segunda-feira, 7 de setembro de 2009

HOMENAGEM PÓSTUMA A F. W. MURNAU, CINEASTA DE ESCOL QUASE ESQUECIDO


Prestamos hoje nosso tributo ao mestre alemão Friedrich Wilhelm Plumpe Murnau (1888-1931), mais conhecido pelos críticos e filmólogos e pela publicidade como F. W. Murnau (pronuncie-se /murnau/ mesmo, não é francês), quando faz exatamente 90 anos do seu primeiro filme, “O Menino Azul” (Der Knabe in Blau, 1919) e 80 da sua versão sonora e revista de “Nosferatu, o Vampiro” (Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens, 1929).

Vítima de desastre automobilístico nos EUA, início dos anos 30, para onde fora contratado a peso de muitos dólares, em razão da elevada qualidade fílmica de seu trabalho como cineasta, Murnau deixou-nos lições imorredouras de cinema em seu legado, alguns dos quais exemplares na sua simplicidade, na economia de efeitos, na sua expressividade e na sua força dramática. Neles se incluem a versão germânica de “O Médico e o Monstro” (Der Januskopf/Schrecken, 1920), baseada na obra de Robert Louis Stevenson; “O Castelo Assombrado” (Schloss Vogelöd, 1921), sugerido por contos de Edgar Allan Poe e Howard Phillips Lovecraft); “A Última Gargalhada” (Der Letze Mann, 1924), escrito por Carl Meyer; “Tartufo” (Tartüff, 1926), da peça homônima de Molière; “Aurora” (Sunrise, nos EUA, 1927), da novela de Herman Sudermann, e “Tabu” (Taboo, 1931), este co-dirigido e co-roteirizado pelo documentarista Robert Flaherty.

Mudo x Sonoro

Este preito a Murnau não decorre de nenhum saudosismo ou “parti pris” em favor do cinema mudo ao qual poucas vezes se referem os críticos e analistas, embora haja bons filmes tanto naquele (apesar das limitações técnicas da época) como no falado. Preferimos, é claro, o sonoro, não apenas pelos recursos decorrentes do seu aperfeiçoamento, como pela valorização do silêncio e dos tempos mortos. Quem estuda cinema ou exerce função crítica jornalística deve naturalmente ver e rever as películas de ambas as fases numa perspectiva dual, pois a era do som, na história do cinema, começou tradicionalmente em 1927, o ano de “O Cantor de Jazz”, com a revolução do “talkie”. No entanto, as tentativas de dar voz ao celulóides datam de muito antes. Em verdade, “The Jazz Singer” foi basicamente um filme silencioso com passagens desajeitadamente sincronizadas e várias frases de palavras pronunciadas, mas quando Al Jolson emitiu um apelo histórico, “Esperem, esperem, vocês ainda não ouviram nada” (Wait a minute, wait a minute, you ain’t heard nothing yet), a platéia levantou-se e aplaudiu. O filme rendeu o máximo nas bilheterias e, encorajada pelo sucesso, a Warners liberou seu primeiro filme falado, “Lights of New York” em 1928.

Com relutância, outros estúdios começaram sua mudança para os novos tempos e dentro de alguns meses o cinema mudo já era coisa do passado. Como relatam Kline & Nolan, o sistema Vitaphone, ao qual se devia o começo de tudo, caminhou rápido para o esquecimento. As imperfeições inerentes ao processo de sincronização via disco tornou esse e outros sistemas inconfiáveis e, para muitos estúdios, inaceitáveis. Dentro de poucos anos, como relatam os historiadores o processo de sincronização foi totalmente substituído pelo sistema do som no próprio celulóide.

Quem foi F. W. Murnau

Nascido em 1888 em Bielefeld, na Westfalia, filho de um comerciante de origem sueca, Murnau manifestou interesse pelo drama teatral desde garoto, quando encenava com seus irmãos minipeças para os amigos e às vezes até contavam com a presença de familiares adultos. Terminado o 2° grau, Murnau foi estudar História da Arte, tendo-se diplomado em Heidelberg e iniciado uma carreira de ator e depois de assistente do célebre Max Reinhardt (1873-1943), pseudônimo de Maximilian Goldman, diretor teatral de grande importância no tocante à direção de atores no palco e à própria concepção do espetáculo na ribalta.

