domingo, 8 de fevereiro de 2009

QUEM É ALAIN RESNAIS



Intelectual francês e um dos cineastas mais brilhantes de quantos têm atuado por trás das câmaras, Alain Resnais nasceu em Vannes, na Bretanha, em junho de 1922 (v. fontes bibliográficas). Projetou-se paralelamente à Nouvelle Vague, sem ter-se tornado um dos seus membros atuantes, talvez por não querer vincular-se a movimentos ou compromissos. Aficionado pelas histórias em quadrinhos e vidrado em cinema desde quando assistia a filmes com seu genitor, um farmacêutico entusiasta da 7ª Arte, Resnais rodou seu primeiro filme amador, ainda adolescente, com câmara de 8mm, mas só a partir dos 20 anos fez da realização de filmes sua ambição profissional.


Estudou arte teatral, literatura e filosofia (bastante influenciado pelo pensamento de Henri Bergson) e permaneceu um ano no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), de Paris, onde se distinguiu como jovem cineasta de apurado senso visual. Recrutado em 1945, serviu numa unidade de entretenimento de tropas aliadas na Alemanha e na Áustria. Desmobilizado em 1946, iniciou-se na feitura de curtas e médias-metragens, a maioria dos quais documentários silenciosos e, ocasionalmente, filmes dramáticos. Seus primeiros curtas foram mostrados na TV francesa, período formativo no qual trabalhava igualmente como operador e montador de outros diretores. Sua carreira de documentarista deslanchou em 1948, quando realizou um filme sobre Van Gogh em 35mm, do qual foi também montador e vencedor de um Oscar na categoria.


Politicamente, pertencia à esquerda democrática, mas não era homem de partido, sempre prezou sua independência. Afinal, não tinha pretensões nessa área, sua religião era o cinema e nele investiu tudo quanto pôde. Sua reputação como documentarista crescia a cada novo média-metragem, cabendo registrar alguns dos seus melhores trabalhos: “Guernica” (co-dirigido com Robert Hessens), “Gauguin” e “Les Statues Meurent Aussi” (co-direção com Chris Marker), todos de 1953, “Nuit et Brouillard” (Nacht und Nebel/Night and Fog) (1955), “Toute la Mémoire du Monde” (1956), “Le Mystère de l’Atelier 15” (co-direção com André Heinrich) (1957) e “Le Chant du Styrène” (1958). Ao todo, até 2007, Resnais realizou 28 curtas e médias metragens, com destaque para “Contre l’Oubli” (1991) e “Gershwin” (1992), episódios para filmes-mosaicos, e 20 longas.


Firmou ele sua reputação como documentarista de escol principalmente após “Noite e Nevoeiro”, incursão perturbadora, quase um filme de horror (e também aula de montagem e uso magistral de filtros na captação de tempos aterradores, iluminação a cargo de Ghislain Cloquet), no inferno dos campos de extermínio nazistas. Com este filme Resnais revelou sua preocupação com o mal inerente à natureza humana, com a injustiça do mundo, a matança de inocentes (daí o seu mal disfarçado agnosticismo), a impunidade e, acima de tudo, com o tema da memória, do tempo e do esquecimento.


O grande tema shakespeariano (o poder avassalador do Tempo) se insinua na cosmovisão de Resnais e também nos subtemas do bardo inglês (a inutilidade dos empreendimentos humanos, a transitoriedade das coisas, a fragilidade dos sentimentos, a irreversibilidade do passado, a impossibilidade de transmissão da experiência individual, a senectude - a morte em vida - e a inevitabilidade da morte). O pensamento de filósofos gregos da antiguidade (a certeza de tudo acabar-se e não deixarmos sequer vestígios de nossa passagem) também subjaz no conjunto da obra de Resnais. Desta resulta um expressivo estilo motovisual capaz de redimensionar o olhar perscrutador e investigador da câmara.


