Na linha da tradição de muitos anos, selecionamos os dez melhores da temporada recém-finda, todos comentados no espaço domingueiro do “Zoeira”, caderno do jornal Diário do Nordeste. Nosso melhor filme seria “A Vida dos Outros” (Das Leben der Anderen), de Florian von Donnersmarck, um dos mestres do moderno cinema alemão, não fosse o fato de ter sido lançado no Brasil em 2007 e em Fortaleza em fevereiro de 2008. A seleção segue uma ordem classificatória apenas relativa, dada a extrema dificuldade de distinguir entre ótimos e bons filmes, alguns deles de gênero e temáticas diferentes. Ei-los:
01. “O SONHO DE CASSANDRA” (Cassandra’s Dream), de Woody Allen. Outro marco decisivo da maturidade técnico-artística do cineasta nova-iorquino, no qual funde substância e momentos sobresselentes de cinema num crescendo de suspense capaz de fazer inveja ao velho Hitchcock. Interpretação de primeira a cargo de Ewan McGregor, Colin Farrell e Tom Wilkinson, com destaque para a sedutora Hailey Atwell, atriz inglesa em plena ascensão. Fotografia ímpar do mestre sueco Vilgot Sjoman.
02. “VICKY CRISTINA BARCELONA”, de Woody Allen. Com estes três nomes o diretor enriquece sua bagagem filmográfica e realiza um dos melhores do ano. Basta lembrar como soube captar a importância do instante e do detalhe e fazer os diálogos interagirem com as imagens em perfeita sincronia. Conduzidos pelo cineasta, Bardem, Penelope, Rebecca e Scarlet conferem maior credibilidade aos seus papeis e valorizam essa comédia dramática. Fotografia ímpar de Javier Aquirresarobe e trilha musical executada por guitarras.
03. “EFEITO DOMINÓ” (The Bank Job), de Roger Donaldson. Baseado em caso real ocorrido em Londres (audacioso assalto ao deposito subterrâneo dos clientes de um banco), o filme se ombreia às melhores realizações já levadas à tela sobre o tema mormente pelo poder de síntese do diretor australiano ao entrecortar os ritmos interno e externo e valorizar as qualidades da imagem cinematográfica. Louvem-se a presença feminina de Saffron Burrows e a atuação de Jason Statham e David Suchet.
04. “ANTES QUE O DIABO SAIBA QUE VOCÊ ESTÁ MORTO” (Before the Devil Finds that You’re Dead), de Sidney Lumet. O jogo de acasos é ilustrado de forma magistral neste filme de clima “noir”, no qual o veterano cineasta (84 anos!) trabalha com maior competência a ordem interrompida e um mundo de sombras, violento, trágico, onde o mal predomina na linha do pensamento de filósofos segundo o qual o homem é o lobo do homem. Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke são os dois filhos em posição conflitante com Albert Finney, o pai, enquanto Marisa Tomei fica entre dois fogos, todos muito bem em seus papéis.
05. “A ESPIÔ (Zwarboek/The Spy), de Paul Verhoeven. Apesar da longa duração e de alguns pequenos reparos a situações um tanto improváveis do roteiro, os méritos do realizador holandês sobressaem não apenas pela recriação do clima de violência e traição, mas também pela precisão da decupagem e dos planos-seqüência com os quais encerra o filme. Atuações de primeira de Carice van Hoouten e de Sebastian Koch. A fotografia de Karl Lindelamb é invulgar, mormente nas cenas noturnas, quando as imagens parecem pintadas com pincéis de luz, como bem lembrou um crítico francês.
06. “A ÚLTIMA AMANTE” (La Vielle Maitresse), de Catherine Breillat. O filme se impõe pela proficiência da cineasta francesa, vista por muitos críticos como mestra do erotismo, bem assim pela forma como enfoca, em termos de bom cinema, a paixão avassaladora de uma mulher em busca de libertar-se das amarras de uma sociedade hipócrita e repressora, como a de Paris no século XIX. Atuam bem Asia Argento, o jovem estreante Fu’Ad Ait Aattou, a bela Roxane Mesquida e coadjuvantes da categoria de Michel Lonsdale. De alto nível as “prises de vues” de Paul Muret.
