domingo, 16 de maio de 2010

(Sir) Carol Reed, Mestre Esquecido

Diretor cinematográfico de primeira linha nascido em Londres, Carol Reed (1906-76) recebeu do governo inglês, em 1952, o título honorífico de Sir do Império pelos serviços relevantes prestados ao seu país, ao projetá-lo para o mundo contemporâneo via imagens expressivas do cinema, antes, durante e depois da II Guerra Mundial. 60 anos nos separam do lançamento na capital inglesa de uma de suas obras-primas, “O 3° Homem” (The Third Man), para uns um filme wellesiano, para outros o fruto opimo de um aprendiz do mestre de Wisconsin, para outros ainda uma simbiose entre um cineasta de gênio e seu pupilo e admirador. Ao dirigir Welles como ator, Reed selou definitivamente sua carreira. Por tudo isso, entendemos justa e esclarecedora esta homenagem do Blog do LG a Reed, mormente quando alguns dos seus filmes se encontram em DVD à disposição dos cinéfilos nas distribuidoras.

Ainda adolescente, segundo vimos em nossos arquivos, Reed pretendeu tornar-se um fazendeiro ou agricultor, decorrência provável de suas vivências de garoto e adolescente no rico ambiente rural de sua família. Por isso mesmo, depois de graduar-se pela King’s School em Canterbury, seus pais o enviaram para os EUA para cumprir um treinamento em serviço numa grande propriedade rural. Mas alguma coisa não se encaixava bem com a visão do jovem Reed, pois havia nele, segundo registram os amigos de ginásio, um certo fascínio pelo teatro e isso o fez retornar a Londres, seis meses depois, para iniciar sua carreira como ator. Sua família deve ter-se surpreendido com a decisão, difícil saber como agiram seus pais em face desse desvio de caráter profissional.

Do Campo para o Palco

A estréia de Reed como ator se deu em Londres com a trupe de Sybil Thorndike (1882-1976), proeminente atriz do palco londrino e de alguns filmes memoráveis. O ano era 1924 e depois de uma sucessão de papéis menores, ricos em aprendizagem, Reed começou a trabalhar com Edgar Wallace, escritor de novelas de mistério, como orientador da adaptação de suas histórias para o palco. Em 1927, Reed tornou-se diretor de cena e chamou atenção pela sua habilidade em reduzir o supérfluo das falas e aproveitar melhor o jogo de luzes, quando o desfecho da peça estava próximo. Essa compreensão maior da importância da iluminação para sugerir certos estados d’alma, Reed levou-a para as telas, uma mudança prevista tanto por Sybil como por Wallace, considerando-se muito maiores as possibilidades do cinema como a arte do século.

Os Primeiros Tempos

Reed já parecia ter traçado seu futuro. Nada de setor agrário ou de diretor teatral, mas algo mais se desenhava no seu horizonte profissional: o cinema. Impressionou-o o mundo das imagens em movimento, o registro de cenas, a decupagem, o jogo de luzes e sombras, notadamente na penumbra de um quarto, na obscuridade das ruas ou na noite espectral. Os primeiros trabalhos de Reed como diretor cinematográfico, mesmo os longa-metragens, eram filmes de orçamento modesto para consumo local. Mas o tempo passa e sua reputação como “metteur-en-scène” cresce a olhos vistos graças a filmes como “Aconteceu em Paris” (It Happened in Paris) (1935), “Laburnum Grove” e “MIdshipman” (ambos de 1936), “Fale do Diabo” (Talk of the Devil) e “Who’s your Lady Friend” (ambos de 1937), “Bank Holiday” e “Penny Paradise” (ambos de 1938, “Climbing High” e “Garotas Apimentadas” (A Girl Must Live) (os dois de 1939). Alguns destes filmes não têm títulos disponíveis em Português.
Como a expansão territorial e militar dos nazistas e os sinais de uma II Guerra estavam no ar, Reed dirigiu “Sob a Luz das Estrelas” (The Stars Look Down) (1939), um dos bons filmes de sua carreira, e “Gestapo” (Night Train to Munich) (1940), um tanto irregular em sua “performance” devido a algumas imposições dos produtores e pequenos equívocos em relação ao uso dos idiomas inglês e alemão. Vieram em seguida “The Girls in the News” (1941), “O Jovem Mr. Pitt” (The Young Mr. Pitt) (1941), interessante evocação da luta dos ingleses contra Napoleão, “Caminho das Estrelas” (The Way Ahead) (1944), “A Verdadeira Glória” (The True Glory), co-direção de Garson Kanin, um documentário dos melhores da época (1945), “O Condenado” (Odd Man Out) (1947), “O Ídolo Caído) “(The Fallen Idol) (1948), “O Terceiro Homem” (The Third Man) (1949), “O Pária das Ilhas” (The Outcast of the Islands) (1952), “O Outro Homem” (The Man Between) (1953), “A Rua da Esperança” (A Kid for Two Farthings) (1955), “Trapézio” (Trapeze) (1956), “A Chave” (The Key) (1958), “Nosso Homem em Havana” (Our Man in Havana) (1959), “A Sombra da Fraude” (The Running Man) (1963), “Agonia e Êxtase” (The Agony and the Ecstasy) (1965), “Oliver!” (1968), “Fúria Audaciosa” (The Last Warrior) (1970) e “De Olho na Esposa” (Follow Me) (1971). Alguns dos filmes extraídos da filmografia de Reed merecem os comentários sucintos transcritos a seguir.