A função de assistente de Reinhardt acabou levando Murnau a interessar-se pelo cinema e pelos processos narrativos da nova arte, aqui e ali se detendo para perscrutar e tentar compreender o significado daquelas imagens em movimento, o sentido dos cortes, o paralelismo de certas seqüências, quando dois lados das ações eram mostrados, etc. Quando começou a firmar-se, Murnau foi convocado para a Grande Guerra (1914-18) aos 26 anos. Como tirara o brevê de piloto, participou da esquadrilha do ousado “barão vermelho”, o ás von Richthofen e escapou da morte em combate, quando se perdeu na neblina e teve de aterrissar em território neutro, na Suíça. Com o apoio do embaixador alemão em Berna, Murnau passou a dirigir peças e a estudar mais detalhadamente as diferenças entre teatro e cinema.

A influência de Reinhardt sobre Murnau, de quem o cineasta foi aluno, ator e depois assistente, restringiu-se à organização do espetáculo teatral como um todo. Isso porque a ligação de Reinhardt com o cinema foi mínima, pois o dramaturgo e diretor alemão só emigrou para os EUA em 1933, quando Murnau já havia morrido, e realizou apenas quatro filmes, um dos quais o elogiado “Sonho de uma Noite de Verão” (A Midsummers Night’s Dream, 1935), com apoio em Shakespeare, do qual foi co-diretor com William Dieterle, outro mestre germânico “emigre”. Como se recordará o cinéfilo, Dieterle foi o realizador de filmes como “Ver-te-ei Outra Vez” (I’ll Be Seeing You, 1944), “O Retrato de Jennie” (The Portrait of Jennie, 1946), “Cidade Negra” (Dark City, 1950) e “Tributo de Sangue” (The Turnning Point, 1952), dentre outros. Em resumo, a influência de Reinhard de quem o cineasta foi aluno,\tor e depois assistente, restringiu-se á organização do espetáculo teatral como um todo. Isso porque a ligação de Reinhardt com o cinema foi mínima,pois o dramaturgo e diretor alemão só emigrou para os EUA em 1933, quando Murnau já havia morrido,e realizou apenas quatro filmes, um dos quais o elogiado ‘Sonho de uma Noite de Verão’ (A Midsummer Night’s Dream,1935 com apoio em Shaskespeare, do qual foi diretor com WIilliam Dieterle, outro mestre germânico ‘’emigré’’. Como se recordará o cinéfilo leitor, Dieterle foi o realizador de filmes como ‘’Ver-te-ei Outra Vez’’(I’ll Be Seeing You’’,1944) e “Tributo de Sangue’ (The Turning Point,1952), dentre outros..Em resumo,a influência de Reinhardt se fez na iluminação dos cenários, na articulação de bastidores e na condução dos atores, e só foi significativa no tocante ao desenvolvimento do teatro americano.

Finda a guerra, Murnau voltou à Alemanha e iniciou sua carreira como “metteur-en-scène” dirigindo o citado “O Menino Azul” no qual já revelava afinidades com a temática do macabro e do fantástico. Em “Satanás” (Satanas) focalizava um anjo rebelde em viagem de retorno ao paraíso celeste (algo no qual Murnau jamais acreditou). Sua projeção como cineasta se deu com o referido “Nosferatu” ou “Lobisomem”, filme de impacto no mundo do cinema, adaptado do célebre romance do autor irlandês Bram Stoker. Houve problemas para transformá-lo em filme, pois os herdeiros de Stoker lhe recusaram os direitos autorais. Murnau então levou à tela a mesma história, com pequenos ajustes e apenas alterando o nome para “Nosferatu” (o não-esférico, segundo o romeno Alexandru Segal). O impacto da adaptação do romance gótico projetou Murnau na Europa, enquanto os ecos da repercussão começavam a chegar aos EUA.

