terça-feira, 6 de outubro de 2009

AGNÈS VARDA EM FORTALEZA

LG e Agnès Varda : encontro em Fortaleza

Neste ano da França no Brasil, comemorativo da influência desse país amigo em nossas manifestações artístico-culturais, tivemos um fenomenal “Circle de Soleil” e uma Mostra do Cinema Francês no qual atuam cinco cineastas estreantes. Segundo informações veiculadas pela Internet, teremos agora, em meados deste setembro, omitidos naturalmente outros registros pertinentes, a presença de Agnès Varda, mestra de clássicos modernos pouco conhecida de muitos cinéfilos, apesar de ser considerada uma das mais destacadas realizadoras francesas.
Sempre atenta aos desafios impostos pelas ondas de renovação, uma das quais — e a mais importante — provocada pela Nouvelle Vague, e a outros desdobramentos técnico-temáticos, a estada em Fortaleza de Agnès Varda é como um presente raro e inesperado. Confiamos em poder ver ou rever na telona, trazidos por sua presença, alguns dos seus filmes mais importantes, e naturalmente ouvi-la do alto de sua experiência e lucidez, saúde e disposição dos seus 80 anos bem vividos, sobre como ela vê a crise do cinema, o futuro do filme digitalizado e a revolução tridimensional do AVATAR de James (“Titanic”) Cameron.
Quem é Agnès Varda
Nascida em Bruxelas, em 30 de maio de 1928, de pais greco-franceses, Agnès cresceu em Paris, estudou na Sorbonne e na Ecôle du Louvre. De início, quis ser curadora de museu, depois se voltou para a 8ª Arte, a fotografia, e foi seu trabalho eficiente como profissional contratada pelo “Theâtre National Populaire” o incentivo capaz de levá-la a interessar-se pelo teatro e logo pelo cinema. Embora aos 20 e poucos anos Agnès só tenha visto alguns filmes e ainda não compreendesse bem o alcance e as possibilidades da arte das imagens em movimento, ela ousou lançar-se na realização do seu primeiro longa, “La Pointe Courte” (1954), editado por Alain Resnais, e seu primeiro curta, “O Saisons, O Chateaux” (1956), seguindo-se-lhes “L’Opéra Mouffe” e “Du Côté de la Côte” (ambos de 1958), “La Cocotte d’Azur” (1959), “Salut les Cubains” (1963), “Elsa la Rose” (1967), “Uncle Janco” e “Black Panthers” (ambos de 1968), e “Daguerréotypes” (1975).
Firmando-se como curta-metragista, Agnès partiu de vez para a realização de longas-metragens. Depois do citado “La Pointe Courte” vieram “Cléo de 5 à 7” (1962) e “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur, 1965), “As Criaturas” (Les Créatures, 1966), e “Loin du Vietnam”, co-direção de Resnais (1967), quando a cineasta caiu numa certa obscuridade diante das produções de Jacques Demy, seu marido. Retornou aos curtas, filmando com várias bitolas (16mm, Super-8, Video Digital), daí seu “Réponse de Femmes” (1975), bem como o fracasso bilhetérico de “Duas Mulheres, Dois Destinos” “L’Une Chant, l’Autre pas” (1976), Logo vieram “Quelques Femmes Bulles” (média-metragem de 1977), os documentários “Mur, Murs” (1980), “Documenteur” (1981) e “Ulysse” (1982). Fez 170 imagens de dois minutos ainda em 1982 e em 1984 realizou “Les Dites Cariatides”.
Revezando-se entre filmes de ficção e documentários, Agnès logrou projetar-se numa carreira plena de coerência e criatividade no trato das imagens, tendo ganho em Veneza o Leão de Ouro por “Os Rejeitados” (Sans Toi Ni Loi) (1985). Em 1986 filmou “T’as de Beaux Escaliers… tu Sais” (mais um curta) e em 1987 os documentários “Kung Fu Master”, com Jane Birkin, e “Jane B. pour Agnès V”, novamente com Jane e o truffautiano Jean-Pierre Léaud. Seus últimos filmes incluem “Jacquot de Nantes” (1991), “Les Demoiseles ont eu 25 ans”, com Catherine Deneuve (1992), “L’Univers de Jacques Demy” (documentário sobre seu marido, de 1993), “As Cento e uma Noites” (Les 100 et 1 Nuits), com Michael Piccoli e Marcello Mastroianni (1995).
O documentário “Les Glaneurs et la Glaneuse” (2000), sobre coletores de lixo e frutas, teve êxito sem precedentes no circuito de arte de Paris, onde alguns críticos o consideraram um belo filme para Agnès encerrar (?) sua carreira como cineasta. Não interessa saber, como dizia Jean-Pierre Melville, se o espectador apreciou ou não o filme. Interessa, sim, para o cinéfilo, verificar se o processo narrativo escolhido pelo seu autor-diretor é convincente, se logrou a completude da forma, se cada fragmento do filme se subordinou ao conjunto.