07. “UM PLANO BRILHANTE” (Flawless), de Michael Radford, emerge como “thriller” de alta hierarquia do diretor inglês, ao captar com acerto a vida interior dos personagens-chave, tornada perceptível pelas imagens-rosto enriquecidas pela dose certa de suspense e dúvidas, enquanto as imagens-significantes contribuem com as imagens-tempo para enriquecer o ritmo no terço final. Richard Gretrex cuida bem da fotografia em cores dessaturadas, Paul Desmond executa seu jazz harmonioso e o elenco traz Demi Moore e Michael Caine em boa forma, ao lado de coadjuvantes como Joss Ackland e Lambert Wilson.
08. “O GÂNGSTER” (American Gangster), de Ridley Scott. O cineasta inglês dispensa apresentações, pois está entre os melhores do século XX. Apesar da temática da violência, tortura e crimes, o veterano mestre logra alta qualificação no específico fílmico, na fotografia de Harry Savides, na música de Marc Streitenfeld, no desempenho da dupla Denzel Washington e Russell Crowe e nas presenças da sensual porto-riquenha Carla Gugino e do gângster italiano vivido por Armand Assante.
09. “CHEGA DE SAUDADE”, de Laís Bodansky, cineasta talentosa, sensível às impressões visuais e à relevância das imagens-movimento, capaz de surpreender-nos neste seu segundo longa (o primeiro foi o elogiado “Bicho de Sete Cabeças”), máxime por trabalhar em cenário único e com personagens capazes de enriquecê-lo. Destaques para a insinuante Maria Flor (recorde-se dela em “É Proibido Proibir”, de Jorge Durán), o tarimbado Leonardo Villar e Cássia Kiss. Fotografia do veterano Wálter Carvalho.
10. “BANQUETE DE AMOR” (Feast of Love), de Robert Benton. Comédia dramática na qual o elogiado diretor americano consegue reunir com lucidez, aprumo e competência técnica o sexo, o humor, o romance, a ironia de situações, a imprevisibilidade dos eventos, o jogo de acasos, a fragilidade de sentimentos, a tristeza e a fugacidade do tempo, com suas perdas e danos. Impecáveis as cores de Kramer Morgenthau, a condução do elenco e a música incidental de Stephen Trask.
sábado, 17 de janeiro de 2009
segunda-feira, 12 de janeiro de 2009
DA “NOUVELLE VAGUE” E TRUFFAUT
Nunca é demais falar ou escrever sobre a “Nouvelle Vague” ou a “nova onda”, como a denominou uma jornalista francesa, quando se realizava o Festival Internacional de Cannes de 1959 e François Truffaut ganhava a Palma de Ouro de Melhor Diretor com “Les 400 Coups” (Os Incompreendidos) e a indicação ao Oscar de Melhor Roteiro. Com o Prêmio de Melhor Filme Estrangeiro dado a esse mesmo celulóide pela Associação de Críticos de Nova Iorque, a “Nouvelle Vague” tornou-se fenômeno em 1960 e fincou raízes no mundo do cinema, “et pour cause”...
Conforme declarou Truffaut à época, se o “slogan” jornalístico não tivesse sido criado, essa designação ou algo semelhante teria surgido de qualquer maneira por força das circunstâncias, quando os espectadores começassem a assistir aos primeiros filmes dos chamados “nouvelle vagueurs” e percebessem como a visão de cinema e a formação deles se contrapunha às produções francesas dominadas principalmente por veteranos como Julien Duvivier, Jaques Feyder, Marcel Carné e Jean Renoir.
Como registram os enciclopedistas F.Klein e R.D.Nolan, a “Nouvelle Vague” nasceu há 50 anos com “Les Mistons” (Os Pivetes), curta-metragem logo premiado pela Associação de Clubes de Cinema de Paris. Nele, Truffaut focaliza com seu poder de síntese o despertar da sexualidade num grupo de cinco garotos interessados em ver a mal disfarçada sugestão erótica de Bernadette Lafont disputando uma partida de tênis com seu namorado Gérard Blain. A fluidez do ritmo das imagens movimento e a seleção de planos já revelavam um talento em ascensão.
