segunda-feira, 16 de março de 2009

"IMAGENS" (IMAGES)

História original, “screenplay” e direção de Robert Altman; fotografia de VIlmos Zsigmond, produção de Tommy Thompson distribuída pela Columbia Pictures (1972). Uma das cenas-chave do filme: marido, mulher e amante juntos.

Em fevereiro último, “Imagens” (Images), de Robert Altman, foi exibido, a título de revisão e intercâmbio de idéias, em tela de 42 polegadas, para um grupo de cinéfilos locais, precedido de apresentação feita por este escriba e seguido de debate no final.

Como se recordarão os fãs de Altman, trata-se de filme difícil, mas visivelmente fascinante, sobre uma mulher ainda jovem com problemas psicológicos tentando pôr ordem em sua vida amorosa. Imagens da fantasia e da realidade entram em choque, numa espécie de alucinação contínua, como escreveu Bob Warren no “Maltin’s Movie Guide”.
Ou será a imaginação neurótica da mulher lhe pregando peças? Ou um caso de esquizofrenia? De início capaz de provocar inquietação, desagrado, antipatia, incômodo ou até repugnância, segundo alguns analistas, o filme vale, no entanto o esforço para vê-lo até o fecho surpreendente.

Por tudo isso, como o crítico Mark Falonga é considerado por muitos um especialista em Altman, decidimos traduzir, para quem apreciou o filme ou o entendeu pouco, o texto completo desse analista publicado pela “Film Quarterly” (vol. XXVI, n.º 4, Summer 1973). Lembrete desnecessário: o DVD se encontra nas locadoras para quem se interessar em ver (ou rever) mais um trabalho inquietante de quem sabe onde andam as andorinhas.

Cada um dos filmes de Robert Altman tem tratado até agora da luta pela liberdade. Geralmente, a ênfase consiste na deliciosa transitoriedade daqueles momentos nos quais a liberdade está, ou parece estar, conquistada. Os heróis cirurgiões de “Mobile Army Surgery Hospital”, ou simplesmente “M.A.S.H.” (1970), podem até ser vencedores na sua “guerra com o exército”, mas o tempo deve eventualmente derrotá-los. A precariedade absurda dessa utopia salpicada de sangue derramado é que dá a “M.A.S.H.” sua pungência - embora Altman atenue esperançosamente esse ponto. No centro da textura incrivelmente rica de “Voar É com os Pássaros” (Brewster McCloud, 1970), encontra-se o mito razoavelmente puro da queda do herói que aspira a “voar”.
Contudo, diferente de Ícaro, não se permite a Brewster nem mesmo um momento ao sol, exceto em seus sonhos; o cenário do astródromo proclama estar ele enjaulado desde o início. Embora Altman tenha afirmado, em “Quando os Homens São Homens” (Mr. McCabe and Mrs. Miller, 1971), que “a cidade realmente ficou mais fiel à medida do seu crescimento, é improvável que a maioria dos cidadãos urbanos dos anos 70 a vejam assim. Até que o capitalismo monopolítico inevitavelmente se volte para o abate, a Igreja Presbiteriana parece uma livre comunidade edênica (“M.A.S.H.” é uma encarnação anterior) que a maioria de nós daria os próprios dentes caninos para morar nela.

Apesar do apelo ambíguo dos cenários externos, “Imagens” não oferece equivalente algum em relação a “M.A.S.H.” fora da mente da heroína. Devido a esse abandono, até mesmo de uma esperança comunitária, o filme pode ser visto até agora como o mais pessimista de Altman (até mesmo o pobre e ingênuo Brewster espera que a predatória Susanne, que o entrega à polícia e causa sua morte, venha a voar com ele). Nada obstante, “Imagens” continua em muitos aspectos o trabalho prévio de Altman, embora alguns possam passar por alto, neste filme de alcovas, a “sociedade anônima” ordinária que é, em si mesma, a corporificação da liberdade que Altman abriga em relicário. Certamente, contudo, “Imagens” não concerne a nenhum caso clínico; nem são seu tema os choques físicos e os horrores demasiado transparentes de “Repulsa ao Sexo” (Repulsion, 1965), de Roman Polanski. Altman fez seu primeiro filme tratando abertamente das aspirações da imaginação ([1]*).