Duas Pequenas Obras-Primas
O espaço jornalístico não permite maiores considerações sobre uma filmografia rica como a de Agnès Varda. Por isso, destacamos, apenas duas pequenas jóias dessa esteta original, dona de uma consciência instintiva e olho vivo de fotógrafa sempre atenta para o detalhe visual, como escreveram Klein & Nolan. Firmou Agnès sua reputação logo no seu primeiro longa-metragem, “Cléo de 5 à 7” (1962), relato intimista de uma cantora pop, a qual vê o seu mundo com aguda percepção durante as duas horas vividas por ela em suspense, esperando o resultado de exames médicos capazes de sugerir algum problema grave. Temerosa, vagueia por Paris aguardando a hora de ouvir o prognóstico, enquanto a câmera enfoca impressivamente as imagens-rosto das quais falava François Truffaut em seus ensaios e conferências. Para vários analistas, Agnès foi num certo sentido uma precursora da Nouvelle Vague, donde sua admiração pelo cinema de Truffaut e Jean-Luc Godard e sua afinidade com os filmes e as idéias de Resnais, mestre dos grandes, responsável pela edição de “La Pointe Courte”, como lembrado anteriormente. De resto, Resnais também co-dirigiu um dos filmes de Agnès, “Loin du Vietnam”.
Esclareça-se, por oportuno, não ter Agnès Varda nenhuma ligação com a escritora Nathalie Sarraute (1902-99), expoente do “Nouveau Roman”, no qual pontificam nomes como os de Alain Robbe-Grillet, Michel Butor e Claude Simon. A referência nos fez lembrar uma de nossas apresentações de filmes no Centro Cultural Banco do Nordeste, quando nos indagaram sobre isso. Talvez porque Nathalie tenha escrito duas peças de teatro, “Le Silence” e “Le Mensonge”, ambas encenadas em 1967, ou porque alguns diálogos dos seus filmes se situam entre a conversação e a subconversação, onde as palavras de uns e os silêncios de outros traem seus pensamentos mais secretos. O domínio de Nathalie é o dos impulsos bruscos e fugidios, incontrolados, o dos tropismos, quando os personagens passam de um instante de ternura ao ódio, do abatimento à alegria,da euforia à depressão.
Quanto ao termo “tropismo”, pertinente ao “Nouveau Roman”, não há relação com os tropos ou figuras de linguagem, daí ter sido definido pelo lexicógrafo Harry Shaw como uma reação compulsiva a estímulos externos, aquelas idéias e emoções íntimas dos personagens, as quais não se revelam no monólogo interior nem são transmitidas por sensações. Segundo Shaw, os tropismos podem definir-se também como “as coisas que não chegam a ser ditas”, as mudanças verificadas duma forma vaga e passageira na consciência dos personagens, Na literatura de vanguarda, o tropismo é uma forma de subconversação. Há tempos não vemos filmes de Agnès, mas se não nos falha a memória parece não haver tropismos nos diálogos escritos e levados ao ecrã pela cineasta francesa.
Voltando à segunda pequena obra-prima de Agnès, “As Duas Faces da Felicidade” (Le Bonheur) (1965), da qual participam como intérpretes Jacques Drouot e Marie-France Boyer, diríamos ser um estudo irônico da felicidade, com mais elementos decorativos em relação ao restante dos filmes da diretora. Talvez, dizem, devido à influência de Jacques Demy. “Le Bonheur” traça a rotina de um jovem carpinteiro feliz com sua família, até encontrar uma amante capaz de ajudá-lo a vencer o maior inimigo dos casais: o tédio conjugal, o mesmismo da intimidade da vida a dois sob o mesmo teto. Quando sua mulher morre afogada, o viúvo se casa com a concubina. E tudo volta como dantes ao quartel de Abrantes, frase já repetida “ad nauseam”, mas sempre pronta a suprir algum hiato ou “lapsus memoriae”. “Le Bonheur” é uma fábula ambivalente, leve, boa de se ver, mas “um filme estiloso”, segundo alguns críticos.
Em 1968, recorde-se, Agnès visitou os EUA, onde dirigiu dois curtas e um longa-metragem consistentes com sua orientação esquerdista e revelando sua visão ambivalente, crítico-afeiçoada, do colosso norte-americano. Em 1985, Agnès conquistou aclamação internacional com seu filme “Sans Toi ni Loi/Vagabond”, editado por ela mesma. Trata-se de um pseudo-documentário altamente bem sucedido junto à crítica e às bilheterias. Ressalte-se, por fim, o fato de Agnès ter escrito o roteiro de todos os seus filmes. Estes, em suma, os registros julgados essenciais sobre a cineasta francesa em visita ao Brasil.