahame atua como atendente de bar (o máximo permitido em Hollywood para sugerir uma prostituta) e Paul Kelly está magistral como um patético amante ocasional da “B-girl”, mas estranhamente um personagem digno de estudo: numa angustiada torrente de palavras, o personagem confessa seu tormento emocional por desejar uma mulher incapaz de amá-lo, porque ganha a vida vendendo a outros tudo quanto ele anseia para si. Dmytryk explicou como mudou progressivamente as lentes da câmara quando filmava cenas com Ryan, de tal forma a distorcer gradualmente o rosto do ator, acentuando a revelação da reprimida paranóia do personagem sádico e anti-semita. Um filme raro.
“A Nave da Revolta” (The Caine Mutiny, 1954). Dmytryk chega a exorcizar a sua própria posição, transformado o personagem vivido por Fred McMurray no ‘’herói’’ da traição, ao fazer do capitão psicopata interpretado por Humphrey Bogart um culpado capaz de torná-la necessária... Tudo se encaixa na ordem hierárquica militar, mesmo se essa sai um tanto abalada. O sujeito individual, como o vêem alguns analistas, transformou-se em sujeito coletivo e o traidor passa de culpado a vítima e a herói de uma salutar revolta contra a força e o arbítrio.
Esse mesmo processo conduz a evolução dramática do personagem de Richard Widmark em “Lança Partida” (Broken Lance, 1954) e “Minha Vontade É Lei” (Warlock, 1959), nos quais Dmytryk desenhou por meio das convenções do gênero o esboço das suas obsessões. De fato, em ambos os “Westerns”, embora de enredos diferentes, Widmark atraiçoa os irmãos, quer porque se insurja contra a lei do pai magistralmente interpretado por Spencer Tracy, quer porque se submeta a ele e receba seu sinal (os revólveres Colt de ouro de Henry Fonda). Ainda assim tem de enfrentar essa comunidade de irmãos e isso assombra o universo de Dmytryk como um remorso penosamente transcendido, como aponta René-Veillon. Mas se por vezes o cineasta tem a audácia de revelar a identidade de um gesto e de enriquecer com suas fraquezas a intensidade do seu projeto cinematográfico, na maior parte dos casos Dmytryk prefere exibir a maestria dos atores e a maquinaria do estúdio na realização do filme. O roteiro é de Robert Alan Arthur e a novela original leva a assinatura de Oakley Hall.
“Os Deuses Vencidos” (The Young Lions, 1958), escrito para a tela por Edward Anhalt com base no romance da Irwin Shaw, enfoca o drama de dois americanos na II Guerra e de um alemão instrutor de esquiagem. Os três se entrelaçam e bem se poderia pensar num épico, segundo o próprio Dmytryk. O resultado tem um sopro renovador e de modo geral concentra a atenção do espectador, embora um tanto irregular e decididamente muito longo. Faltou dessa vez a Dmytryk o toque truffautiano para eliminar o supérfluo em favor da concisão e da elipse. Desconhecemos as interferências dos produtores em relação a “Os Deuses Vencidos”, mas para Pauline Kael, sempre uma crítica exigente, o filme de Dmytryk é episódico o superproduzido como um Grande Hotel em tempo de guerra... Joe MacDonald e Hugh Friedlander foram indicados ao Oscar de Melhor Fotografia e Melhor Música, respectivamente. A personagem de Barbara Rush age num diálogo como se já soubesse do resultado da II Guerra muitos anos antes... Um escorrego ou “gato” capaz de passar sem ser visto por roteiristas, e até por Dmytryk, sempre atento a esses bichanos.
“Miragem” (Mirage, 1965), um dos melhores “thrillers” de suspense da carreira de Dmytryk. Foi adaptado por Peter Stone de uma novela de Walter Ericson. Fotografia de primeira a cargo de Joe Mac Donald e música de Quincy Jones. No elenco, Gregory Peck, Diane Baker, Walter Mathau, Leif Erickson e Kevin MacCarthy. Executivo de empresa cai do alto de um edifício em noite de “blackout” e a única testemunha do estranho e trágico incidente perde a memória… Conforme referIdo mais adiante nas Opiniões, “trata-se de um filme digno de Hitchcock em sua melhor vindima”. Desempenhos de categoria por parte de todo o elenco, precisão no ritmo das ações e na edição final.