Firma-se o cineasta

A segunda obra-prima, também mencionada anteriormente, firmou a reputação de Murnau como um dos cineastas mais proeminentes e inventivos, tendo feito predominar de tal forma as imagens visuais a ponto de dispensar os letreiros característicos do cinema mudo, sem sacrificar a clareza do processo narrativo ou o significado das ações.

Daí sua orientação percuciente em relação ao uso dinâmico da máquina de filmar, a cargo do excepcional fotógrafo Karl Freund (1890-1969), conhecido pelos seus ousados movimentos de câmara e efeitos de iluminação, não só em “A Última Gargalhada” mas também no “Metrópolis” de Fritz Lang (1927), os quais lhe deram a alcunha de “O Giotto da tela”. Em 1926 Freund co-produziu, co-roteirizou e fotografou a obra-prima de Walter Ruttmann, “Berlim, A Sinfonia de uma Cidade” (Berlin - Die Symphonie einer Grosstadt), e em 1929 emigrou para os EUA, onde continuou criando belas imagens nos filmes hollywoodianos.

Em 1937 ganhou o Oscar pela fotografia de “Terra dos Deuses” (The Good Earth), de Sidney Franklin. No início dos anos 30, Freund demonstrou talento inegável como diretor, segundo registraram os críticos de ontem e de hoje, particularmente em filmes como “A Múmia” (The Mummy, 1932), “Luar e Melodia” (Moonlight and Melody, 1933), “Sob Falsas Bandeiras” (Madame Spy, 1934) e “Dr.Gogol, o Médico Louco” (Mad Love, 1935), dentre outros.

Em suma, a proficiência técnico-criativa de Murnau foi um marco virtual na história do cinema, segundo Klein & Nolan, em rigor o começo de uma tradição de “mise-en-scène” a ser desenvolvida depois por grandes mestres do cinema como Welles, (Max) Ophuls, Kubrick, Resnais, Truffaut, Bergman, Fassbinder, Schlondorff, Kurosawa, Bertolucci, Antonioni e alguns outros. Foi, aliás, com base na força visual de “A Última Gargalhada” o convite irrecusável para Murnau ir atuar em Hollywood, onde estreou com “Aurora” (Sunrise, 1927), “o último pique do cinema mudo alemão”, louvado por críticos franceses dos “Cahiers du Cinéma” como “um dos maiores filmes de todos os tempos”. Tanto “Nosferatu” como “A Última Gargalhada” e “Aurora”, acresça-se, tiveram seu final alterado respectivamente por produtores alemães e americanos, interessados em levar aos espectadores um desfecho otimista... Essa estupidez, segundo Alvin Mendelson e outros analistas, pode ter minimizado o impacto visual dos três filmes, mas não lhes reduziu o valor intrínseco como cinema.

“Aurora” ecoou a preocupação pela integridade espácio-temporal do filme e pela perspectiva inerentemente pessimista e o senso da inevitável destruição do homem característico dos celulóides alemães de Murnau.

Feito com base em “script” do seu compatriota Carl Meyer, colaborador do cineasta desde os primeiros tempos, e com apoio nos recursos financeiros de um grande estúdio americano, “Aurora” fundiu as tradições da “Universum Film Aktien Gesellschaft” (UFA) e de Hollywood numa obra de grande beleza lírica, a qual sobrevive ao final artificial imposto pelo código moral da indústria até então vigente. O crítico Rubens Ewald Filho, autor de valioso dicionário de realizadores, lembrou um fato interessante em relação a “Aurora”. Para ele, além dos ruídos e trilha musical sincronizados, o belíssimo (o superlativo é dele) filme de Murnau trazia diálogos audíveis e barulho de veículos numa cena de rua e estes tornam “Aurora”, de fato, o primeiro filme realmente falado da História do Cinema em vez de “O Cantor de Jazz”. Tem razão o REF, só lhe falta o reconhecimento dos produtores, se ainda vivos, e dos críticos atentos.
Antecedentes de “Drácula”

“Drácula” (Dracula, 1931), de Tod Browning, foi considerado o maior êxito bilhetérico da Universal Pictures, bem à frente de “Nada de Novo no Front” (All Quiet on the Western Front, 1930), de Lewis Milestone, de “Frankenstein” (Frankenstein, 1931) e de “O Homem Invisível” (The Invisible Man, 1933), ambos de James Whale. “Drácula” também se tornou peça de sucesso encenada por Hamilton Deane e John Barlderston. Além disso, o filme firmou uma tendência para as películas de horror a serem exploradas pelos estúdios hollywoodianos durante toda a década.