A protagonista de Altman desta vez é Cathryn (Susannah York), presa na armadilha de um casamento estéril e inútil. Um critico tipo Robin Wood poderia argüir que o tema do casamento admite pelo menos a possibilidade de uma comunidade básica estar presente no filme. Mas boa parte da força apavorante de “Imagens” deriva da maneira pela qual nós, juntamente com a heroína, descobrimos estar faltando essa força desde o início. Crédito para isso se deve em grande parte ao desempenho brilhante de René Auberjonois como o marido. O proteano Auberjonois é naturalmente o ator favorito de Altman, com papel importante em cada um dos seus quatro filmes. Ele já desempenhou a sinistra figura córica(**) (o conferencista Bird) em “Brewster”, e, no seu mais importante delineamento para “Imagens”, a figura de Judas no citado “McCabe”, no qual, apesar de sua devoção ao herói amado (a androgenia é sugerida no nome Sheehan), ele se compromete com o mal e trai McCabe à companhia de mineração, de modo possa a vida continuar como de costume. Mais do que nunca em “Imagens”, Auberjonois personifica essa vida “de costume”, o denominador comum nivelador da sociedade. Seu personagem se chama Hugh - ou seja, o Você (“You”), o não-EU tão hostil a si mesmo. Embora não haja naturalmente nenhuma causa literal, o excesso multiplicador das “visões” de Cathryn é acelerado pela cegueira igualmente extrema de Hugh.

No fim de contas, o relacionamento entre os dois protagonistas ganha de fato um significado alegórico, embora esteja esse firmemente enraizado nos vívidos detalhes do desempenho. O cuidado de Hugh com seu cabelo recorda alguns dos mais insanos maneirismos do conferencista em “Brewster McCloud”, semelhantes aos dos pássaros, mas o marido é também um caçador de pássaros - os agentes e contrapartes do personagem Brewster. As piadas de Hugh (no mínimo improvisadas pelo ator) estão tipificadas por uma obscenidade infantil que em parte oculta e em parte proclama sua impotência; por exemplo, ele cumprimenta Marcel, o amante de Cathryn, como se ele fosse um desconjuntado. E é irônico que Hugh seja um fotógrafo, embora o modo como percebe sua mulher revele como não a compreende nem mesmo na superfície. Antes mesmo de Cathryn ter assestado uma violência vicária contra isso, o “olho” da câmara de seu marido exerce uma malevolência fria, reminiscente do computador homossexual enrustido de “2001, Uma Odisséia no Espaço” (2001, a Space Odyssey, 1968), de Stanley Kubrick.

Depois dessa aterradora seqüência de abertura com as alucinações telefônicas de Cathryn, seu apelo ao marido suavemente impaciente, “Quero ir para Greencove”, certamente expressa seu desejo de fugir do cárcere do casamento. Mas Cathryn não pode evadir-se dele completamente, como não pode evadir-se da complexidade do seu eu. Greencove é certamente o mais pastoralmente belo dos locais edênicos de Altman, um lugar - se existir tal - onde o impossível poderia vir a ocorrer. Contudo, a forma do impossível que logo predomina foi sugerido ominosamente no início mesmo do filme, na pergunta de Cathryn às vozes cambiantes no receptor: “Quem está falando, por favor?”

A fantasia de auto-estilhaçamento da imaginação, como microcosmo de vários eus, tem sempre um apelo ambivalente neste filme de Altman. Num nível, representa o equivalente do desejo de Brewster de voar: uma aspiração de elevar-se nos ares para dentro do infinito, para além de tudo quanto parece limitar o homem na Terra. Mas, tão logo a jornada do casal se inicia, a imagem-chave do filme para esse desejo - um duplo de Cathryn mal percebido, onde a montanha e o céu se encontram - tem incontáveis associações demoníacas de uma história de fantasmas como a de “The Beckoning Fair One”, de Onions ([2]*), ao tratamento visual de Miss Jessel em “Os Inocentes” (The Innocents, de Jack Clayton, 1961). Cathryn, é claro, está sendo atraída para a beira do abismo. (A edição das seqüências que passam através do espaço-tempo entre diferentes “encarnações” da heroína constitui outra alusão a “2001”, embora as sugestões de renascimento estejam aqui até mesmo mais ambíguas em relação às do filme de Kubrick.