O Profissional

Ao longo de sua carreira como “filmmaker” (aqui entendido o termo como realizador de um filme pleno de imageria expressiva e de criatividade, e não como o diretor contratado para executar um roteiro com olhos voltados para a consecução de lucros com a produção), Dmytryk mostrou tirocínio, capacidade de liderança e de trabalho em equipe, flexibilidade no trato com roteiristas, produtores e montadores, eficiência no uso da câmara, preocupação sadia no tocante aos prazos e ao orçamento da produção. Uma pena tenha sido truncada sua carreira na época no macarthismo, quando o direitor Sam Wood o denunciou como comunista perante o HUAC, e quando o acusado já se decepcionara com essa ideologia. Sentenciado a um ano de prisão e multa de US$1,000 por desacato à Corte, Dmytryk auto-exilou-se na Inglaterra, onde dirigiu três filmes. Retornou a Hollywood em 1957 (amigos lamentaram seu retorno, pois preferiam tivesse agido como Losey e Berry, os quais lá ficaram e fizeram carreira na Europa) e testemunhou na segunda rodada das audiências do HUAC, quando incriminou vários dos seus colegas e aí teve carta branca para novamente atuar como diretor cinematográfico...
Em fins dos anos 70, como já referido, Dmytryk ministrou cursos de cinema na Universidade do Texas, em Austin, e em 1984 foi designado como “Filmmaking Professor” na Universidade da Califórnia do Sul. Casado em segundas núpcias com a atriz Jean Porter, escreveu sua autobiografia intitulada “It’s a Hell of a Life but not a Bad Living” (Um Inferno de Vida mas não tão Ruim Assim). Amargou no entanto, durante anos, sua delação no HUAC, segundo se soube, mas levou-a para o túmulo como nódoa indelével. Morreu tranqüilo aos 91 anos, tendo sobrevivido aos seus críticos e algozes. Seu enterro modesto teve a presença de familiares e dos poucos amigos sobreviventes.
Opiniões

“Dmytryk não parou no tempo, apesar das pressões sofridas com o macarthismo abjeto e de suas dificuldades financeiras, do auto-exílio na Inglaterra e do seu retorno aos EUA, quando lamentavelmente relacionou o nome de outros profissionais participantes das reuniões do Partido Comunista. Foi execrado por isso, mas casos assim devem ser vistos contextualmente, embora ninguém aprove a delação. Por isso mesmo ainda é um prazer renovado ver filmes como ‘Lança Partida’ (Broken Lance, 1954), ‘Minha Vontade é Lei’ (Warlock, 1959) e o instigante e pouco valorizado ‘Miragem’ (Mirage, 1965), ‘digno de um Hitchoock no melhor de sua vindima’”.
Dale Bailey no LA. News 1967, citado em parte pelo Halliwell Movie Guide, 2004.

“Vejo nos melhores de Dmytryk, tanto em suas incursões no filme ‘noir’ como noutros gêneros, o cineasta plenamente afinado com uma câmara voltada para as qualidades essenciais da imagem fílmica e o aproveitamento inteligente das elipses e do p&b nos interiores. Em ”Miragem” (Mirage, 1965), por exemplo, pequena obra-prima de suspense, o cineasta canadense consegue transformar um meio mecânico de reprodução num veículo de expressão artística. A narrativa é instigante:e o elenco bem conduzido, com Gregory Peck e Diane Baker á frente, atende bem às exigências da ‘’mise-en-scène’’.
Jean Bourgoin in transcrição do“Paris Match”, nov 1966.

“Por motivos de ordem vária são inesquecíveis ‘Volúpia de Matar’ (The Sniper, 1952), ‘A Nave da Revolta’ (The Caine Mutiny, 1954), ‘Os Deuses Vencidos’ (The Young Lions, 1958) e ‘Minha Vontade é Lei’ (Warlock ,1959). Não nos esqueçamos dos méritos de filmes menores como ‘Os Filhos de Hitler’ (Hitler’s Children, 1942), ‘Atrás do Sol Nascente’ (Behind the Rising Sun, 1943), tampouco destes da trilogia ‘noir’ com ‘Até à Vista Querida’ (Murder My Sweet), ‘Acossado’ (Cornered, ambos de 1944) e ‘Rancor’ (Crossfire, 1947), afora alguns dos fins dos anos 50”.
Rudolph Kessler in “Der Spiegel”, Sep. 1960.

“Cineasta cuja marca registrada na indústria americana de cinema foi feita tanto pelo seu papel singular no escândalo dos ‘Dez de Hollywood’ como pelas suas produções. Como diretor, Dmytryk tez cinqüenta filmes, pelo menos seis deles foram especialmente memoráveis. Apesar de tudo, foi um cineasta dos mais eficazes nos filmes ‘noir’ dos fins dos anos 40 e naqueles dos 50”.
Scott & Barbara Siegel in “The Encyclopedia of Hollywood”, Avon Books, 1991.