De início, como se veiculou “ad nauseam” pela imprensa, a denominação “Nouvelle Vague” provinha de uma pesquisa oficial realizada na França por um serviço de estatística do governo sobre a juventude francesa, de modo geral. Queria-se saber como os jovens encaravam o amanhã, pois a NV eram futuros engenheiros, médicos, economistas, professores e advogados. Essa pesquisa, publicada na prestigiosa “L’Express”, chegou a ser capa da revista durante semanas, donde a frase “L’Express, a Revista da Nouvelle Vague”, conforme lembrou Pierre Billard em artigo vindo a lume no “France-Observateur”, em dezembro de 1959.
Logo depois, em face de acasos favoráveis, com os quais Cannes se transformou quase numa mostra de cineastas jovens – não somente da França, mas também dos países estrangeiros, – os jornalistas incumbidos de cobrir a área de cinema se valeram da expressão para designar um determinado grupo de “metteurs-en-scène” bastante afinado com as qualidades da imagem fílmica e as características do veículo. A propósito, vale transcrever as palavras esclarecedoras do próprio Truffaut numa revista de repercussão: “A meu ver, o ‘slogan’ Nouvelle Vague não correspondeu bem à realidade, na medida em que no estrangeiro se acredita, por exemplo, na existência de uma associação de jovens diretores franceses, os quais regularmente se reúnem e têm um plano e uma mesma estética, quando na verdade não era nada disso. Havia de fato, isto sim, um ajuntamento fictício, apenas aparente.”
Indagado sobre se os “nouvelle vagueurs” têm pontos em comum, respondeu Truffaut aos jornalistas: “Vejo um ponto em comum entre nós: todos se preocupam em ter êxito na bilheteria enquanto os antigos diretores preferiam retratar a época. Não há paradoxo algum em minhas palavras, pois, com exceção dessa característica, há basicamente apenas diferenças entre nós. Claro, nós nos conhecemos, somos amigos, apreciamos os mesmos filmes, curtimos trocar idéias, a espaços discordamos, mas, quando se julga no ecrã o resultado de nossas realizações, verifica-se logo uma diferença capital: os filmes de Claude Chabrol nada têm a ver com os de Jacques Rivette, os quais, por sua vez,não parecem em nada com os meus. Os filmes da NV lembram bastante quem os faz, pois são realizados em total liberdade. E realmente a liberdade é nosso ponto em comum.”
“Os cineastas do passado citados acima de há muito haviam perdido o hábito de escolher o assunto a ser filmado,“ prossegue Truffaut,”mas ao se tornarem vedetes passaram a ser muito solicitados e então começaram a escolher os assuntos em função das propostas recebidas. No geral, creio, a diferença é que cada um de nós busca levar ao cinema uma certa verdade, ao invés de trabalhar com base numa verdade vinda de fora”.
Isto posto, como conceituar a “Nouvelle Vague”? Para analistas como Peter Graham, a NV designa um grupo de realizadores franceses capazes de transformar seus primeiros filmes numa explosão de energia criativa entre 1958 e 1960. Diferente do neo-realismo italiano, a NV não era nem um movimento estética ou estilisticamente coeso, como registram Kline e Nolan, mas um aglomerado de talentos reunidos por circunstâncias históricas e socioeconômicas. Como sabemos, a NV teve seu germe nos textos críticos de jovens entusiastas de cinema, os quais, no início dos anos 50, tiveram seu aprendizado teórico sob orientação do filmólogo André Bazin, co-fundador com Jacques Doniol-Valcroze da “Cahiers du Cinema”, uma das mais influentes revistas de cinema da Europa.
François Truffaut, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, Erich Rohmer e Jacques Rivette eram os cinco líderes do grupo inicial, Louis Malle e Alain Resnais, mestres de proa, não pertenciam à NV, embora tenham apoiado o movimento dos amigos e partilhado de muitas idéias da NV. De alguma forma descompromissados e independentes, não compareceram à célebre reunião organizada pela Unifrance Film no Festival de Cannes e por isso não apareceram na foto panorâmica dos 16 cineastas publicada em livros, jornais e revistas.
