quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Filmes de Solanas

“TANGOS: EXÍLIO DE GARDEL”
A Metáfora do Tempo Redescoberto

Transcrevemos a seguir dois comentários nossos publicados no “O Povo” e neste Diário do Nordeste em fins dos anos 80, acrescidos dos respectivos subtítulos de “A Metáfora do Tempo Redescoberto”, à moda de Proust, e “Sur, a Poética do Reencontro”. As duas críticas complementam a matéria deste Caderno de Cultura, à época enviadas ao cineasta Fernando Solanas, com quem mantivemos proveitoso encontro, quando visitou Fortaleza com sua mulher Ângela Correia, atriz brasileira.




Depois de “A História Oficial”, de Luiz Puenzo, e “Camila”, de Maria Luísa Bemberg, êxitos junto à crítica e público nos grandes centros, brinda-nos agora o cinema argentino, pelas mãos desse admirável Fernando Solanas, com outro filme de primeira água e de concepção eminentemente cinematográfica, enriquecido pela música e pela dança. Capaz de provocar reflexões em nível adulto e ampliar o universo referencial do espectador atento, abrindo-lhe perspectivas e até novas maneiras de ver, “Tangos, o Exílio de Gardel” (Tangos, L’Exil de Gardel) fez jus a vários prêmios de Melhor Filme em 1985 em Biarritz, Veneza, Cannes, para só ficarmos nos mais importantes.









“Tangos” pode ser visto como a metáfora da intricada e trágica problemática argentina, agudizada pela crise econômico-financeira e psicossocial do nosso tempo, a partir talvez de 1955, na esteira da qual vieram os seus caudilhos, demagogos corruptos e ditadores militares impiedosos, e todas as seqüelas irremovíveis de sua passagem. Gardel, na realidade jamais exilado, simboliza no filme a alma do povo argentino banido dentro de sua própria pátria e também fora dela, lutando para adaptar-se a circunstâncias desfavoráveis. Cantor da liberdade, espírito humanista por excelência, Gardel por certo repundiaria o sistema repressor retratado por Solanas. A presença de Gardel se fortalece com a do libertador San Martin, este, sim, exilado por 25 anos numa cidadezinha francesa. O recurso a essas duas figuras míticas insere no filme um toque de realismo fantástico, no dizer de um crítico, capaz no entanto de fundamentar os subtemas insinuados ao longo de 125 minutos de projeção.

O enredo é simples mas rico de subtexto: em plena repressão dos anos 70, a bailarina Mariana, exilada em Paris, se reúne com outros argentinos para montar uma “tanguedia”, mistura de tango e tragicomédia. O texto da peça vai sendo armado aos poucos vindo de Buenos Aires, escrito em pedaços de papel ou guardanapos de restaurante por um poeta de vanguarda chamado de Juan Uno, para quem “a decisão de ser é sempre um risco”, “a decisão já é quase um êxito”, “resistir é preciso”… A bailarina, provavelmente viúva, mora com a filha adolescente e um garoto, em pequeno apartamento alugado. Seu companheiro é Juan Dos, irmão do poeta, bandoneonista e compositor. Os exilados precisam de apoio financeiro para levar a peça ao teatro e ainda não dispõem do final a cargo de Juan Uno.





Os ensaios são montados de forma invulgar com “flashes” da realidade quotidiana e as dificuldades enfrentadas pelo grupo para sobreviver longe da pátria. Daí a fraude nos telefones públicos e esparsos momentos cômicos, cenas de rua, ensaios na praça, a conversa no trem antes da melancólica visita ao túmulo de San Martin em Boulogne-Sur-Mer, as tentativas da mulher de um exilado para tentar localizar a neta desaparecida, o adeus de Juan Dos aos filhos na estação ferroviária, o encontro da bailarina com a amiga, mulher de membro da embaixada – esta a fazer-lhe insinuações sobre seu comportamento, dizendo-lhe haver muito exagero nos protestos dos exilados: “Já não se tortura tanto como antes em Buenos Aires, a gente acaba se acostumando”…

A narrativa se faz através de 13 quadros com nomes graficamente impressos, alguns deles precedidos por tema melódico introduzido por duas jovens, uma delas filha de Mariana. São eles: “Miséria em Paris”, “Tanguedia del Angel”, “Cartas del Exílio”, “La Poética de Juan Uno”. Pertencem estes ao chamado Ato I. Vêm depois “Uno em Buenos Aires” (trocadilho com o nome do personagem Juan Uno e o tango homônimo de Discépolo), “Tangos de Papel”, “Eran dos Exílios”, “Ausências”, “Milonga Loca”, “La Ultima Tanguedia”, “Solo” e “Volver”. A falta de um final para a peça cria conflitos e ganha valor de signo, aqui entendido o termo como todo objeto representativo de algo distinto de si mesmo, como a suástica significando o nazismo abjeto, a foice e o martelo, a ditadura sanguinária de Stalin, a cor vermelha no sinal de trânsito significando Pare!, etc. O final não chega nunca de Buenos Aires, talvez nem exista ou possa ser escrito. Tampouco existe saída para a própria situação argentina vivida à época. Como pensar então em eleições diretas para a Presidência da República e volta ao poder civil? Vão mais além as imagens do filme, tornadas sugestivas e reveladoras.





