quinta-feira, 20 de agosto de 2009

“O ÚLTIMO METRÔ”: O TEATRO COMO RESISTÊNCIA



Quase inédito em Fortaleza, “Le Dernier Métro” (1980), de François Truffaut, já pode ser visto (ou revisto) em DVD por cinéfilos e admiradores do homem-cinema precocemente desaparecido. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, bem assim ao Globo de Ouro, a película teve nota máxima do “Halliwell’s Film Guide” (2004) e fez jus a vários prêmios importantes em diversos países, nestes incluídos troféus das associações de críticos e registros elogiosos de ensaístas europeus e até de comentaristas japoneses. Chegou a ser aplaudido de pé na sua estréia de gala num dos melhores cinemas dos Champs Elysées, o Paris, de Marcel Dassault. Raramente Truffaut colheu tantas opiniões favoráveis de origens tão diferentes como neste filme, de Jean-Paul Belmondo a Federico Fellini, de Samuel Fuller a Jean Marais, de Stanley Kubrick a Volker Schlondorff, de Ingmar Bergman a Louis Malle, de Don Allen a Claude Sautet, de Alain Resnais a Martin Scorsese. Em sua pátria, a fita recebeu o recorde de dez César (o Oscar francês), com destaque para Melhor Filme e Melhor Direção. Estes dados são apenas uma síntese dos registros existentes.

Truffaut dispensa apresentações, pois já o homenageamos várias vezes noutros textos. Mesmo antes de sua morte, em 1984, já havíamos publicado artigos comprobatórios de sua competência e inventividade como um dos mestres do cinema, ex-crítico de filmes, redator dos melhores do grupo dos “Cahiers”, líder da Nouvelle Vague e o grande defensor da teoria do “auteur”, propugnando-a já nos seus escritos de 1954 (tinha apenas 22 anos!). Suas reflexões foram reunidas em vários livros, alguns dos quais contendo lições exemplares de como ver ou fazer cinema. A idéia original e o roteiro de “Acossado” (A Bout de Souffle) (1960) esclareça-se, são seus, embora não reconhecidos por Jean-Luc Godard (e até omitidos dos créditos), depois dos desentendimentos e ruptura entre eles.

“O Último Metrô” é a segunda parte de uma trilogia sobre cinema, teatro e o “music hall”, iniciada com “A Noite Americana” (aula de metacinema com a qual conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1973), seguindo-se-lhe este sobre teatro e seus bastidores. A morte, “essa indesejada das gentes”, impediu-lhe a concretização da trilogia. Em 1975, quando redigia o prefácio do livro de André Bazin intitulado “Le Cinéma de l’Occupation et de la Resistance”, Truffaut já revelava, segundo seus biógrafos Antoine de Baecque e Serge Loubiana, o desejo imperioso de fazer um filme sobre o período da Ocupação. No ano seguinte, pediu ao amigo Jean-Loup Abadie para ler um romance no qual havia um personagem do seu interesse. Textualmente: “Numa cidade, provavelmente Paris, durante a Ocupação, uma bela atriz continua a exercer sua profissão, apesar da eventual presença de oficiais alemães entre os espectadores. Seu marido, um judeu supostamente morto, esconde-se na realidade no porão do teatro. Eis o princípio da história, a qual poderia oscilar entre o ‘Ser ou Não ser’, de Ernst Lubitsch (1942), e ‘O Diário de Anne Frank’, de George Stevens (1959).

Ao comentarmos “Le Dernier Métro”, cabe-nos alertar os cinéfilos: não se trata, em rigor, de outro filme do emérito cineasta voltado para o passado. Como ele mesmo afirmou, depois de co-roteirizar e dirigir com sinete autoral nada menos de 19 filmes, os temas abordados, é claro, não podem ser inteiramente novos, pois cada elemento estrutural da narrativa fílmica se apóia sempre no precedente. Além disso, “embora não haja nada de verdadeiramente novo em nosso quotidiano, as pessoas acompanham melhor o meu trabalho quando acrescento elementos novos ao tema do filme, mantendo porém um pé no passado”.