Nos textos dos “cinco”, eles desenvolveram a “teoria do autor” inspirada pelo manifesto da “caméra-stylo” (câmara-caneta) de Alexander Astruc (1923- ). Isso os levou à rejeição do chamado “cinema-do-papai”, ou seja, aquele formato gasto e ultrapassado os filmes tranqüilos e conciliadores e impessoais. Ao contrário, a NV assumiu um estilo de filmagem mais livre e pessoal, independente das práticas industriais estabelecidas a partir dos anos 30. Do lado prático, o movimento foi encorajado por iniciativas semi-independentes como o “Le Silence de la Mer”, de Jeam-Pierre Melville (1949), “Le Rideau Cramoisi” (A Cortina Escarlate) (1953) e “Les Mauvaises Rencontres” (1955), ambos de Astruc, e “La Petite Courte”, de Agnes Varda (1954).
A penetração da NV na “mainstream” do cinema francês foi em parte facilitada, por mais estranha pareça, pelo grande sucesso bilhetérico de “Et Dieu Crèa la Femme” (1956) dirigido por Roger Vadim, cineasta jovem e desconhecido. Nada tinha de extraordinário o filme, como se sabe, e seu êxito junto ao público se deveu primordialmente ao seu ousado conteúdo erótico e à cândida sensualidade de Brigitte Bardot. Mas isso foi o bastante para convencer os produtores da viabilidade comercial dos filmes realizados com pontos-de-vista e temas típicos das novas gerações. Rompida a fortaleza dos produtores estabelecidos, as comportas se abriram aos vagalhões da NV, isso para fazer nossa a metáfora da dupla Klein e Nolan.
Resultado: dezenas de filmes da NV inundaram as platéias da Europa e homens como Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, Rohmer, Malle, Molinaro, Valère, entre outros, se tornaram ícones do novo cinema. O movimento chegou ao acme em 1962, quando a “Cahiers du Cinèma” dedicou toda uma edição à NV. Assim como tudo passa, tudo cansa e tudo quebra, como acentuava o grande Rousseau, o movimento começou a murchar, mas seus líderes prosseguiam na sua carreira individual bem sucedida dentro dos parâmetros comerciais firmados. Nos fins dos anos 60, lembra Peter Graham, emergiram as segunda e terceira ondas numa reação um tanto débil à complacência dentro do “establishment”. Pouco mudou nos anos 70, quando a força da NV se dissolveu, tanto como ímpeto para novas idéias como para uma força revitalizadora nas bilheterias.
Estas achegas baseadas em lições de analistas estrangeiros parecem-nos suficientes para ilustrar o pensamento dos mestres da “Nouvelle Vague”, para quem a tela não pode ser apenas um subproduto do teatro e da literatura. Para concluir, entendemos pertinente resumir a tipologia de Truffaut, veiculada de forma simplificada em suas conferências no IDHEC e em entrevistas dadas na França e fora dela. Esta tipologia importa para o bom entendimento dos planos de expressão e de conteúdo do autor (ou autores) de um filme, caso de Robbe-Grillet e Resnais em “Marienbad” e de tantos outros. Dividem-se assim as formas motovisuais, segundo Truffaut:
1) imagem-movimento (sintagma usado pela primeira vez pelo mesmo Truffaut em 1980) é a própria essência do cinema, quando a câmara se aproxima ou se afasta do objeto, gira em torno dele ou rompe a unidade espácio-temporal para captar algo mais; exemplo marcante é o encontro sigiloso entre os dois generais franceses em “Glória Feita de Sangue”, de Kubrick, onde num gabinete de mármore se trama a loucura de um ataque de infantaria no qual morrerão centenas estupidamente, enquanto a câmara volteia os personagens, capta-lhes a desfaçatez e o jogo sujo dos interesses mesquinhos; exemplos das imagens-movimento se vêem aos milhares nos cinemas;