Embora o diretor Browning tenha buscado primeiro o veterano Lon Chaney para o papel do Conde da Transilvânia, o premiado intérprete de “O Fantasma da Ópera” (The Phantom of the Opera, 1925), de Rupert Julian, vacilou muito na resposta e alguns dias depois faleceu. Tornou-se possível então para o ator húngaro Bela Lugosi, a quem coube abrir a peça na Broadway, em 1927, recriar seu desempenho hipnótico no filme. Há dúvidas dos críticos e produtores sobre se o Drácula levado ao ecrã teria tido o mesmo êxito sem a formidável presença de Lugosi, pois o intérprete magiar dominava tão completamente as ações com sua presença em cena a ponto de deixar vazar no texto o miasma do mal avassalador, enquanto se ouvia com música de fundo o “Lago do Cisne” de Tchaikovsky.

Versão espanhola também foi levada à tela anos antes com direção de George Medford, mas coube a Murnau, como frisamos, filmar em 1922 uma versão impressionante do romance de Bram Stoker sob o título de “Nosferatu - Eine Symphonie des Grauens” (Nosferatu, uma Sinfonia do Horror), com o ator Max Schreck no papel-chave, vista pela crítica da época como a melhor das adaptações feitas para o cinema. A Hammer Films inglesa também refilmou “Drácula” em 1958 com Christopher Lee como o Conde, aliás também atuante nesse papel em vários outros filmes entre 1958 e 1972, incluindo-se até uma versão teuto-espanhola de 1971 e outra da Universal em 1979, com Frank Langella como Drácula.

De onde veio o Conde Drácula

O Conde Drácula teria nascido para a literatura, o teatro e o cinema de uma noitada orgíaca (vinho, ópio e muitas loucuras mais) organizada pelo poeta Lord Byron em 16 de junho de 1816, conforme demonstrado pelo cineasta Ken Russell no filme “Gothic”, produção inglesa de 1986. Esse acontecimento real ocorreu no castelo de Byron na Suíça, do qual também participaram o vate Percy Shelley, sua futura mulher, Mary Goldwin, sua meio-irmã Claire e o médico John Polidori. Desse período surgiram duas obras-mestras da literatura de horror: “Frankenstein”, de Mary Shelley, de 1818 (levado ao cinema várias vezes), e “O Vampiro”, de Polidori. Este inspirou a criação do personagem Drácula (Drakul, o demônio) do novelista irlandês Bram Stoker, vindo de Vlad Tepes (Vlad, o empalador), príncipe da Wallachia, reconhecido e temido por sua crueldade.

Stoker, recordar-se-á quem leu o livro, situou sua sinistra obra romanesca na Transilvânia, vasta região planaltina na Romênia, com a qual vampiros e lobisomens têm sido tradicionalmente associados. Houve quem visse no vampiro de Drácula uma metáfora da inconformidade ou inaceitação da morte por parte do homem, daí a busca da imortalidade e a criação de uma entidade lendária capaz de sair da sepultura à noite para sugar o sangue dos vivos e sobreviver. Não causam espanto as dezenas de edições do livro de Stoker e as várias versões cinematográficas, todas elas sugestivas de um certo fascínio exercido pela figura de Drácula, a quem o cineasta Murnau deu o nome de Nosferatu por não ter conseguido comprar os direitos autorais junto aos herdeiros, como salientamos anteriormente.