Assim, como lembra Truffaut, “O Último Metrô” remete o aficionado a “A Noite Americana” (La Nuit Américaine), aquele hino de amor ao cinema, mas também ao ousado “Uma Mulher para Dois” (Jules et Jim) (1962) e até à comédia “Beijos Roubados” (Baisers Volés) (1968), na qual os personagens se tornam mais importantes em relação às situações, ao cenário, ao tema e até mesmo em relação à construção e à execução do filme. Desta feita, Truffaut ilumina um tema jamais abordado por ele – o teatro – e sobre um telão de fundo com o qual está pouco acostumado – a II Guerra, a Ocupação alemã e Vichy, sede de 1940 a 44 do governo chefiado pelo Marechal Pétain. Projeto ambioso e caro da Films du Carrosse (de Truffaut), “O Último Metrô só se tornou possível graças ao apoio da Gaumont/Andrea e Societé Française de Production/Sedif AS. TF1.
O drama se passa em Paris, em 1942, e abre com cenas de documentário, voz “off”, explicando a situação da França sob a Ocupação. Daí o corte para o personagem Bernard Granger (Gerard Depardieu), jovem e talentoso ator a caminho do Teatro Montmartre para assinar um contrato com Marion Steiner (Catherine Deneuve) e atuar na peça “La Disparue”, ora em fase dos primeiros ensaios. Antes, em plena rua, Bernard assedia sem sucesso a costureira da peça, a atraente balzaqueana Arlette Guillaume (Andrea Ferreol). Numa primeira versão da abertura, lemos, o roteiro previa simplesmente a chegada de Bernard ao teatro. Trocando idéias com Suzane Schiffman, sua co-roteirista, Truffaut resolveu (“sempre com vistas à eficácia”) fazer o encontro dos dois, de modo a inserir um toque irônico, pois Arlette não se interessa pelo sexo masculino, como Bernard vem a saber depois e a desculpar-se pela sua insistência na véspera. Truffaut chamou isso de “princípio de narrativa indireta”, inspirado aliás em Lubitsch.

Marion, atriz, assumira a direção da Casa em lugar do marido, o diretor judeu Lucas Steiner (Heinz Bennent), supostamente em fuga para a América do Sul. Em verdade, ele está escondido no porão do teatro de onde ouve os ensaios através de abertura ligada ao palco e dá orientações para a encenação, quando sua mulher desce para revê-lo. A Gestapo, polícia secreta nazista de sinistra memória, está à espreita, pois tem dúvida sobre se Steiner saiu realmente de Paris. Essa situação dramática é o próprio conflito alimentador do filme e dele resultará a tensão subjacente estabelecida e mantida ao longo dos seus 130min de projeção, agravada pela secreta inclinação de Marion por Bernard, e aí estamos de volta ao velho triângulo amoroso. Não seria justo revelar aqui a seqüência de incidentes conectados, a qual movimentará a história até o seu fim predeterminado.

A direção cinematográfica de Truffaut é exemplar, como sempre, e a narrativa, linear, pois o cineasta não viu necessidade de interromper a ordem direta para retroagir no tempo ou antecipar eventos futuros mediante inserções ou fragmentos informativos ou esclarecedores de algum ponto obscuro ou deixado em aberto. Tampouco de dividir a tela em duas, três ou quatro partes. Revela, porém, olho vivo para a importância de detalhes em cenas aparentemente banais, como a do presunto de sete quilos adquirido no mercado negro e escondido depois na caixa do violoncelo, a do menino cultivador de tabaco no minijardim próximo ao teatro, a do beijo discreto de Steiner em Marion (ela há tempos ausente do leito conjugal devido às circunstâncias da guerra) e a do conúbio amoroso entre eles, já sem os ardores de quando eram mais novos e de outros tempos menos ominosos. Mencione-se igualmente, nesse aspecto, o recebimento da miniatura do féretro enviado como “presente”: quando a tampa se abre, vê-se o nó de uma microcorda sugestiva da forca próxima.

Faz-se aí uma referência irônica aos “salvadores” de judeus e a pessoas de mau caráter, as quais jogam dos dois lados, recebendo subornos ou propinas tanto dos alemães como de quem está interessado em ajudar os semitas. Recorde-se como Truffaut usa o efeito aparentemente sem causa da explosão responsável pela morte de um general alemão, ato de sabotagem punido com fuzilamento: na verdade, a bomba estava oculta na radiola levada por Bernard. Mais adiante, quando a Gestapo chega para investigar os bastidores do teatro, a rapidez com a qual Marion, Bernard e o próprio Steiner conseguem esconder tudo quanto indicasse a presença de alguém escondido no porão é bem uma amostra da planificação de Truffaut e de como ele sabe manipular o repouso e a aceleração, bem assim o tempo de permanência das imagens na tela.

A porta subitamente aberta e reveladora do lesbianismo de Arlette serve de contraste irônico com a cena inicial entre ela e Bernard, em plena rua, como já mencionamos. E a atitude deste, quando vê na recepção do restaurante os quepes dos oficiais alemães e decide sair de lá, diz muito de como os franceses patriotas viam a convivência com os invasores. Observem-se ainda o toque para o furto de dinheiro no camarim e a dúvida sobre se convinha chamar a polícia, bem como o olhar da câmara para os bastidores com poucas gambiarras iluminadas e o manejo da bambolina e do equipamento de efeitos cênicos. O “blackout” momentâneo, mas intempestivo e apavorante, enseja a fusão de imagens e sons, enquanto se buscam as velas e se ouvem sirenes nas ruas.