2) imagem-significante (a da surpresa, impacto ou choque), sempre esclarecedora e sugestiva, como no quebra-cabeças interminável da amante em “Citizen Kane”, de Welles; ou na festa orgíaca da vindima em “O Segundo Rosto”, de Frankenheimer; ou no estranho jogo de palitos no qual o amante perde sempre, em “Marienbad”, da dupla Robbe-Grillet/Resnais; ou nas fotos de cartazes dos filmes roubadas pelo garoto em “A Noite Americana”, de Truffaut; ou na personificação da Morte jogando uma partida de xadrez com o cavaleiro egresso da guerra em “O Sétimo Selo”, de Bergman; ou o julgamento faccioso dos três soldados do filme de Kubrick citado acima; ou na escuta secreta e no desmonte dos fios conectados com a polícia do regime ditatorial em “A Vida dos Outros”, de Von Donnersmarck; as imagens-significantes (images-signifiantes), como lembrava Truffaut em suas conferências no IDHEC, podem expandir-se para tornar-se criativas, como, por exemplo, na utilização do PPVS (plano-ponto-de-vista-subjetivo). Recorde-se, a propósito, o terço final de "Coisas da Vida" (Les Choses de la Vie, 1969), de Claude Sautet, quando as imagens nos mostram um almoço ao ar livre, com várias pessoas à mesa, sorridentes, descontraídas, depois do desastre no qual seu guiador, o protogonista vivido por Michel Piccoli, está desacordado na relva, quase morto. Vemo-lo "participando" por alguns instantes ao lado da sua mulher (Lea Massari), da amante (Romy Schneider), dos pais, sogros e amigos; de repente ele olha para frente e "vê" seu BMW negro, novo em folha, reluzente, quando sabemos estar o carro parcialmente destruído! A imagem é de como ele está "vendo" ou "imaginando" a cena, num delírio agônico; e logo a mesa se transforma numa imagem irreal, onde estão sentados policiais do trânsito, motoristas, transeuntes, paramédicos, um casal ao qual ele deu carona anteriormente, etc. Imagens contrastantes, criativas, só possíveis de serem vistas no cinema e já sugestivas da morte próxima do personagem central, mas também de tudo quanto a vida lhe poderia ter sido e não foi.
3) imagem-tempo (ou da inquietação), quando a sucessão de horas, minutos e segundos se esvai de forma inexorável, enquanto o pai aflito tenta salvar o filho da morte certa em “A Sombra da Forca”, de Losey; ou quando o velho repórter tenta lutar contra o tempo enquanto o condenado inocente já vai receber a injeção letal para sentar-se na cadeira elétrica em “Crime Verdadeiro”, de Clint Eastwood; e
4) imagem-rosto (sintagma preferível à imagem-afecção cunhada pelo filósofo Giles Deleuze), quando a expressão fisionômica, o olhar, a máscara da face, o ricto de sarcasmo e o silêncio dos tempos mortos falam por si sós, como no diálogo final de “A Ponte de Waterloo”, de LeRoy, quando a sogra percebe todo o passado de sua nora e a expressão desta, quando se deixa atropelar por um automóvel numa das cenas mais contundentes do cinema; ou, ainda, as imagens do rosto de Monica Vitti e Gabriele Ferzetti no fecho de “L’Avventura”, de Antonioni, quando a mulher percebe a traição do marido e ele chora.
Centenas de outros exemplos poderiam ser incluídos nesta miniamostra, mas estes bastam para dar idéia da importância da tipologia truffautiana. Lembremo-nos das palavras sempre sábias do “enfant gâté” da “Nouvelle Vague”: “Só filmamos o que acreditamos seja essencial e de interesse e o momento que julgamos poder dominar.” E lembremo-nos também de Nietzsche: “A beleza é o poder gerado pela imagem.”
Estas as notas julgadas relevantes para resumir o significado do nascimento da “Nouvelle Vague” há 50 anos. Embora muitos se tenham esquecido dela, suas raízes continuam fincadas em algum lugar da história do cinema e aqui e ali ainda influenciam de alguma forma os novos cineastas, pelo menos fazendo-os pensar.
Conforme declarou Truffaut à época, se o “slogan” jornalístico não tivesse sido criado, essa designação ou algo semelhante teria surgido de qualquer maneira por força das circunstâncias, quando os espectadores começassem a assistir aos primeiros filmes dos chamados “nouvelle vagueurs” e percebessem como a visão de cinema e a formação deles se contrapunha às produções francesas dominadas principalmente por veteranos como Julien Duvivier, Jaques Feyder, Marcel Carné e Jean Renoir.