Cinco Filmes Essenciais

A reputação de Reed como cineasta chegou ao seu ápice em fins dos anos 40 e começo dos 50, quando dirigiu seus melhores filmes, uma unanimidade entre os críticos daquém e dalém mar: (1) “O Condenado”, com James Mason no papel-chave. Como analisaram Kline & Nolan, foi um melodrama de caça a um fugitivo meticulosamente concebido e ricamente executado acerca das últimas horas na vida de um revolucionário irlandês; (2) “O Ídolo Caído”, um drama do mundo adulto observado de forma penetrante e inteligente pelos olhos de uma criança; (3) “O Terceiro Homem”, seu melhor filme mais conhecido e divulgado, visto e revisto como “thriller” fascinante ambientado no cenário ou telão de fundo desolador da Viena de após-guerra, no qual a perseguição movida pela polícia nos esgotos da urbe é um prodígio de montagem rítmica na qual se combinam expressivamente signos visuais e a trilha sonora, complementada depois na cena final, quando a câmara montada na traseira do “jeep” em movimento enseja e o significante (o elemento ausente) de quem caminha só na estrada marginada por árvores de folhas secas; (4) “O Pária das Ilhas”, bela adaptação da história de Joseph Conrad sobre a corrupção moral nos Mares do Sul: para o “London Evening News”, “a sordidez deste filme não é venerada como se faz no usual lirismo hollywoodiano. “O filme mais pujante jamais feito neste país”, escreveu o crítico do “Observer”; “Tentativa interessante para dramatizar o estudo de um complexo personagem, aliás, com boa interpretação”, registrou o “Hallingwell Film Guide” dos EUA; e (5) “O Outro Homem”, um drama de roteiro imperfeito mas intrigante, ambientado na Berlim arrasada dos anos 40/50, dominada por agentes soviéticos infiltrados e delatores. A reconstituição da atmosfera é ponto alto, valorizada pela mobilidade da câmara dentro de prédios parcialmente destruídos.