Murnau fez ainda dois filmes para a Fox e em seguida entrou numa associação com o renomado documentarista Robert Flaherty com o qual realizaram juntos o filme “Tabu” (Taboo, 1930), rodado nos mares do Sul. Quando dois diretores de renome e prestígio e marcadamente idealistas não concordam com determinada abordagem e estilo, a solução é um deles sair de cena. Murnau comprou o quinhão de Flaherty no filme e ele mesmo o completou. “Tabu” gira em torno da vida de um jovem pescador de pérolas do Taiti e bem poderia ter deixado de ser um filme apenas interessante. Murnau utilizou o enredo somente para reunir os elementos de um soberbo “travelogue”, mas os desentendimentos entre os objetivos dos dois diretores, facilmente percebíveis, como expressou o Halliwell Guide, impediram maiores aspirações de Murnau. Ainda assim se pode encontrar em “Tabu” aquela constante nostalgia da natureza em ilhas tranqüilas onde o tempo não parece passar.

A realização de “A Última Gargalhada” já avaliara Murnau como um dos maiores cineastas do seu tempo, conceito comprovado com a citada versão de “Nosferatu”. Não admira os seus outros êxitos em “Aurora”, “Tartufo”, “Fausto” e de certa forma até mesmo em “Tabu”. Como registra o crítico Denis Marion, citado por Jean Tulard em seu Dicionário de Cineastas, Murnau foi um dos poucos realizadores capazes de neutralizar as influências do teatro e da literatura no cinema e de comprová-lo ao criar novos meios de valorização da expressão visual. “Nosferatu”, aliás, rompeu com os cenários estilizados de Robert Wiene em “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919) e Murnau preferiu filmar as ações do filme em cenários naturais na sua adaptação do “Drácula” de Stoker.
Filme admirável, sem dúvida, talvez o mais belo do cinema mudo, conforme ainda Tulard, com seu castelo assombrado, o porto onde desembarcam os ratos (imagens premonitórias do advento de Hitler e seus sicários nazistas, como já se disse), a cidadezinha onde atua o próprio monstro interpretado de forma brilhante por Max Schreck, com sua figura esquálida, cabeça raspada, orelhas pontiagudas, olhos cavernosos e unhas afiadas, um Nosferatu, enfim, inesquecível. Além da capacidade de chocar, o conto sobrenatural levado ao cinema constituiu naturalmente um tratado de poesia fílmica e de rara beleza plástica, pois houve um cineasta capaz de levá-lo a isso e de defender o cinema como arte autônoma.

O Último Filme

“Tabu”, por isso ou por aquilo, não é o melhor de Murnau, mas é um filme caracteristicamente seu, apesar dos exóticos enfeites. No mundo interior dos habitantes da ilha, os conflitos psicológicos giram mais em torno de suas circunvizinhanças. Apesar disso, “Tabu” foi um sucesso comercial marcante. Mas na semana anterior ao seu lançamento, 11 de março de 1931, Murnau morreu tragicamente de um desastre automobilístico, aos 42 anos, e pode-se especular sobre se estivesse vivo a direção de sua brilhante carreira não teria levado a qualidade dos filmes americanos a outras alturas, pois estes mal tinham aprendido a falar naquele então. Dúbio consolo para a equipe de Murnau foi saber do Oscar de Melhor Fotografia concedido pela Academia para Floyd Crosby. Nada é para sempre.

Apreciaríamos concluir estas notas com uma observação concernente à versão revista e sonorizada do “Nosferatu” de 1929. Quem teve a chance de assistir a ele no cineclube de uma das universidade da Califórnia, saiu embatucado da exibição. Foi o caso do cinéfilo Paulo de Freitas Marques, autor de texto distribuído por ocasião da Jornada de Cineclubes à qual comparecemos em Belo Horizonte, 1960, como representante do CCF. Marques ficou estupefacto com a visão de cinema demonstrada por Murnau num filme de horror sem maiores pretensões de Oscar ou de sucesso de bilheteria, exceto a de prender a atenção do espectador e fazê-lo meditar um pouco sobre as imensas possibilidades do cinema como expressão artística.

“NOSFERATU”: Horror ou Terror?