Como registram os enciclopedistas F.Klein e R.D.Nolan, a “Nouvelle Vague” nasceu há 50 anos com “Les Mistons” (Os Pivetes), curta-metragem logo premiado pela Associação de Clubes de Cinema de Paris. Nele, Truffaut focaliza com seu poder de síntese o despertar da sexualidade num grupo de cinco garotos interessados em ver a mal disfarçada sugestão erótica de Bernadette Lafont disputando uma partida de tênis com seu namorado Gérard Blain. A fluidez do ritmo das imagens movimento e a seleção de planos já revelavam um talento em ascensão.
De início, como se veiculou “ad nauseam” pela imprensa, a denominação “Nouvelle Vague” provinha de uma pesquisa oficial realizada na França por um serviço de estatística do governo sobre a juventude francesa, de modo geral. Queria-se saber como os jovens encaravam o amanhã, pois a NV eram futuros engenheiros, médicos, economistas, professores e advogados. Essa pesquisa, publicada na prestigiosa “L’Express”, chegou a ser capa da revista durante semanas, donde a frase “L’Express, a Revista da Nouvelle Vague”, conforme lembrou Pierre Billard em artigo vindo a lume no “France-Observateur”, em dezembro de 1959.
Logo depois, em face de acasos favoráveis, com os quais Cannes se transformou quase numa mostra de cineastas jovens – não somente da França, mas também dos países estrangeiros, – os jornalistas incumbidos de cobrir a área de cinema se valeram da expressão para designar um determinado grupo de “metteurs-en-scène” bastante afinado com as qualidades da imagem fílmica e as características do veículo. A propósito, vale transcrever as palavras esclarecedoras do próprio Truffaut numa revista de repercussão: “A meu ver, o ‘slogan’ Nouvelle Vague não correspondeu bem à realidade, na medida em que no estrangeiro se acredita, por exemplo, na existência de uma associação de jovens diretores franceses, os quais regularmente se reúnem e têm um plano e uma mesma estética, quando na verdade não era nada disso. Havia de fato, isto sim, um ajuntamento fictício, apenas aparente.”
Indagado sobre se os “nouvelle vagueurs” têm pontos em comum, respondeu Truffaut aos jornalistas: “Vejo um ponto em comum entre nós: todos se preocupam em ter êxito na bilheteria enquanto os antigos diretores preferiam retratar a época. Não há paradoxo algum em minhas palavras, pois, com exceção dessa característica, há basicamente apenas diferenças entre nós. Claro, nós nos conhecemos, somos amigos, apreciamos os mesmos filmes, curtimos trocar idéias, a espaços discordamos, mas, quando se julga no ecrã o resultado de nossas realizações, verifica-se logo uma diferença capital: os filmes de Claude Chabrol nada têm a ver com os de Jacques Rivette, os quais, por sua vez,não parecem em nada com os meus. Os filmes da NV lembram bastante quem os faz, pois são realizados em total liberdade. E realmente a liberdade é nosso ponto em comum.”
“Os cineastas do passado citados acima de há muito haviam perdido o hábito de escolher o assunto a ser filmado,“ prossegue Truffaut,”mas ao se tornarem vedetes passaram a ser muito solicitados e então começaram a escolher os assuntos em função das propostas recebidas. No geral, creio, a diferença é que cada um de nós busca levar ao cinema uma certa verdade, ao invés de trabalhar com base numa verdade vinda de fora”.
Isto posto, como conceituar a “Nouvelle Vague”? Para analistas como Peter Graham, a NV designa um grupo de realizadores franceses capazes de transformar seus primeiros filmes numa explosão de energia criativa entre 1958 e 1960. Diferente do neo-realismo italiano, a NV não era nem um movimento estética ou estilisticamente coeso, como registram Kline e Nolan, mas um aglomerado de talentos reunidos por circunstâncias históricas e socioeconômicas. Como sabemos, a NV teve seu germe nos textos críticos de jovens entusiastas de cinema, os quais, no início dos anos 50, tiveram seu aprendizado teórico sob orientação do filmólogo André Bazin, co-fundador com Jacques Doniol-Valcroze da “Cahiers du Cinema”, uma das mais influentes revistas de cinema da Europa.