Dois dos Cinco

O segundo e o terceiro destes cinco filmes se basearam em material escrito por Graham Greene e foram particularmente bem sucedidos na sua adaptação para o ecrã, recebendo elogios de críticos responsáveis do Velho e Novo Mundo. James Mason novamente sobressaiu como um dos grandes atores do cinema, desta feita ao lado de atrizes insinuantes como a alemã Hildegarde Neff (recorde-se dela com sua voz meio roufenha em “As Neves do Kilimankaro”, de Henry King, quando Gregory Peck lhe faz um galanteio ao vê-la mergulhar na piscina) e a inglesa Claire Bloom. O ritmo é ágil, não há tempo a perder com imagens supérfluas, enquanto a câmara penetra nos edifícios de poucos hóspedes, quando não abandonados, e até para um momento erótico bem conduzido entre Mason e Claire, o casal de fugitivos daquele pequeno inferno. Este filme de Reed, para uns seu melhor trabalho atrás das câmaras e de olho vivo na condução dos atores, caracterizou-se por um senso agudo de local e atmosfera, como já frisamos, com atenção para as imagens-rosto, o tratamento simpático dos personagens e a progressão dos eventos até o final surpreendente com a tentativa de burlar a cancela, enquanto o garoto da bicicleta faz volteios nas duas rodas e aguarda...
De meados dos anos 50 em diante, esclarecem os citados Kline & Nolan, Reed dava mostras de estafa e sua reputação começava a declinar. Achaques da velhice? Não, Reed tinha apenas 55 anos. Estava atuando nos estúdios de Hollywood, onde os filmes crescem bastante em escopo e orçamento, obliterando os talentos do cineasta para detalhes e hiperbolizando imperfeições dramáticas ou técnicas, quando não impondo determinados nomes para certos papéis. Há trabalho em excesso, as bilheterias contam, o famigerado Código Hays ainda tem força. Em 1962, Reed foi convidado para dirigir uma nova versão de “O Grande Motim” (Mutiny on the Bounty), mas foi logo substituído por Lewis Milestone, com poucos dias de filmagem...

Oscar em 1968

Apesar das dificuldades, Reed mereceu em 1968 o Oscar de Melhor Diretor conseguido com o musical “Oliver!”, filme baseado na novela de Charles Dickens e excepcionalmente dirigido, interpretado, editado e fotografado, e todos os técnicos orientados por Reed foram também indicados para o cobiçado troféu anual. Vale a pena lembrá-los depois do grande “tour de force”: Vernon Harris (roteirista), Lionel Bart (música), Oswald Morris (fotografia), John Green (diretor musical), Onna White (coreógrafa), John Box (desenhista de produção) e Ralph Morgan (edição).
O crítico Joseph Morgenstein sintetizou sua visão do filme: “Só o tempo poderá dizer se se trata de um grande filme, mas é certamente uma grande e inusitada experiência musical via imagens da melhor qualidade”. Palmas para Carol Reed, bateram os jornalistas e o público presentes à cerimônia. Já o crítico Jan Dawson viu uma exagerada discrepância na turbulenta alegria com a qual no filme todos cuidam dos seus negócios, mas na realidade eles estão de fato desprezados... Assim, escreve ele, elementos narrativos como a exploração do trabalho infantil, alcovitagem, abdução, prostituição e crime se combinam para fazer “Oliver!”. Textualmente: “Que o assunto não-característico das classes altas jamais venha a receber um certificado emitido por elas...” Afinal, quem é Dawson? Reed ainda dirigiu “Flap” nos EUA em 1970 e depois “Follow Me”, quando retornou de vez a sua querida Inglaterra em 1972. Foram estes seus últimos filmes. Reed foi casado (1943-47) com a atriz Diana Wynyard, mas dela se divorcou um 1948 para ficar com a também atriz Penelope Dudley Ward. Reed se retiraria de cena para falecer 4 anos depois de um ataque cardíaco.

Welles x Reed

O crítico e autor francês Jean Tulard parece não ter entendido a referência feita por vários analistas sobre quem realmente foi a cabeça pensante de “O 3° Homem” (The Third Man). Em livro recente, do qual vários autores participaram, o cineasta brasileiro Ugo Giorgetti responde às indagações de cinéfilos e admiradores: afinal, depois de ter realizado algumas obras primas Welles se colocou docilmente nas mãos de Carol Reed? O filme talvez traga algumas respostas, escreve Giorgetti, e prossegue, textualmente: “Primeiro a fotografia. Preto & branco, com muito contraste e grandes planos em contraluz, quase expressionista, bem ao gosto de Welles. Segundo, os enquadramentos. Sempre planos feitos com a câmara às vezes ligeiramente desnivelada, colocada muito baixa ou muito alta, bem ao gosto de Welles. Terceiro, as lentes. Sempre lentes grande-angulares, com larga tolerância de foco e leve deformação da imagem, bem ao gosto de Welles. Quarto, a trilha sonora. Uma trilha surpreendente, executada apenas pela chamada cítara vienense, com quase o mesmo som da guitarra havaiana, alegre, dançante, contrastando com o clima sombrio do filme, principalmente quando em dado momento é executada num enterro. (É verdade que depois se constata que esse enterro era uma farsa)”.
“De qualquer maneira, em nenhum dos filmes posteriores de Carol Reed vamos encontrar essas características da narração. Em compensação, elas podem ser encontradas amplamente em “Cidadão Kane”, “Soberba” e, principalmente, “A Marca da Maldade” e “O Processo” (e em “Grilhões do Passado”, acrescentaria Peter Bogdanovich...). Quem diabos então dirigiu esse magnífico filme chamado de “O Terceiro Homem” ( The Third Man, 1949)? Teria Orson Welles, sabe-se lá como, tomado o comando do filme: Teria sido uma homenagem sutil e saborosamente britânica de Carol Reed ao gênio de Welles? É possível. Reed era um diretor muito inteligente e sensível. Importa é que a obra belíssima, desde o roteiro de Graham Greene até as atuações de Joseph Cotten e da italiana Alida Valli, cuja presença no elenco é mais uma coisa estranha nesse filme já tão bizarro (...)”. Ficamos por aqui. Quem ainda não viu, reviu ou não conhece o filme, poderá encontrá-lo nas distribuidoras para começar a aprender cinema.