Ao seguir uma trilha filosófica de Bergson e outra literária de Proust, bem assim as reflexões de Bergman, o estilo de Resnais ganhou forma mais complexa e mais rica no seu primeiro longa-metragem de ficção, sua primeira revolução, “Hiroshima, Mon Amour” (1959), com roteiro original de Marguerite Duras, pelo qual o realizador fez jus a vários prêmios da crítica. Resnais rompeu com os conceitos convencionais do tempo narrativo e fundiu passado, presente e futuro num tempo único, introduzindo revolucionárias técnicas de retrospecto para conciliar a realidade com a memória e talvez com o processo onírico.


Em seu segundo filme-revolução, “Marienbad”, vencedor do Leão de Ouro em Veneza (1961), Resnais foi mais além e manipulou resultantes temporais multidirecionais num filme completamente sem enredo (no sentido convencional do termo, pois há sempre uma situação dramática anterior ou a evoluir ou um conflito a ser resolvido) e propositadamente ambíguo. Houve quem visse nessa perfeita simbiose entre o escritor Robbe-Grillet (depois também cineasta) e Resnais “a tentativa de criação da arte total, dela participando todas as outras artes”. A estrutura narrativa de “Marienbad” é a recriação subjetiva do espaço-tempo numa visão quádrupla (o é, o foi, o será e o poderia-ter-sido), ou seja, fatos vividos, sonhados, imaginados, conforme surgem na memória do protagonista ou nas suas reminiscências oníricas ou não, ou até mesmo nas da sua provável amante do ano passado...


Vieram em seguida “Muriel” (ou “Le Temps d’un Retour”) (1963), escrito por Jean Cayrol, outro complexo e competente exercício na exploração audiovisual da memória, louvado pela crítica mas de pouco êxito bilhetérico, e “La Guerre Est Finie” (1966), do romance de Jorge Semprun, com trama quase linear, mas superiormente dirigido no trato dos conflitos de um revolucionário antifranquista. O filme conquistou o Prêmio Louis Delluc e vários troféus especiais em festivais e desfrutou de sucesso comercial sem precedentes em muitos países. Para Judith Crist, prestigiada crítica americana, este foi o mais sofisticado trabalho de Resnais, ao aperfeiçoar sua técnica e tratar cinematicamente da inter-relação de tempo e espaço, pois jamais nos trouxe tal lirismo à dureza do quotidiano ou dera tal escopo à sondagem do interior do homem – tudo isso dentro da estrutura de um ‘thriller’ de suspense.


O fracasso financeiro de “Je t’Aime Je t’Aime” (1968) prejudicou a viabilidade das produções de Resnais por alguns anos, mas levou-o a dirigir “Stavisky” (1974), a biografia cinematográfica de um estelionatário francês, seu único filme nos moldes clássicos até então, mas com proficiente articulação dos ritmos externo e interno e condução do elenco de primeira à frente do qual pontificavam o versátil Jean-Paul Belmondo e o veterano Charles Boyer.


“Providence” (1976), o primeiro filme de Resnais em língua inglesa, refletiu sobre o processo criativo de um escritor vítima de câncer, enquanto agonizava em torno do seu próximo romance. Louvado como brilhantemente original, mas chamado de bizarro e criticado por outros (afinal o cinema não é ciência exata e todos têm suas preferências temáticas e/ou estilísticas e escolha pessoal de diretores), ganhou 7 César (o Oscar francês) e aclamação na Europa, embora não tenha sido bem recebido por críticos americanos.


Resnais prosseguiu ativo e dirigiu ainda “Mon Oncle d’ Amérique” (1980), “La Vie Est un Roman” (1983) e “L’Amour à Mort” (1984), todos escritos por Jean Grualt (cenarista de quem também se valeu Truffaut). Estes filmes formavam uma trilogia não-declarada, sumarizando algumas das preocupações filosóficas, estéticas e éticas de Resnais, abrangendo temas de ordem vária – do amor, do tédio existencial e de caráter metafísico. Seguiram-se-lhe “Mélo” (1986), “Quero Ir para Casa” (Je Veux Rentrer à la Maison) (1989), “Fumar, Não Fumar” (Smoking/No Smoking) (1993), filme curioso, vencedor de outro César; aos 75 anos dirigiu “Aquela Velha Canção” (On Connait la Chanson) (1997), êxito artístico e bilhetérico pelo qual recebeu vários troféus.