Os cinéfilos bem informados não esquecem os gêneros no cinema, aliás são mais fáceis de reconhecer e menos de defini-los com precisão, quando se trata de distinguir entre horror e terror. Como lembra o filmólogo Don Allen em seu valioso livro “Films & Filmakers”, de 1979, prefaciado por François Truffaut, os críticos e historiadores estabeleceram doze gêneros, outros quatorze. São eles: o filme de faroeste, a comédia (mais leve), comédia dramática, a tragédia, a tragicomédia, o romance, o filme de guerra, o musical, o “thriller” (filme de impacto tensional e emocional pontuado pelo suspense), o filme de animação, o documentário (e o semidocumentário), o filme político, o de horror/terror e o de ficção científica.

Quanto à distinção entre filme de horror e terror, nem sempre tem sido fácil um acordo entre analistas. “Nosferatu” já foi incluído como filme de horror e às vezes como terror. Para os dicionaristas Jacques Aumont e Michel Marie, terror é o grau dos “afetos negativos” e se caracteriza por um estado de grande pavor ou apreensão, enquanto o horror ficaria restrito aos Frankensteins, lobisomens e outros monstros de ficção, alienígenas ou não. Os de terror incluiriam “Jogos Mortais”, “Halloween”, “O Massacre da Serra Elétrica”, etc., nos quais a barbárie predomina. Alvin Mendelson acha irrelevante a distinção, pois às vezes um filme de terror entra na área de confluência de um drama de horror e aí ficamos diante de uma interação entre dois sinônimos de difícil separação.

Sobre o Expressionismo Alemão

Quando se escreve sobre Murnau, Lang, Wegener, Paul Leni e outros mestres, logo voltam as atenções dos cinéfilos para o Expressionismo Alemão, definido pelos enciclopedistas Klein & Nolan como um estilo de arte desenvolvido no início do século XX e transformado em movimento influente na pintura germânica, na escultura, na literatura, no teatro e, finalmente, no cinema. O Expressionismo, por sua vez, foi influenciado pelo renomado escritor sueco Auguste Strindberg (1849-1912), mais conhecido pelas suas peças teatrais de impacto como “The Father” (1887) e “Miss Julie” (1888), esta levada ao cinema duas vezes, a primeira em 1950, dirigida pelo mestre sueco Alf Sjoberg (1903-80), em verdade uma adaptação magistral de um drama trágico sobre um caso de amor entre uma jovem aristocrática e um plebeu, enquanto este pratica jogos sexuais com ela. Para Leonard Maltin, o filme foi marco do cinema sueco. A segunda versão de 1999, produção anglo-americana, com o cineasta britânico Mike Figgis na direção, tem transposição coerente, interessante, filmada com vigor mas extremamente lúgubre.

O Expressionismo, como alguns especialistas o vêem, busca apresentar a vida interior do homem e menos sua aparência externa. Outros críticos o entendem como uma realidade intensificada com freqüência pela utilização de signos, de personagens estereotipados e estilização para expressar objetivamente a experiência interior de cada um deles, seus conflitos, angústias e inquietações. Nos anos imediatamente posteriores à Grande Guerra (1914-18), o Expressionismo alemão se caracterizou pela extrema estilização do décor (o equipamento móvel de uma casa, sala, cena, etc.), bem como pela interpretação, iluminação e ângulos de câmara.

Os cenários, grandemente distorcidos e bastante abstratos, eram tão expressivos quanto os atores, quando não mais. Para assegurar completo contraste e livre manipulação da luz e do trabalho de câmara, os filmes expressionistas eram sempre rodados em estúdios, nunca fora deles, nem mesmo quando as cenas exigiam filmagens externas. A iluminação era deliberadamente artificial, enfatizando sombras profundas e nítidos contrastes. As angulações e as imagens-movimento eram escolhidas a dedo para enfatizar o fantástico e o grotesco, e os atores externalizavam suas emoções ao extremo.

Alguns dos melhores e mais intrigantes filmes do cinema mudo vieram do movimento expressionista germânico. O exemplo fundamental é “Das Kabintett des Doktor Caligari” (1919), de Robert Wiene. Outros filmes-chave na mesma veia estranha, fantástica, incluem a 3ª versão de “The Golem” (1920) de Paul Weneger, “Der müde Tod” (Between Worlds, 1921), de Fritz Lang, “Nosferatu” (versão muda, de 1922), “Dr. Mabuse, o Jogador” (Doktor Mabuse, der Spieler), também de 1922, e “Die Nibelungen” (1924), estes dois de Lang, e “Museu de Cera” (Das Wachsfigurenkabinett), de Paul Leni (1924). Como se vê, Murnau, Lang, Leni, Wegener, Wiene foram os principais cineastas do movimento.