Duas Achegas de Reed

“A música, sabemos, pode servir também para ligar os planos entre si e criar uma continuidade sonora, podendo desempenhar um papel obsessivo por sua repetição. Basta a cítara de Anton Karas para marcar a presença de Welles e ajudar a evocar o espírito (principalmente a intriga e as incertezas) da Viena de após-guerra”. Palavras de Reed quando das filmagens de ‘O 3º Homem’ e ele conversou com críticos e jornalistas ingleses explicando-lhes aspectos pouco conhecidos da linguagem do cinema e dos bastidores de uma filmagem.
“Os planos com a câmara desnivelada transmitem um sentido de inquietação. Em verdade, o ângulo de visão pode sugerir que alguma coisa falsa está ocorrendo. Assim como Welles e Bergman, tenho dado particular atenção à arte das imagens em movimento e aos signos visuais, bem como ao efeito do foco profundo, da iluminação e do desenho do próprio cenário sobre toda a atmosfera do filme”.

Para saber mais

ORSON WELLS, de André Bazin, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2005;
ORSON WELLES, de André Bazin, Livros Horizonte Ltda. 1200 Lisboa, 1991;
FILMES, de Ugo Giorgetti e outros, Publifolha, divisão de Publicações do Grupo Folha, São Paulo, SP., 2003;
WELLES, Uma biografia, de Barbara Leaming, L&PM Editores S.A., São Paulo, SP., 1985;
WELLES, Orson Welles no Ceará, de Firmino Holanda, Ed. Demócrito Rocha, Fortaleza, CE., 2001;
HOLLYWOOD, de David Thomson, DK Publishing Inc., New York, NY., 2001;
MOVIES, A Language in Light, de Richard L. Stromgren & Martin F. Norden, Prentice Hall. Inc. Englewood Cliffs, New Jersey, USA, 1984;
DICIONÁRIO TEÓRICO E CRÍTICO DE CINEMA, de Jacques Aumont e Michel Marie, Papirus Editora,Ed. Nathan/VUef, Paris, 2001;
MARTIN, MARCEL, “A Linguagem Cinematográfica”, Ed. Brasiliense, São Paulo, SP., 1990; e CAROL REED ON CINEMA, sumário de entrevistas à imprensa londrina, Sup. do “Observer”, 1973.

Fique por Dentro

“STEADICAM” - Nome comercial de um artifício técnico para ajudar a estabilizar as câmaras de mão. Nada tão desagradável e superado quanto ver o tremor da câmara, pois a “steadicam” dispõe de um estabilizador digital de imagem (DIS). A câmara parkinsoniana ou treme-treme já foi alvo de várias críticas; às vezes se aceita esse tremor, ligeiro embora, quando se quer transmitir a idéia segundo a qual a câmara está sendo operada por um bêbado ou sofredor de labirintite ou mesmo em condições do terreno ou local de difícil movimentação. Os inventores da “steadicam”, Garret Brown à frente, ganharam um Oscar especial em 1977 por essa realização técnico-científica. Stanley Kubrick, o grande cineasta desaparecido, foi quem mais buscou essa estabilização da câmara, utilizando-a finalmente em seu “O Iluminado”, quando, por exemplo, vemos e acompanhamos o garoto guiar seu velocípede pelos corredores vazios do hotel mal assombrado sem nenhuma trepidação. O próprio SK operou muitas vezes a “steadicam” em seus filmes.