Que um abismo envolve a violência interna e externa parece implícito na própria quietude dos cenários. (Há uma seqüência curta, colocada de modo a criar um efeito quase subliminar, na qual Cathryn trabalha tranqüilamente no seu livro sob uma árvore e em seguida começa a correr como se fugisse de um perseguidor invisível). Muito tempo antes da revelação do final do filme, o “segredo” homicida, a estupenda queda d´água que se agiganta no centro do panorama de Greencove é ameaçadora, quando não devido às quase surreais fileiras de facas de cozinha nas quais se fixa Cathryn. As facas enfileiradas também evocam as grades aprisionadoras tanto quanto os jorros de sangue nitidamente paralelos, serenamente estéticos, que brotam do corpo de Marcel, quando Cathryn fantasia seu assassinato. Todo o feixe de imagens sugere, de modo puramente cinematográfico, que a tentativa de Cathryn para libertar-se com violência é em si mesma uma armadilha.

Assim também as obsessões com um amante morto e vivo aprisionam Cathryn, embora estas devam ter começado na expectativa oposta. Grande parte da confusão sexual de Cathryn pode remontar ao medo, e o título do livro infantil que ela está escrevendo - “Em Busca dos Unicórnios” - sugere uma procura por uma virgindade inatingível. Só sua escolha de Hugh como marido comportaria páginas e mais páginas. Mas seu desejo ainda pode brilhar esporadicamente, como na maravilhosa cena erótica na qual Cathryn, pelo menos uma vez, cede a Marcel enquanto ele a despe.

Podemos ver sua necessidade feroz de proteger-se para não ceder na insistência do falecido René (Marcel Bozzuffi): “Tudo quanto eu queria de você era um filho,” e na sua constante manipulação fantasiosa e no intercâmbio dos atributos dos três homens, Cathryn os reduz a projeções não ameaçadoras da sua própria psique. (A reprimenda do marido às primeiras alucinações de Cathryn, “Só há você,” torna-se uma afirmação suicida da parte dele). Tudo isso é algumas vezes o veículo para uma introvisão imaginativa, como na comédia bizarra da visão de Cathryn ao ver Hugh como o eu dela voluptuosamente despido. Mas porque ela nega aos homens o lado humano deles, porque todas as três relações terminam no mínimo em imagens da morte, Cathryn vem a parecer tão predatória como Suzanne, sua meio-sósia de “Brewster”. (O filme insiste naturalmente na confusão entre os nomes dos atores e dos intérpretes).

Até mesmo a relação de Cathryn com uma criança substituta, Susannah, a filha de Marcel (Cathryn Harrison), é permeada de hostilidade. Susannah é introduzida, surpreendentemente, como uma figura fantasmagórica num armário, a imagem reprimida da própria Cathryn quando menina. E quando Susannah emerge como pessoa “real”, as duas impulsivamente põem suas línguas para fora ao mesmo tempo. Durante breves instantes, a relação promete transformar-se numa amizade que compensará Cathryn por não ter filhos (na frase de W.H. Auden [1888-1959], que ilumina profundamente este filme, seu “frustrado fogo criativo”), e Susannah por sua falta de tudo, exceto dos seus companheiros imaginários de folguedos. Nada obstante, a semelhança física e emocional entre as duas mulheres é bastante aterradora, e a direção de Altman traz isso à tona de forma tão perturbadora a ponto de ser realmente vergonhoso que ele também, num dado instante, recorra à bobagem das reflexões redundantes na janela do automóvel. Nenhuma das duas mulheres pode dizer que salvarão a outra da ameaça de perturbação emocional muito mais profunda.

