Muitos críticos e cinéfilos daqui e dali não avaliaram bem o alcance deste 8º filme do saudoso mestre francês (1932-84), quando de sua exibição em nossas telas, tampouco quando assistiram a ele em DVD, embora lhe reconhecessem as qualidades técnicas e os méritos das cenas de impacto, como a morte pelo fogo de uma mulher idosa decidida a não abandonar seus livros. Igualmente, a reinterpretação da sinistra realidade fascistóide de um mundo do futuro imaginado pelo papa da ficção científica, Ray Bradbury (1920- ). Roteirizada pelo próprio Truffaut e Jean-Louis Richard, faltou à realização, segundo aqueles críticos, o registro emocional tão necessário às tragédias coletivas, como aquela retratada por “Fahrenheit 451”.
O filme de Truffaut, indicado aliás para o Oscar e o BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro, foi reexibido recentemente num “home theater” de cinéfilos para quem fizemos uma apresentação e coordenamos o intercâmbio de idéias ao final. Para quem não apreciou a versão cinematográfica no ecrã, foi-lhes recomendada uma revisão atenta do filme (há cópias disponíveis em DVD) e de um texto de Truffaut transcrito a seguir. Quem quiser também poderá ler nosso artigo publicado no Caderno de Cultura (DN de 25 set 2006) e conferir as achegas ali reunidas. Não esquecer algumas opiniões publicadas em revistas, como as do exigente crítico Gary Carpenter, segundo o qual o “script” de Truffaut/Richard é um dos mais inteligentes de quantos foram escritos nos anos 60, e a direção do cineasta a melhor vista por ele de uma adaptação literária para o cinema. Eis as reflexões de Truffaut às quais nos referimos:
“Decidi fazer ‘Fahrenheit 451’ quando me correspondi com Ray Bradbury, um dos maiores visionários de toda a literatura contemporânea, como escreveu Aldous Huxley, e ele veio de Los Angeles para encontrar-se comigo em Nova Iorque. O mestre da FC acolheu-me de forma muito simpática e estabelecemos logo um ‘rapport’, apesar do meu inglês claudicante. Resolvi de pronto comprar os direitos de seu livro e comecei a trabalhar com Jean-Louis Richard na adaptação do texto para o cinema. Há um ano, aliás, eu já havia adotado Bradbury como escritor e já estava lendo em francês tudo quanto havia sido traduzido. No avião em pleno vôo para os EUA, eu ainda o lia. Somos obrigados a reconhecer nele um escritor autêntico e de fértil imaginação, sem esquecer sua invejável cosmovisão. Digam-no obras como ‘As Crônicas Marcianas’ ou seus ‘Contos do Pais de Outubro’.
“Na transposição de um veículo para o outro, aproveitei 60% do livro, os restantes 40% foram inventados, mas na mesma trilha do pensamento do autor americano. Suprimi o personagem Faber, defensor dos livros, pois era um velho filósofo falador e talvez deixasse o espectador entediado. Todos os livros do filme foram realmente queimados, mas arrumei os planos de tal modo pudesse o espectador ver os títulos de muitos deles; é o aspecto mais importante do livro, razão pela qual eu queria tanto realizar o filme. Eliminei também quase todos os elementos de ficção científica propriamente ditos, como o robô-policial perseguidor de Montag e o substituí pelos mil olhos de um outro bombeiro (o ator alemão Anton Diffring), o qual passa o tempo todo espionando o colega. A única cena de FC é a dos policiais voadores, pois os efeitos desse gênero são muito difíceis de concretizar e quase sempre se arriscam a parecer ridículos.
“Em certos momentos, por exemplo, Bradbury escreve: ‘A cidade zumbia’. Ora, é difícil fazer uma cidade zumbir. Quis evitar qualquer tipo de confusão na cabeça do espectador, então pedi para o Bernard Hermann, cujo trabalho admiro muito, para compor uma melodia dramática convencional, sem qualquer traço futurista. Em raro e curto instante de intimidade amorosa, entre Montag e a mulher, pode-se ouvir a beleza de sua melodia sempre inspirada. Recordemo-nos de ‘Kane’, ‘Soberba’ e ‘Vertigo’. Creio na necessidade de ter-se apenas uma coisa de cada vez na tela e por isso quis que no filme houvesse apenas a queima de livros.
“Adorei levar o livro de Bradbury à tela, tão logo o descobri. A censura aos livros é um tema atual e não somente de FC: todos os dias são queimados livros pelo mundo. Creio que somente a Suécia escapa a essa censura torpe, mas na África do Sul há uma lista de vinte mil livros proibidos e recentemente os queimaram na Indonésia e na China. Há outros exemplos tristes dessa prática, os quais, em tempos menos recentes, nos lembram as fogueiras dos nazistas após a ascensão de Hitler ao poder totalitário.
“As cenas de incêndio de ‘Fahrenheit 451’ são formidáveis e foram perigosas durante as filmagens. No terço final, instalei três câmaras para filmar o incêndio de três ângulos diferentes e depois escolher o melhor. Ao abrirem uma porta inadvertidamente, os bombeiros criaram uma corrente de ar e esta lançou as chamas na direção da terceira câmara, onde estávamos o cinegrafista e eu. Salvamo-nos por pouco, mas tivemos os cabelos quase queimados. Em meio ao incêndio, o capitão dos bombeiros sufocava. Mesmo protegido por uma máscara de amianto e vestes à prova de fogo, ele havia prendido essa máscara com tanta força a ponto de ficar asfixiado. Sua agonia simulada foi o mais espetacular de tudo!