Opiniões

“Reafirma-se Carol Reed como o mais avançado ‘filmmaker’ do nosso tempo e um dos três ou quatro existentes mundo afora”.

- Fred Magdalany in “Films in Reviex”.
Aug., 1952;

“Sensível, humano e dedicado, Reed parece ter-se fechado à vida, especialmente sem sentimentos fortes em relação às histórias que cruzaram seu caminho, a não ser fossem coisas que ele poderia aperfeiçoar e polir com amor maternal”.

- Richard Winnington in Halliwell’s
Film Guide, 19th ed. pág. 86,2004;

“O 3º Homem” é um ‘thriller’ romântico memorável. Estiloso do começo ao fim, com inimitável telão de fundo e solo de cítara composto e executado por Anton Karas, pontuando momentos-chave, sugestivos da história do mercado negro de após-guerra, pleno de personagens cínicos e desprovidos de humor. Hitchcock com sentimentos, se lhes aprouver.”

- Hallingwell’s Film Guide, 19 ht ed.
pág. 861, 2004.

“(…) O fim do milênio provocou novas mudanças no mundo do cinema, numa mutação mais dramática em relação a qualquer outra mencionada por mim. Em pouco tempo, a matéria-prima dos filmes desaparecerá para ser substituída por algo revolucionário (‘Avatar’?), talvez em formato digital ou talvez o filme, como outrora o chamávamos, vá estar contido num ‘microchip’ tão pequeno quanto uma cabeça de alfinete. E o cinema, levado por nós cineastas ao pedestal, como se ele significasse tudo, se tornará de novo simplesmente um sistema muito maior de coisas. Em face de tal perspectiva, posso confessar agora que enquanto nos anos recentes parte de mim veio a experimentar uma sensação de esperança”.

- Palavras de Bernardo Bertolucci extraídas do seu prefácio sobre o futuro do cinema no livro de Geoff Andrew publicado em 2000.