Fique por Dentro

DOLLY - Alguns cinéfilos e mesmo estudiosos de cinema usam o artigo masculino (o “dolly"), enquanto outros, o feminino (a “dolly"). Para o cinéfilo Dale Bailey (fala bem o espanhol e o português) , tanto faz. Uma questão de escolha, de preferência pessoal. Importa saber o significado do termo, seja considerando-o apenas como a plataforma (ou suporte equipado com rodas) sobre a qual estão uma câmara e o seu operador, ou como o carrinho (ou maquinário) e quem nele trabalha. Ou seja, o propósito da “dolly" é permitir a aproximação, o recuo ou o deslocamento lateral da câmara em relação à filmagem de cenas pelo seu operador, evitando-se cortes desnecessários. A “dolly" difere bastante da “steadicam” com DIS (“digital image stabilizer”), na qual o operador “veste-a” no corpo e anda com ela para evitar o treme-treme das imagens. Sua invenção se deve a Garret Brown, em 1972, a instâncias de Kubrick. Este a utilizou em seus últimos filmes. Brown e seu assistente fizeram jus a um Oscar especial em 1977.
Voltando à “dolly", quem a controla é o “dolly grip”, espécie de funcionário faz-tudo. Quando se emprega a “dolly" o resultado é com freqüência chamado de um plano “tracking”, “trucking” ou “traveling”, bem assim de “dolly shot” ou simplesmente plano “dolly”. Quando a “dolly" se move em direção ao centro da ação, chama-se “dolly in”; se recua ou se afasta é “dolly out”, e quando se move paralelamente a uma cena em movimento é o “dollying”, “tracking”, etc. Há vários tipos de “dollies” exóticas para usos incomuns, tais como a “crab dolly” (“dolly” caranguejo), a qual pode mover-se para os lados, além de fazê-lo para frente e para trás. Há também a “Western dolly”, cujas rodas massivas de borracha propiciam um movimento firme e suave em terreno irregular. Outro tipo de artifício é o “elemak dolly”, também conhecido como o “spider dolly” (ou “dolly” aranha), particularmente útil em cenários de pouco espaço, tais como corredores estreitos, devido às suas “pernas” ajustáveis. Graças às “dollies”, as imagens-movimento no cinema ganharam posicionamentos e valores técnico-artísticos inexistentes em tempos recuados.

Para Saber Mais

1. “Edward Dmytryk, um Cineasta Esquecido”, artigo de Paulo de Freitas Marques publicado pelo CEC de Belo Horizonte, quando da 1ª Jornada de Cineclubes naquela Capital, 1960;
2. “Dicionário do Cinema Americano” (Os Anos 1945-60), de Olivier René--Veillon, Publicações D. Quixote Ltda, Rua Luciano Cordeiro 119, 1098, Lisboa, Codex, Portugal, 1985;
3. “The American Cinema, Directors & Directions, 1929-68”, de Andrew Sarris, A Dutton Paperback, Clark, Irwin & Co. Ltda, Toronto & Vancouver, 1968;
4. “Macarthismo & Caça às Bruxas: Olhar Retrospectivo”, de L.G. de Miranda Leão em textos publicados no Caderno de Cultura do DN em 05 e 12 de dezembro de 2004;
5. “”On Screen Directing”, de Edward Dmytryk, London/New York, Focal Press, Ind. ed., 1984;
6. “The Encyclopedia of Hollywood”, de Scott & Barbara Siegel, Avon Books 195, Madison Av., New York, NY., Focal Press, 1984;
7. “Dicionário de Cinema”, de Jean Tulard, L&PM Editores, Porto Alegre (RS), 1992;
8. “Dicionário de Cineastas”, de Rubens Ewald Filho, Cia. Editora Nacional, 2002;
9. “Halliwell Movie Guide”, editado por John Walker, Harper Collins Publishers, New York, NY. 10022, 2005-2009;
10. “Film Noir: Reflections in a Dark Mirror”, de Bruce Crowther, publicado na Grá-Bretanha pela Virgin Books, Londres W10 SAH, 1990;
11. “The Film Encyclopedia”, F. Klein & R.D. Nolan, 3rd Edition, HarperPerennial, New York, NY, 1998; e
12. “Leonard Maltin’s Movie Guide”, a Signet Book published by New American Library, New York, NY, 2005-2009.

[1] ((*) Cumpre registrar um ponto controverso de difícil apuração, segundo o qual Dmytryk só foi preso depois de voltar da Inglaterra, onde dirigiu “O Preço de uma Vida”, visto por alguns como crítica (?) ao Comitê. Convocado novamente, abriu o jogo e foi liberado para dirigir filmes nos EUA.