François Truffaut, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, Erich Rohmer e Jacques Rivette eram os cinco líderes do grupo inicial, Louis Malle e Alain Resnais, mestres de proa, não pertenciam à NV, embora tenham apoiado o movimento dos amigos e partilhado de muitas idéias da NV. De alguma forma descompromissados e independentes, não compareceram à célebre reunião organizada pela Unifrance Film no Festival de Cannes e por isso não apareceram na foto panorâmica dos 16 cineastas publicada em livros, jornais e revistas.
Nos textos dos “cinco”, eles desenvolveram a “teoria do autor” inspirada pelo manifesto da “caméra-stylo” (câmara-caneta) de Alexander Astruc (1923- ). Isso os levou à rejeição do chamado “cinema-do-papai”, ou seja, aquele formato gasto e ultrapassado os filmes tranqüilos e conciliadores e impessoais. Ao contrário, a NV assumiu um estilo de filmagem mais livre e pessoal, independente das práticas industriais estabelecidas a partir dos anos 30. Do lado prático, o movimento foi encorajado por iniciativas semi-independentes como o “Le Silence de la Mer”, de Jeam-Pierre Melville (1949), “Le Rideau Cramoisi” (A Cortina Escarlate) (1953) e “Les Mauvaises Rencontres” (1955), ambos de Astruc, e “La Petite Courte”, de Agnes Varda (1954).
A penetração da NV na “mainstream” do cinema francês foi em parte facilitada, por mais estranha pareça, pelo grande sucesso bilhetérico de “Et Dieu Crèa la Femme” (1956) dirigido por Roger Vadim, cineasta jovem e desconhecido. Nada tinha de extraordinário o filme, como se sabe, e seu êxito junto ao público se deveu primordialmente ao seu ousado conteúdo erótico e à cândida sensualidade de Brigitte Bardot. Mas isso foi o bastante para convencer os produtores da viabilidade comercial dos filmes realizados com pontos-de-vista e temas típicos das novas gerações. Rompida a fortaleza dos produtores estabelecidos, as comportas se abriram aos vagalhões da NV, isso para fazer nossa a metáfora da dupla Klein e Nolan.
Resultado: dezenas de filmes da NV inundaram as platéias da Europa e homens como Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, Rohmer, Malle, Molinaro, Valère, entre outros, se tornaram ícones do novo cinema. O movimento chegou ao acme em 1962, quando a “Cahiers du Cinèma” dedicou toda uma edição à NV. Assim como tudo passa, tudo cansa e tudo quebra, como acentuava o grande Rousseau, o movimento começou a murchar, mas seus líderes prosseguiam na sua carreira individual bem sucedida dentro dos parâmetros comerciais firmados. Nos fins dos anos 60, lembra Peter Graham, emergiram as segunda e terceira ondas numa reação um tanto débil à complacência dentro do “establishment”. Pouco mudou nos anos 70, quando a força da NV se dissolveu, tanto como ímpeto para novas idéias como para uma força revitalizadora nas bilheterias.
Estas achegas baseadas em lições de analistas estrangeiros parecem-nos suficientes para ilustrar o pensamento dos mestres da “Nouvelle Vague”, para quem a tela não pode ser apenas um subproduto do teatro e da literatura. Para concluir, entendemos pertinente resumir a tipologia de Truffaut, veiculada de forma simplificada em suas conferências no IDHEC e em entrevistas dadas na França e fora dela. Esta tipologia importa para o bom entendimento dos planos de expressão e de conteúdo do autor (ou autores) de um filme, caso de Robbe-Grillet e Resnais em “Marienbad” e de tantos outros. Dividem-se assim as formas motovisuais, segundo Truffaut:
1) imagem-movimento (sintagma usado pela primeira vez pelo mesmo Truffaut em 1980) é a própria essência do cinema, quando a câmara se aproxima ou se afasta do objeto, gira em torno dele ou rompe a unidade espácio-temporal para captar algo mais; exemplo marcante é o encontro sigiloso entre os dois generais franceses em “Glória Feita de Sangue”, de Kubrick, onde num gabinete de mármore se trama a loucura de um ataque de infantaria no qual morrerão centenas estupidamente, enquanto a câmara volteia os personagens, capta-lhes a desfaçatez e o jogo sujo dos interesses mesquinhos; exemplos das imagens-movimento se vêem aos milhares nos cinemas;