As “visitas” de Daxiat, o crítico zoilo do “Je Suis Partout”, são sempre recebidas a contragosto por Marion. Ela não pode recusar-se a fazê-lo, pois dele depende o visto da censura e o destino da peça e do próprio teatro. Ironicamente, ele se diz socialista e homem de esquerda... Sua última visita causou impacto e desânimo, não só dando conta a Marion da prisão do intermediário, mas mostrando-lhe como o “desaparecimento” do marido e a assinatura pré-datada nos documentos de propriedade do teatro perderam a validade, motivo pelo qual a Justiça pode decretar a inexistência de proprietário... A comunicação é um desastre, mas Marion se mostra contida, mesmo quando Daxiat lhe exibe o passaporte de Steiner (“Seu marido não saiu de Paris...”). Além disso, os alemães invadem a Zona Livre, notícia desanimadora para os franceses, ainda no aguardo da abertura de uma Segunda Frente com a invasão da Normandia, mas esta só se dará em junho de 1944...

Nada de câmara treme-treme, “chicotes”, desfocamentos de imagens, videoclipagem (excesso de cortes ultra-rápidos) ou abuso de primeiros planos. O “close-up”, um dos primeiros instrumentos da fotogenia para filmólogos e teóricos, só deve ser usado para chamar a atenção sobre detalhe relevante ou intensificar o impacto dramático de uma cena, ao sugerir o conflito íntimo de um personagem pela expressão do seu rosto captado bem próximo à câmara. Esse recurso técnico não serve para preencher espaços vazios no retângulo da telona, como já se disse tantas vezes. Para Bergman, por exemplo, o “close-up” objetiva enfatizar a introspecção, atentar para pormenores e objetos de modo a transmitir-lhes uma dimensão transcendental. Observe o cinéfilo como Truffaut utiliza com parcimônia, ou com função específica, planos aproximados e não esquece os “raccords” (termo para o qual ainda não se encontrou boa tradução no vernáculo) para ligar os cortes de continuidade e dar ao filme a impressão de uma realidade ininterrupta e homogênea.

Depois da estréia bem sucedida de ‘La Disparue”, os acontecimentos se precipitam: Daxiat critica duramente a peça e Bernard toma as dores de Marion agredindo o crítico intransigente e anti-semita e levando-o para uma briga fora do restaurante e em plena chuva. Antes, ao término do espetáculo, todos aplaudidos de pé, Marion se revela ao beijar Gerard, mas não quer abandonar o companheiro de tantos anos. É quando Bernard lhe comunica a decisão de participar da Resistência. Próximo à libertação de Paris, vemos fragmentos da guerrilha urbana contra os alemães remanescentes, enquanto Daxiat foge para a Espanha de Franco e Steiner sai finalmente de sua toca com os olhos ainda mal acostumados com a luz. O roteiro de Truffaut e Suzanne surpreende pela inteligência com a qual chegam ao epílogo.
A detenção de um membro da Resistência dentro da igreja de Notre-Dame-des-Victoires, enquanto um coro de garotos entoa um hino religioso, foi feito com poucas tomadas e a valorização do silêncio entre Bernard e o outro, enquanto a Gestapo parece fechar o cerco com a sua presença quase onisciente, pairando sobre todos de forma sinistra.tal qual o predador em busca de sua presa. Quando o companheiro de lutas entra no Citröen com os policiais, Bernard já sabe: ele não volta mais.

Quando termina o filme, se tivermos estado bem concentrados nas imagens em movimento e absorvido o clima, é como se houvéssemos vivido aquela época ou presenciado, por meio de algum artifício mágico, os acontecimentos nele mostrados, devido à capacidade de o cinema recriar uma impressão da realidade. Ressalte-se, ainda, embora necessariamente espaçada, a fusão do metacinema com o metateatro.

Pouco a acrescentar a tudo quando já se escreveu sobre a qualidade do trabalho técnico de Nestor Almendros (1930-92), “cinematographer” espanhol da categoria de um Henri Decae ou Henri Alekan, de Vittorio Storaro, Aldo Scavarda, Otello Martelli, Ted Scaife, Tony Gaudio, Marcel Grignon, John Alcott, Lucien Ballard, Wong Howe, Nicholas Musuraka ou Jörg Schmidt-Reitmein, nomes de alguns mestres vindos à memória. Há composições fotográficas expressivas de Almendros com personagens captados através do sobreenquadramento (“surcadrage”) na entrada dos fundos do teatro ou da “plongée” vista do alto de uma janela para a rua. A iluminação do ambiente combinada com a movimentação da câmara, quando Marion desce com o lampião para ver como está o marido, e a apreensão sutil do colóquio íntimo entre Marion e Bernard, quando sob a mesa a mão dele afaga a coxa direita da mulher, bastam para explicar o motivo pelo qual Truffaut trabalhou tantas vezes com Almendros.