Impecável formalista, Resnais é provavelmente, junto com Truffaut, o mais importante diretor a emergir da safra francesa dos anos 50. Se pensava ou não como um “nouvelle vagueur”, pouco importa. Eis o fato relevante: embora se apoiasse na colaboração de outros escritores em todos os seus filmes (Marguerite Duras, Robbe-Grillet, entre outros, já citados), Resnais é considerado um “auteur” pelos críticos subscritores da teoria, devido à sua atuação como maestro de uma orquestra, à sua consistente adesão a temas de distinção e à técnica altamente pessoal desenvolvida para enfrentá-los.


Debilitou-se-lhe a saúde na fase final de sua carreira brilhante (asma crônica vinda da infância, problemas da idade com a visão e sua contratibilidade cardíaca), prejudicando-lhe a execução de alguns projetos importantes. Recuperado em boa parte dos seus problemas, dirigiu “Pas sur La Bouche” (2002) e “Petit Partagés” (2005), e ainda bastante lúcido aos 85 anos realizou “Medos Privados em Lugares Públicos” (Coeurs, 2007) com o qual ganhou o Prêmio de Melhor Direção no Festival Internacional de Veneza desse ano. Nesse filme, Resnais despreza a intriga, mas enfoca os encontros e desencontros entre os seis atores numa ciranda cinematográfica na qual separa criativamente os espaços com flocos de neve caindo ininterruptamente, pois o rigoroso inverno parisiense restringia a saída dos personagens. Um filme raro.


Este o rápido perfil de um cineasta já colocado com toda justiça no panteão dos grandes realizadores do século XX.


Fontes bibliográficas principais:
“Cadernos de Cinema” (vários autores), Publicações D. Quixote, Lisboa, 1960/68;
“Marienbad, Année Zéro”, de Andre Labarthe, “Cahiers du Cinema”, Paris, 1961;
“Tu nas Rien Vu à Hiroshima!” (Editions de l’ Institute de Sociologie, Bruxelas) 1962;
“Every Year in Marienbad”, de Jacques Brunius, “Sight & Sound”, Summer, 1962.
“Alain Resnais or the Theme of Time”, de John Ward, Secker & Warburg, Londres, 1968;
“Alain Resnais ou a Criação do Cinema”, de Bernard Pingaud e Pierre Samson, Ed. Documentos, 1969;
“Alain Resnais”, de Gaston Bounoure, Paris, 1971; e “The Film Encyclopedia”, de Fred Klein & R. Dean Nolen, Harper, NY, 1998;

2 comentários:

  1. Alôoo ! Felizmente, encontrei um comentário abalisado sobre este cineasta. Há tempos procuro material sobre ele e só agora consigo encontrar um "decente". Parabéns, LG ! E parabéns pelo Blog tb., mto oportuno, com informações preciosos e com boa formatação, simples e elegante. Viva !
    Saudações da Karina Oliveira

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  2. Valeu, Karina !

    Tive oportunidade há anos de assistir a um filme deste grande cineasta que é Resnais e fiquei feliz de encontrar neste Blog com comentários tão abalisados um texto à altura do mestre francês.
    Poucos são os q ousam abordar a obra do cineasta, seja por ñ entenderam a fundo, por desconhecimento de seus filmes ou mesmo falta de sensibilidade para filmógrafo tão adiante de seu tempo.
    Paabéns, portanto, mestre LG ! Este Blog é um que vou indicar, pois vale a pena !
    Grande abç do Adriano Xavier

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