2) imagem-significante (a da surpresa, impacto ou choque), sempre esclarecedora e sugestiva, como no quebra-cabeças interminável da amante em “Citizen Kane”, de Welles; ou na festa orgíaca da vindima em “O Segundo Rosto”, de Frankenheimer; ou no estranho jogo de palitos no qual o amante perde sempre, em “Marienbad”, da dupla Robbe-Grillet/Resnais; ou nas fotos de cartazes dos filmes roubadas pelo garoto em “A Noite Americana”, de Truffaut; ou na personificação da Morte jogando uma partida de xadrez com o cavaleiro egresso da guerra em “O Sétimo Selo”, de Bergman; ou o julgamento faccioso dos três soldados do filme de Kubrick citado acima; ou na escuta secreta e no desmonte dos fios conectados com a polícia do regime ditatorial em “A Vida dos Outros”, de Von Donnersmarck; as imagens-significantes (images-signifiantes), como lembrava Truffaut em suas conferências no IDHEC, podem expandir-se para tornar-se criativas, como, por exemplo, na utilização do PPVS (plano-ponto-de-vista-subjetivo). Recorde-se, a propósito, o terço final de "Coisas da Vida" (Les Choses de la Vie, 1969), de Claude Sautet, quando as imagens nos mostram um almoço ao ar livre, com várias pessoas à mesa, sorridentes, descontraídas, depois do desastre no qual seu guiador, o protogonista vivido por Michel Piccoli, está desacordado na relva, quase morto. Vemo-lo "participando" por alguns instantes ao lado da sua mulher (Lea Massari), da amante (Romy Schneider), dos pais, sogros e amigos; de repente ele olha para frente e "vê" seu BMW negro, novo em folha, reluzente, quando sabemos estar o carro parcialmente destruído! A imagem é de como ele está "vendo" ou "imaginando" a cena, num delírio agônico; e logo a mesa se transforma numa imagem irreal, onde estão sentados policiais do trânsito, motoristas, transeuntes, paramédicos, um casal ao qual ele deu carona anteriormente, etc. Imagens contrastantes, criativas, só possíveis de serem vistas no cinema e já sugestivas da morte próxima do personagem central, mas também de tudo quanto a vida lhe poderia ter sido e não foi.
3) imagem-tempo (ou da inquietação), quando a sucessão de horas, minutos e segundos se esvai de forma inexorável, enquanto o pai aflito tenta salvar o filho da morte certa em “A Sombra da Forca”, de Losey; ou quando o velho repórter tenta lutar contra o tempo enquanto o condenado inocente já vai receber a injeção letal para sentar-se na cadeira elétrica em “Crime Verdadeiro”, de Clint Eastwood; e
4) imagem-rosto (sintagma preferível à imagem-afecção cunhada pelo filósofo Giles Deleuze), quando a expressão fisionômica, o olhar, a máscara da face, o ricto de sarcasmo e o silêncio dos tempos mortos falam por si sós, como no diálogo final de “A Ponte de Waterloo”, de LeRoy, quando a sogra percebe todo o passado de sua nora e a expressão desta, quando se deixa atropelar por um automóvel numa das cenas mais contundentes do cinema; ou, ainda, as imagens do rosto de Monica Vitti e Gabriele Ferzetti no fecho de “L’Avventura”, de Antonioni, quando a mulher percebe a traição do marido e ele chora.
Centenas de outros exemplos poderiam ser incluídos nesta miniamostra, mas estes bastam para dar idéia da importância da tipologia truffautiana. Lembremo-nos das palavras sempre sábias do “enfant gâté” da “Nouvelle Vague”: “Só filmamos o que acreditamos seja essencial e de interesse e o momento que julgamos poder dominar.” E lembremo-nos também de Nietzsche: “A beleza é o poder gerado pela imagem.”
Estas as notas julgadas relevantes para resumir o significado do nascimento da “Nouvelle Vague” há 50 anos. Embora muitos se tenham esquecido dela, suas raízes continuam fincadas em algum lugar da história do cinema e aqui e ali ainda influenciam de alguma forma os novos cineastas, pelo menos fazendo-os pensar.
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