Quem Dirigiu “O 3° Homem”?
Uma Visão Histórico-Crítica

Geoff Andrew, crítico de cinema e editor de “Film, The Critics’ Choice”, no qual analisa nada menos de 150 obras-primas do cinema mundial, da era muda até 2001, com prefácio de Bernardo Bertolucci, discorre sobre “O 3° Homem” (The Third Man), de Carol Reed, filme protagonizado por Orson Welles, esse gigante do cinema, e traz à tona em seu livro elementos de interesse para todos quantos amaram essa realização inglesa de 1949-50, cujo personagem principal é uma cidade, Viena.
A idéia original para levar à tela “O 3° Homem”, segundo registra Andrew, nasceu do produtor Alexander Korda (1891-1956), produtor e diretor húngaro (irmão de Zoltan Korda), um dos fundadores do cinema em seu país e mais tarde importante figura da cinematografia inglesa, tendo produzido e dirigido filmes na Inglaterra, onde se radicou nos anos 30. Em 1947, Korda entregou o projeto de “O 3° Homem” ao novelista e teatrólogo Graham Greene, em cujas mãos o texto se transformou numa narração de eventos conflitantes, tendo como fundo de cena o mercado negro na Viena exaurida do pós-guerra. Apesar disso, “O 3° Homem” parece apontar inevitavelmente para o mundo da espionagem. O próprio Greene, escreve Korda, foi espião durante a II Guerra Mundial, quando trabalhou sob as ordens de Kim Philby, o lendário agente duplo.
Assim, o roteiro de Greene se concentra na ambiência psicofísica da Viena daqueles anos amargos, num mundo onde não se poderia confiar em ninguém e no qual o próprio Philby adquiriu seu primeiro gosto pela atividade política clandestina. Até mesmo o “herói” desse cenário, Holly Martins, (Joseph Cotten, no papel de um literato de segunda linha), pode não ser confiável: ele trai Harry Lime (Orson Welles), seu amigo mais estimado, agora um operador do mercado negro fora da zona de influência da Rússia Soviética. Holly quer rever Lime, mas toma um choque ao saber da morte(?) do companheiro de outros tempos. O filme começa mesmo a partir daí.
Depois da II Guerra, lembra Andrew, Viena deixou de ser um centro cultural, a Capital alegre das valsas e operetas, e tornou-se uma cidade de fronteira, ou seja, uma fronteira “invisível” entre o Leste e Oeste, como Korda previra, mas uma fronteira tornada mais visível a cada dia, enquanto o entulho da guerra começava a desaparecer, fazendo a cidade mais limpa, enquanto as linhas geopolíticas começavam a consolidar-se. Tanto o escritor Greene como o diretor Reed estavam fascinados pelo poder metafórico dos esgotos uma rede de túneis subterrâneos, a qual oferecia um meio de evitar-se a fronteira e cruzá-la, sem ser observado, de uma zona para outra. A morte de Harry Lime sinaliza o fim dessa fantasia de uma fronteira permeável. A fronteira se fecha.
Numa economia vítima de escassez interminável na qual o dinheiro virtualmente nada valia, os homens do mercado negro propiciavam os serviços necessários. Até mesmo a penicilina era comercializada, como o filme mostra, e ficamos, na qualidade de espectadores, com o coração partido, escreve Andrew. A penicilina adulterada era o negócio de Lime, as crianças suas vítimas. Contudo, conforme interpretado por Welles, o mercadeiro negro ganha nossa simpatia, até mesmo quando sabemos ser ele um cínico e um monstro. Em “O 3° Homem”, o monstro está em fuga, enquanto seu amigo leal o trai e o mata. Simpatizamos com o monstro perseguido como um rato nos esgotos, enquanto o seu perseguidor Holly Martins fica para lamentar suas ações, sozinho e indesejado, abandonado pela mulher a quem ama, incapaz de aceitar sua traição - traição não ao seu país, mas a seu amigo de longa data. A Áustria não é realmente o país de alguém e tampouco o de seu amigo.
Como sabemos, Reed tomou uma decisão certa - não haveria Strauss, nem valsas neste filme. A velha Viena, considerada por muitos o Centro da Europa, tinha desaparecido para sempre com a II Guerra. A Viena de Reed é uma cidade deformada, filmada com ângulos de câmara desnivelados, onde as ruas escuras e tortuosas contrastam com as ruas, húmidas e brilhantes. Uma cidade na qual uns poucos feixes de luz penetram na escuridão profunda. Reed, um diretor respeitador do roteiro, visualizou Viena como Greene o fez - “uma terra de ninguém numa cidade inquieta onde os valores antigos estão em ruínas, uma cidade sem muito futuro, onde a morte nos convida com acenos...”
Estas considerações sucintas ajudam o leitor cinéfilo a compreender melhor o alcance deste filme memorável, um dos melhores e mais importantes já realizados em um século de cinema, até mesmo quando para sua realização contribuíram um roteirista de peso, Graham Greene, um produtor como Alexander Korda, um diretor de primeira linha, Carol Reed, e um cineasta de gênio atuando como ator e também, como já referido, orientador de Reed no uso da fotografia em preto & branco contrastada, nos grandes planos em contraluz, quase expressionistas, nos enquadramentos sempre com planos feitos com a câmara um tanto desniveladas, muito baixa ou muito alta, sempre com grande-angulares com larga tolerância de foco e leve deformação das imagens, bem ao gosto de Welles. Nada disso se viu nos filmes dirigidos por Reed nem antes nem depois de “O 3° Homem”, como salientou Ugo Giorgett em sua visão percuciente.
Quanto às discordâncias sobre quem realmente dirigiu o filme, só nos resta recordar as palavras de François Truffaut sobre “la politique des auteurs”. Segundo aquele mestre de cinema precocemente falecido, a criação no cinema depende fortemente de uma “única consciência controladora” - no caso Welles, opinião compartilhada pelo seu mentor André Bazin. Este único ponto-de-vista dominante, argúem os analistas da Nouvelle Vague, é geralmente mantido pelo diretor e não pelo roteirista ou escritor/roteirista. Através dos suportes filosóficos desse método, o diretor cinematográfico é elevado ao “status” de escritor e romancista, daí o termo “auteur”. Ficamos por aqui.

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