O drama político-social argentino, não se sabendo bem como terminará, é o drama do próprio continente latino-americano, dizimado, segundo o professor exilado, doublé de ator, pelos “esquemas neocolonialistas”. Ponto culminante é a passeata pelas ruas de Paris com muitas mulheres reproduzindo as marchas das mães da Plaza de Mayo, na interminável busca de seus entes desaparecidos. A peça, portanto, não termina. Continua o drama. Todos perdemos alguma coisa, diz o mestre.

Pareceu-nos visualmente antológica a abertura do filme com duas figuras dançando o tango na ponte sobre o Sena, rebatidas sobre o fundo cinza de uma Paris fria, outonal, verdadeira poesia das imagens-movimento, valorizada pelo tom nostálgico da musica nascida do “bandoneón” de Astor Piazzolla. Solanas encerra a cena com o abraço erótico dos amantes. Há outros momentos ilustrativos de uma direção zelosa e competente, por vezes inovadora na sua concepção do plano, na composição pictural ou na seqüência dinâmica acionadora de signos reveladores da realidade oculta. Assim, destacamos a morte da mãe de Juan Dos revelada não somente pela expressão do filho na cabina telefônica envidraçada, mas pela sua visão “telepática” da velha em frente à cabina, até desaparecer na neve; os primeiros planos dos filhos do exílio, rostos fixando a objetiva; o seqüestro do pai da adolescente filmado do ponto-de-vista do carro da vitima em plena rua do centro de Buenos Aires, com um dos seqüestradores, já idoso, de arma na mão. Toda a rápida cena é ampliada com o recurso do som, quando então as imagens silenciosas parecem tornar realidade a ficção e a ficção realidade.




Igualmente, a chegada e saída dos personagens pelas escadas rolantes do aeroporto de Paris, tetos revestidos de espelhos, “alçapões lúdicos de vertigem” (na imagem de Walmir Ayalla), os papéis jogados em profusão do topo das escadas em espiral, Gardel emergindo das sombras na noite brumosa (as imagens da chegada do carro antigo sugerem expectativa de seqüestro, mas aí estamos na peça e quem dele salta é o “zorzal criollo”) ou de repente surgindo ao lado de San Martin para reproduzir “Volver”, tango de sucesso do próprio Gardel e palavra de especial significado para os portenhos.

Assinalem-se, ainda, a movimentada minisseqüência com os seqüestradores perseguindo a jovem estudante, congelando-se a imagem antes de a vermos lançada do alto com os vitrais do centro George Pompidou vistos em “contre-plongeé”, e as seqüências coreográficas não só do grupo mas também dos dois casais de dançarinos de tango. As imagens intermitentes dos manequins presentes em várias cenas, um deles com improvisadas asas girando no teto, têm valor ao mesmo tempo intrínseco e simbólico. A fotografia de Felix Monti, um complexo de tonalidades azul-cinza, dá ao conjunto do filme uma qualidade cenográfica das mais inspiradas, notadamente na já mencionada visita a Boulogne-sur-Mer, onde o alinhamento das três figuras – o velho professor, a mãe e a filha – cria composição de rara beleza plástica. A espaços, a cor entra mais viva, mais solar, porém o predomínio do azul-cinza para indicar o tempo-espaço da peça, quase um metateatro, parece fundir os dois planos: representação teatral e vida.

A direção de elenco corresponde plenamente às solicitações do drama vivido pelos personagens, cabendo destacar Marie Laforet, a quem não víamos praticamente desde “La Fille aux Yeux d’Or”, de Jean-Gabriel Albicocco. Basta lembar aqui sua expressão de desânimo na cena reveladora de sua nostalgia de Buenos Aires e de seu desejo intenso de voltar de qualquer maneira ou de altivez na festa de fim-de-ano, quando enfrenta funcionários da embaixada argentina em Paris, obviamente favoráveis ao regime. Miguel Angel Sola deixa-nos sua marca de ator, notadamente na já citada cena da despedida, bem assim na visão da mãe, ao mesmo tempo viva e morta. Georges Wilson, Phillipipe Leotard e a hoje madura e ainda bela Marina Vlady, a “enfant gaté” dos anos 60, de resto todo o elenco de apoio, merece encômios. Quanto à música e os instrumentos de artistas da estatura de Piazzolla, Cadicamo, Pugliese, Discépolo e naturalmente a voz do grande Gardel contribuem significativamente para valorizar a trilha sonora do filme, plena de adequados efeitos acústicos.

Uma palavra final sobre Fernando Solanas, este cineasta instigante, em cuja filmografia estão o documentário “La Hora de Los Hornos”, “Los Hijos de Martin Fierro” e “Perón, la Revolución Justicialista”. Alem de roteirista, produtor e diretor cinematográfico, Solanas também é músico, tendo composto dois dos belos tangos da fita, um deles “Solo”, cantado por Roberto Goyeneche. O trabalho de Solanas por trás das câmaras neste “Tangos Exílios de Gardel” consagra-o de vez como “regisseur” moderno e atento às inquietações do tempo. O cinema argentino não nasceu ontem, evidentemente, como já se disse tantas vezes. De Leopoldo Torre Nilsson de “Piel de Verano” a Solanas de “Tangos” há muita sedimentação e busca de novas formas de expressão para a dinâmica do filme. “Tangos” é prova cabal desse amadurecimento artístico. Um filme imperdível.
LGML (1985)










































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