Georges Delerue, por demais conhecido como maestro, compositor e arranjador, capaz de criar um tema melódico para cada filme ou de compor vários minitemas para uma só película, desta feita se valeu das canções da época da Ocupação e bem conhecidas de Truffaut, como “Mon Amant de Saint Jean”, um marco da melancolia de outros tempos para os franceses.
Os atores travam fino duelo de interpretação no jogo de aparências, não apenas La Deneuve e Depardieu no duo principal, mas também Henz Bennent, de quem não podemos esquecer, pois é parte do trio. Bennent, excepcional ator alemão, fluente em francês, inglês e outros idiomas, atuou em filmes como “A Honra Perdida de Katherine Blum” (Die Verlorene Ehre der Katherine Blum), de Volker Schlondorff e Margarethe von Trotta (1975), “O Tambor” (Die Blechtrommel), também de Schlondorff, e “O Ovo da Serpente” (Das Schlangerei / The Serpent’s Egg), de Bergman (ambos de 1979). Exemplo de sua hierarquia como ator é a cena na qual entra em desespero quando recebe a notícia de ter de passar mais dois anos naquele porão...

“Vou enlouquecer”, diz angustiado. “Qual a culpa de ser judeu?” Chora e ameaça entregar-se, suicidar-se. Marion resiste e mostra força: “V. não pode sair e não sairá, nem que precise bater em você”. A nostalgia se reflete na sua máscara e palavras, ao recordar-se de sua estada em Londres nos bons tempos, quando pôde assistir à peça “Gaslight” (A Meia Luz), de Patrick Hamilton, aliás levada ao cinema duas vezes, em 1940 dirigida por Thorold Dickinson e em 1944, por George Cukor. Quando carinhosamente beija a mulher, muito mais moça em relação a ele, Bennet age mais como um pai protetor e afetuoso. Estas referências são suficientes para destacar a atuação desse artista.

Catherine mostra bem sua espontaneidade quando prepara comida para Steiner ou quando lhe arruma melhor acomodação para dormir ou age como o repouso do guerreiro... Momento significativo é quando vai procurar um tal Dr. Dietrich no quartel do comandante militar e vê uma amiga descer do outro lado da escada com um oficial alemão. As duas se olham, não dizem nada, mas o silêncio entre elas diz tudo. Quando vem a saber do suicídio do Dr. Dietrich pelo Ten. Bergen (Laszlo Szabo), seu admirador, nada transparece ou reclama quando ele lhe aperta a mão com os dedos, mas dele se desvencilha com dignidade.

Depardieu começou a projetar-se nos anos 70, tornando-se um ídolo do cinema francês a partir talvez de “Stavisky, de Resnais (1974), ou mesmo de “Novecento”, de Bernardo Bertolucci (1975). Propositais são as suas indecisões ao participar de um grupo dramático quase todo desconhecido para ele, ou quando faz a interpretação de uma interpretação ou recolhe os quadros e objetos do seu camarim, depois da decisão de abandonar o teatro.

Bons estão todos os coadjuvantes de maior ou menor participação nos eventos. Jean-Louis Richard como Daxiat tem momentos de incrível naturalidade quando, no auge da intolerância, fala contra os judeus na rádio; Jean-Luis Cottrin interpreta Jean Poiret, o substituto oficial de Steiner na direção do teatro, “homossexual discreto, dândi e mundano e bem ajustado ao papel”, como escreveu Truffaut. Andrea Ferreol faz Arlette, Marcel Berbet é o administrador, Richard Bohringer, o agente da Gestapo, Paulette Dubost a camareira, Maurice Richmond, Raymond, Sabine Haudepin, Nadine Marsac, jovem atriz disposta a tudo para subir na vida, até mesmo tornar-se homoerótica.

Menção especial cabe aos diálogos adicionais de Jean-Claude Grumberg. Revejam-se estes em função da situação mesma na qual foram proferidos: “Às vezes é melhor ser surdo para não ouvir certas coisas”; “Teatro é como banheiro e cemitério, quando temos de ir”; “O amor como ave de rapina fica pairando sobre nós”; “Senti-me atraída por você e agi para que ninguém notasse”; “Será que existem duas mulheres em uma?”.

Um filme para adquirir, ver ou rever, de um dos grandes mestres do cinema. Decididamente.

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