Entre os escritores de filmes, Carl Mayer foi o mais influente, com Thea von Harbon como discípula capaz. Os “cinematographers” do topo eram Karl Freund (depois levado para os EUA e promovido a diretor) e Fritz Wagner. Os criadores de cenários incluíam Hermann Warn, Walter Röhrig, Robert Herlth e Otto Hunte. Como se observa, uma plêiade de artistas e técnicos da maior competência e cuja influência nos padrões cinematográficos dos anos 20 e 30 parecem perdurar de forma duradoura em muitos filmes produzidos nas décadas de 40 e 50, no tocante ao ritmo e iluminação.

Como definir o Expressionismo hoje? Alguns críticos, em face do livro de Lotte Eisner (L’Écran Demoniaque), de 1952, chegaram ao exagero de declarar expressionistas até mesmo o filme policial americano dos anos 40 por causa da iluminação “low key”, ou seja, o efeito de manter uma cena ou a extensão tonal de um ou mais personagens predominantemente na extremidade escura da escala cinza. A iluminação em “low key” utiliza sombras profundas para produzir uma atmosfera densa e efeitos mistériosos e dramáticos. Esta a definição de Kline & Nolan. Harry J. Wild, fotógrafo de Edward Dmytryk em “Até à Vista, Querida” (Murder, my Sweet, 1944) e “Rancor” (Crossfire, 1947), define “low key” como técnica de iluminação com luzes escassas e contrastadas, utilizadas amiúde para sugerir contracampo oculto e atmosferas sombrias, como, por exemplo, em filmes de crimes ou terror.


Opiniões

“Melodrama lírico soberbamente dirigido, ‘Aurora’ (Sunrise) é considerado uma das melhores produções dos anos 20. A frase de abertura dos créditos adverte o espectador: ‘Esta história de um homem e sua mulher não é de parte alguma, é de toda parte, e você poderá ouvi-la em qualquer lugar e a qualquer tempo’. Pleno de intensa emoção com a qual Murnau corporifica uma sutileza subjacente, exótica de muitas maneiras, pois combina a obscuridade russa com o brilho de Berlim”.
- Mordaunt Hall, do NY Times, in Halliwell Guide, 2004

“O drama do velho porteiro do hotel relegado à posição de lavador de banheiros em ‘A Última Gargalhada’ (Der Letzte Mann) traz uma reviravolta no final, quando ele herda uma fortuna e consegue sua vingança. Irônica anedota tornada importante pelo virtual abandono dos letreiros e adoção irrestrita, por parte de Murnau, da técnica chamada ‘Kammerspiel’ (jogo de câmara), com a qual consegue criar efeitos dramáticos impressionantes”.
- Bob Warren, in “Halliwell Guide”, 2004

“Filme clássico narrado inteiramente pela câmara, ‘A Última Gargalhada’ traz Emil Jannings (de ‘O Anjo Azul’, de Joseph von Sternberg) no papel do orgulhoso porteiro despedido de sua função após muitos anos de dedicação ao seu emprego. A direção de Murnau detalha a dolorosa humilhação do velho servidor fotografada com brilhantismo pela câmara do mestre Karl Freund ao longo dos seus 88min de projeção”.
- Leonard Maltin, in his Movie Guide, 2009

“Profissional de estirpe, atento às mudanças de seu tempo, Murnau deixou-nos rico legado de imagens, tornando-se até mesmo criativo quando soube dotar os signos visuais de significados, sem recorrer aos incômodos letreiros do cinema mudo, os quais interrompem os elos de continuidade de instante a instante”.
- Jean Giraud in “Film als Kunst”, 1948