“Tive muitos desentendimentos com Oskar Werner durante as filmagens porque ele tinha idéias bem precisas sobre seu papel, apenas diferentes das minhas. Ê um ator extraordinário, mas o fato de não saber bem o francês pode ter contribuído para isso. Felizmente, uma das cenas essenciais, seu desmaio diante do capitão fascista, de certa forma a chave do filme, ele aceitou fazer tal como a concebi. Sim, a chave do filme, porque era a melhor maneira de escapar ... a astúcia ideal.
“Poderia ter filmado em Toronto, Estocolmo, num subúrbio de Paris, em Meudon, por exemplo. Não, sinceramente não sofri por filmar na Inglaterra, onde todo mundo foi tão gentil comigo. Sofri apenas devido ao problema da língua, por não poder modificar ou reajustar alguns diálogos durante as filmagens. Em geral, quando se fala de cinema, subestima-se a importância das palavras.
“Dei os dois papéis de mulher a uma só atriz (Julie Christie) para destruir definitivamente a dualidade ou o contraste entre a morena e a loura, etc. Como esses papéis eram muito pouco espetaculares, evitamos os inconvenientes de um desempenho de vedete, ainda mais porque Julie os interpretou sem demonstrar preferência por um ou outro e com igual modéstia.
“Dessa vez tentei ser realista e onírico na filmagem, criando em cada cena, mesmo normal, um desequilíbrio, uma oscilação, uma instabilidade. O sonho de todo artista é transformar cada idéia em algo ao mesmo tempo cômico e dramático, verdadeiro e falso. Não mudei de estilo. Em meus outros filmes a prioridade era dada aos personagens ou à história. Dessa vez me preocupei com tudo quanto o livro de Bradbury sugeria de visual. Daí, próximo ao final, o carro da polícia nas ruas, as pessoas aparecendo na soleira de suas portas e a panorâmica descobrindo Montag em fuga num vão de escada ... Fiz menos movimentos de câmara, principalmente porque o filme foi rodado em cores.
“Não pretendi transmitir qualquer mensagem, mas apenas mostrar uma forma de luta contra a autoridade arbitrária. ‘Fahrenheit 451’ é contra o poder em geral na medida em que esse poder subestima a cultura ou lhe dá importância exagerada, ao fingir acreditar que um filme, urna peça de teatro ou um romance, por exemplo, ‘A Religiosa’, ‘Marat-Sade’, realmente possam ser perigosos. Não sou contra a violência por idealismo, por adesão a idéias de não-violência. Sou contra a violência e a intolerância porque elas significam confronto. Ë como a discussão, algo do qual não gosto. Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões. Se quero partir, parto, não falo sobre isso, pois se falo os outros me impedem de partir. Para mim, quem substitui a violência é a fuga, não a fuga do essencial, mas a fuga para se obter o essencial.
“Creio ter ilustrado isso em ‘Fahrenheit 451’. É um aspecto do filme que escapou a todo mundo e me parece importante: a apologia da astúcia. ‘Ah, então os livros estão proibidos? Então, muito bem, vamos aprendê-los de cor’. É o supra-sumo da astúcia. Não me farão assinar com outros amigos cineastas um manifesto contra a censura, pois creio haver cinqüenta maneiras de se enganar, de vencer a censura e de se enviar a todos os outros países um filme exatamente como se quer que ele seja. A meu ver, isso é melhor em relação à violência. Não lutarei em nome de princípios. Tenho uma idéia completamente pessimista em relação à sociedade humana na qual vivemos.”
“Quanto às críticas de alguns amigos franceses, segundo as quais o filme é frio, desprovido de emoções, todas elas contidas ou sufocadas por uma ditadura igual ou pior em relação a todas elas, não discordo: foi exatamente isso o que tive em mente. Afinal, estamos numa visão futurística, distópica, de um estado totalitário, onde as pessoas se escondem, se contêm, as imagens-rosto não exprimem alegria, espontaneidade ou satisfação. Qualquer extravasamento emocional daquela coletividade, caso eu optasse por isso, pareceria algo forçado, inconvincente. Quanto à direção cinematográfica, bastam-me as palavras de Bradbury: ‘Você me entendeu e fez o filme que devia fazer. Parabéns pela realização e meu muito obrigado pelo esforço despendido no mister’”.
Caso Bradbury conhecesse o vernáculo e tivesse lido “Além dos Marimbus”, belo romance de Herberto Salles um tanto subestimado, bem poderia ter incluído, com pequena substituição do sujeito, esta frase exemplar do autor brasileiro, pois ela se prestaria, mutatis mutandis, à ausência de emoções e à frieza das quais se queixaram os críticos apressados de “Fahrenheit 451“: “Filme triste, cerradamente triste, sem uma clareira de esperança, mal visitado pelo amor que só a espaços reponta”. Ficamos por aqui.
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