De fato, esse encontro misteriosamente sugestivo parece arrastar Cathryn à beira do precipício, conforme indicado convencionalmente no enredo pelo retorno forçado de Hugh à cidade para tratar de negócios. A mudança é indicada com maior significação pelas suas palavras de despedida, reclamadas por um crítico como reveladoras da excessiva timidez de Altman: “Qual a diferença entre dois coelhos? Nenhuma. Um são ambos. Os mesmos”. Com esforço, isso pode ser desvirtuado numa piada horrenda com a mesma qualidade das primeiras piadas de Hugh. Faz um sentido muito mais terrível, precisamente com o que Cathryn deseja ouvir nesse estágio: a confirmação de sua intuição segundo a qual as diferenças entre as pessoas são uma ilusão. Em termos práticos, isso constitui permissão para exorcizar seus demônios como ela acha justo. Assim, no dia seguinte, quando um dúplice familiar de si mesma (mas com voz estranha, andrógina) pára seu carro, ela pode empurrar a figura pelo precipício, sem hesitação.

No seu retorno compulsivo à cidade, Cathryn entra num mundo noturno de luzes absolutamente coloridas sugestivas do corredor psicodélico do Portal das Estrelas de “2001”. (Cathryn está por certo reduplicada tão amiúde quanto o cosmonauta Bowman no mesmo filme de Kubrick; se ela vai renascer é uma questão aberta). A imagem também evoca uma versão magníficada dos carrilhões do vento e das harpas eólicas, as quais, em forma consagrada pelo tempo, têm simbolizado a imaginação através deste “Imagens”. Mas se essa abstração ecoa quando Cathryn retorna ao branco antisséptico do seu apartamento (também pensamos na morte congelada de McCabe e da última recaída de Constance Miller no ópio), o reaparecimento do seu outro eu parece insistir nas exigências da realidade. Com o grito de Cathryn, oferece-se uma resolução convencional do “thriller”: vemos um plano do corpo de Hugh no fundo da queda d´água.

Apesar disso, no fim de contas é tão inútil distinguir “fantasia” e “realidade” neste “Imagens” como em qualquer dos quatro últimos filmes de Buñuel. A seqüência do esfaqueamento de Marcel foi tão convincente quanto esse último crime, até mesmo para o artifício do suspense de um cão entrando numa casa pelo faro do sangue. Contudo, Marcel é subseqüentemente restaurado à vida. Cathryn também experimenta uma espécie de narração de possibilidades: numa extensa seqüência, vemos Marcel tentando seduzi-la, enquanto seu marido dorme; depois a vemos tentando seduzir seu marido enquanto Marcel dorme... Hugh parece ter uma premonição de sua própria morte: sua piada acerca de “uma freira caindo das escadas” se concretiza no seu mergulho pelas quedas d´água. E até mesmo o cinema de Buñuel pode oferecer poucas imagens de um surrealismo tão perfeito quando a duplicação de Cathryn em Susannah (ou vice-versa, se os leitores preferem); contudo, o enredo tomado ao pé da letra insistiria numa verdade literal. No começo mesmo do filme, uma voz ao telefone, havia falado a Cathryn sobre um misterioso endereço onde seu marido estava com uma mulher; a imagem de Cathryn retornando finalmente à sua casa nos informa ser deles mesmo esse endereço. Numa visão mais próxima, esse endereço pode ser um dos círculos do inferno dos quais não há saída; o filme parece terminar por onde começou. Todavia, o plano final de Susannah completando um quebra-cabeças (um dos poucos entusiasmos compartilhados pelas mulheres) pode ter o endosso “objetivo” do diretor. Talvez Susannah tenha encontrado uma saída.


-Mark FALONGA in “Film Quarterly, Vol. XXVI, n° 4, Summer 1973. [Texto traduzido por LGML]


[1] (*) Imagens “vistas” pela personagem feminina através do plano-ponto-de-vista-subjetivo (PPVS).
(**) Referência aos versos cantados no coro ou a quem os canta.
[2]* “The Beckoning Fair One” (publicado em 1911, de autoria de George Oliver Onions [1972-1961]) é algumas vezes considerado o melhor conto escrito em língua inglesa; pode bem ser, segundo muitos analistas; certamente é um dos mais belos e tranqüilos contos sobrenaturais jamais escritos, embora seu autor não acreditasse em fantasmas e almas do outro mundo. O conto lembra “The Haunting of Hill House” (A Assombração da Casa da Colina), de Shirley Jackson, e isso já é por si só um grande elogio.