“Murnau esteve à frente de seu tempo, até mesmo quando, juntamente com sua equipe técnica, conseguiu sonorizar em 1929, ainda nos primórdios do cinema falado, sua versão de 1922 de ‘Nosferatu’, filme irreprochável. Uma pena tenha sido vítima de trágico acidente automobilístico, quando ainda poderia fazer muito pelo engrandecimento do cinema, essa arte tão pouco compreendida”.
- James Whale, in entrevista ao “Sunday Times”, 1937


Fique por Dentro

FOCO - O ponto no qual uma imagem obtém o máximo de definição em relação à lente da câmara. Do ponto-de-vista óptico, é o ponto de convergência ou divergência dos raios de luz sobre a lente. De uma imagem nítida e bem definida, diz-se estar em “foco”, em oposição à imagem pouco clara ou indistinta, mal definida, quando se diz “fora de foco”. Para assegurar uma imagem em foco, a distância da câmara para o objeto deve ser medida e a lente ajustada nessa conformidade.
Distância Focal - A distância entre o centro de uma lente e o ponto sobre a superfície da película onde a imagem fotografada, posta no infinito, é trazida para o FOCO nítido. Essa distância é dada em polegadas ou centímetros e normalmente gravada na lente com o prefixo f (i.e.,f = 90mm) e não deve ser confundida com o f=parada (stop). Uma lente de distância focal curta dispõe de ângulo mais amplo de visão, enquanto uma distância focal longa, ou telefoto, tem o ângulo de visão restrito.

PARA SABER MAIS

1. “Longman’s English Larousse”, editado por O.C. Watson, Longmans, Green and Co. Ltd. Harlow & London, 1968;
2. “Le Cinéma selon François Truffaut”, Flammarion, org. de A. Gillain, Paris, 1988;
3. “Nosfesratu”, de Michel Bouvier, Jean-Louis Leutrat, Ganimard, Paris, 1987;
4. “The Oxford Reference Dictionary” (both dictionary & encyclopedia), Oxford University Press, New York, NY, 1986;
5. “The Universal Story”, de Clive Hirschorn published in USA, Octopus Books Ltd., 1986;
6. “Estética del Cine”, de Nino Ghelli, Ed. Rialp, Madrid, 1959;
7. “Movie Awards”, de Tom Neill, Penguin Group, USA Inc., 2003;
8. “Halliwell’s Film Guide”, de Leslie Halliwell, HarpersCollins Publishers & John Walker, New York, NY, 2004;
9. “Reading the Screen - An Introduction to Film Studies”, de John Izod, Longman York Press, Harlow, Essex, 1984;
10. “Compreensão de Cinema”, de Maurício Rittner, Coleção Buriti, Av. São João 822, São Paulo, Editora S.A. (SP), 1965;
11. “A Linguagem Cinematográfica”, de Marcel Martin, Ed. Brasiliense S.A. São Paulo (SP), 1ª reimpressão, 2003;
12. “El Cine en el Problema del Arte”, Ed. Losango, Buenos Aires, 1956; e
13. “The Film Encyclopedia”, de Fred Klein & Ronald Dean Nolan, HarpersCollins Publishers Inc., New York, NY, 1998.

Curiosidades

“A Sombra do Vampiro” (Shadow of the Vampire, 2000), dirigido pelo cineasta nova-iorquino Elias Merhiger (1964- ), tem John Malkovitch no papel do exigente diretor F. W. Murnau e Willen Dafoe no do inesquecível Nosferatu. O filme, em cores, tentativa interessante para recriar a filmagem da filmagem do “Nosferatu” de 1922, foi elogiado por alguns críticos, não só pela recriação da ambiência psicofísica da época e sua expressividade motovisual, mas também pela interpretação memorável de Willen Dafoe como Max Schreck, indicado aliás para o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (o trabalho de Melhor Maquiagem também ganhou uma indicação), não lhe ficando atrás Malkovitch no papel de Murnau. Um tento para o discreto Merhige, mais conhecido pelo filme “Begotten” (sem título em português, mas significando “Procriado”, “Gerado”, “Criado”, etc.). A publicidade do filme fantasiou os bastidores do “Nosferatu” de Murnau, como se o ator Max Schreck, da primeira versão, fosse de fato a encarnação de um vampiro...